“Na manhã de 19 de novembro, o céu estava azul e uma leve brisa soprava no cais do porto do Rio de Janeiro. Ao meio-dia estava tudo pronto e teve então a concretização de um sonho da Marinha do Brasil: a corveta Vital de Oliveira desterrava a fim de realizar uma viagem de volta ao mundo, feito nunca antes realizado por um navio sul-americano”.
O tempo ameno na partida não dava ideia das dificuldades conforme a coluna de Marcelo Ninio, onde escreveu que a tripulação enfrentaria ao longo dos 438 dias da viagem que marcou a primeira missão diplomática do Brasil à China, iniciada em 1879, com o objetivo de obter mão de obra chinesa para substituir o trabalho escravo nas fazendas brasileiras.
Parte I: Num livro primoroso, a volta ao mundo que deu início às relações Brasil-China
A saga é contada em vívidos detalhes no livro “Primeira Circum-navegação brasileira e primeira missão do Brasil à China” (Editora Dois por Quatro), dos pesquisadores Marli Cristina Scomazzon e Jeff Franco, lançado em 2020. Precedida por intensa controvérsia e oposição política no Brasil, inclusive de Dom Pedro II, a viagem teve seu orçamento “contado em centavos”, o que comprometeu a salubridade a bordo e custou a vida de tripulantes.
Diante das difíceis condições, nem todos retornaram. Dos 275 embarcados (todos com seus nomes documentados no livro), 15 morreram na viagem, 28 desertaram. Além da falta de roupas adequadas para o clima frio que encararam e da má alimentação, as instalações do navio também eram inadequadas. No relato do médico do navio, Galdino de Magalhães, tem-se uma ideia do drama para cuidar dos doentes que se acumulavam quando “a enfermaria de dezesseis metros cúbicos contendo oito beliches” era invadida pela fumaça da cozinha, e segundo ele era “necessário desinfetar constantemente com ácido fênico e cloreto de cal, para remover o mau cheiro, consequência do ar confinado sem ventilação”.
O barco não comportava a tripulação, era muita gente num espaço limitado, e o aperto aumentou quando embarcou a delegação de diplomatas na França, onde havia começado a negociação com o embaixador chinês. Enquanto os marinheiros se apertavam e eram mal alimentados, o chefe da missão, Eduardo Aleixo Callado, embarcou com 40 caixas de vinho e um piano. Após mais de cinco meses de viagem, passando por Portugal, Gibraltar, França, Malta, Egito, Iêmen, Ceilão (hoje Sri Lanka) e Cingapura, o Vital de Oliveira finalmente chegou a Hong Kong, mas não pôde ficar.
O plano original era que a corveta esperasse na China até a conclusão da missão diplomática. No entanto, o comandante do navio, Arthur Silveira da Motta recebeu ordens do governo imperial brasileiro para retornar. Segundo o jornalista Elysio Mendes, dono da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, que viajou a Hong Kong para acompanhar a missão, os motivos da mudança de planos foram sanitários, políticos e de segurança. Foi declarado a bordo um surto de beribéri, causado por desnutrição. Havia ainda uma preocupação em evitar tanto a tensão entre navios europeus que faziam pressão sobre a China quanto a temporada de tufões que se aproximava.
Sendo assim, a corveta partiu em busca de segurança e deixou a delegação diplomática para cuidar da aproximação com a China. O retorno ao Brasil, porém, incluiu alguns dos momentos mais dramáticos da viagem, particularmente a travessia entre Yokohama, no Japão, e São Francisco, nos EUA, onde cinco membros da população morreram vítimas de beribéri. Segundo o relatório feito pelo médico da Marinha americana que atendeu os enfermos, E. Hebersmith, a corveta “violou todas leis sanitárias”. A fome dos pacientes chamou a atenção do médico. Mesmo após receberem refeições regulares, cinco deles foram até uma casa vizinha sem o conhecimento do médico implorar por comida.
Em entrevista, Jeff Franco, um dos autores do livro, disse considerar um absurdo o fato de jamais ter havido um esforço do governo brasileiro para localizar os mortos que ficaram pelo caminho e fazer o translado dos corpos para o Brasil. Segundo ele, há um no Egito, um no Chile e quatro nos EUA. Não há registro do destino que tiveram os desertores.
Sem o navio que o transportara, Eduardo Callado permaneceria na China por mais três anos em negociações com mandarins do império Qing. De Hong Kong, Callado e comitiva passaram por Xangai e Cantão até chegar a Tianjin, cidade a 100 quilômetros de Pequim. O primeiro contato oficial foi com o vice-rei Li Hung-Chang, que revelou “total desconhecimento” sobre a posição geográfica do Brasil, a ponto de perguntar se o país era banhado por algum mar. Ao saber que o Brasil só tinha 57 anos como nação independente, exclamou “com um sorriso desdenhoso: Oh! A China já era uma grande nação há quatro mil anos! 57 anos! É a minha idade”.
Entre muitas idas e vindas, as negociações derraparam na desconfiança dos chineses com iniciativas estrangeiras, no temor de que os trabalhadores fossem escravizados no Brasil e na resistência de Dom Pedro II em concluir o tratado. Era uma época turbulenta na China, que vivia rebeliões internas e as perdas sofridas para potências ocidentais após as Guerras do Ópio, que deram início ao chamado “século da humilhação”. Para promover a imagem do Brasil e facilitar as negociações, os diplomatas publicaram em vários jornais chineses um texto exaltando as condições favoráveis concedidas aos estrangeiros sob o governo de Dom Pedro II. Mas os problemas persistiram.
Com tantos percalços, e apesar dos esforços de Callado e sua comitiva, o desfecho não atingiu o principal objetivo da missão brasileira, que era o estabelecimento de um sistema de emigração de chineses para o Brasil. O resultado foi um tratado de amizade entre os dois países, que apenas garantia a livre circulação de súditos de um império para o outro.
Callado ainda tentou avançar o projeto por meio de um acordo com a China’s Steam Navigation Company, empresa que se encarregaria de transportar os trabalhadores chineses para o Brasil. A proposta da empresa era estabelecer uma linha regular entre a China e o Brasil mediante o pagamento anual de US$ 100 mil dólares. Para fechar o negócio, o presidente da empresa, Tong-King-Sing viajou ao Brasil, mas esbarrou na recusa de Dom Pedro II em que o governo arcasse com o subsídio.
A questão financeira não era a única preocupação do monarca em relação ao acordo de imigração chinesa. Havia também uma questão racial. Em encontro com o mandarim, Dom Pedro disse que “a influência étnica desses povos agravará ainda mais os aspectos heterogêneos de nosso povo”. A passagem de Tong pelo Brasil causou rebuliço: “alvo de curiosidade, de murmurações e troças, todos queriam vê-lo”, contam os autores. Acompanhado de seu secretário, um negro americano “resplandescente de diamantes”, o mandarim entrou para a cultura popular da época.
A viagem foi tão comentada que que virou marca de cigarro e até enredo de Carnaval: entre os coretos que brincaram nas ruas do Rio em fevereiro de 1881, um deles tinha uma alegoria em forma de casco de navio em alusão à corveta Vital de Oliveira. Machado de Assis dedicou a Tong-King-Sing duas crônicas ironizando a imigração chinesa, em que abusa do trocadilho entre “chim” (chin, de chineses) e “chimpanzé”. A passagem de Tong pelo Rio de Janeiro inspirou ainda a primeira revista teatral do Brasil, “O Mandarim”, escrita por Artur Azevedo e Moreira Sampaio, encenada com grande sucesso em 1884.
No fim das contas, concluem os autores, “a breve história da missão brasileira aponta para o fato de que uma vitória diplomática, em si, não garante o sucesso nas relações exteriores.”