Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), navios vindos da Europa trouxeram, junto aos passageiros, a gripe espanhola, causada por um subtipo do vírus influenza e que marcaria a história moderna como a pior pandemia antes da chegada da covid-19.
“No mundo, a gripe espanhola pode ter matado 50 milhões de pessoas, muito mais do que a Primeira Guerra Mundial”, diz Maria Cecília Barreto Amorim Pilla, professora do curso de História da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).
Já no Brasil, estima-se que as mortes causadas pela pandemia possam ter chegado a 35 mil. O Estado que mais sofreu foi o Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, onde morreram cerca de 15 mil pessoas.
Assim como vimos desde 2020, hospitais ficaram lotados e grandes eventos como campeonatos de futebol foram cancelados. Carnaval, então, nem pensar.
Mas quando o ano de 1918 terminou, aqueles que sobreviveram já haviam criado imunidade contra a doença, e aos poucos, os casos foram diminuindo.
Foi chegada a hora de “tirar o atraso” e celebrar tudo que não havia sido possível nos anos anteriores – pelas chuvas que marcaram o Carnaval de 1916 e 1917, pela crise econômica e clima de guerra em 1918, e principalmente pela doença que tirou tantas vidas.
Neste 2023, estamos diante de uma transição parecida: embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda classifique que estamos em uma pandemia, com a queda brusca no número de mortes e casos da doença após a vacinação contra a covid-19, diversas cidades brasileiras estão tendo o primeiro carnaval oficial desde que o coronavírus apareceu.
Se tomarmos 1919 como exemplo, é bom lembrar de como o escritor Ruy Castro definiu a festa que começou no primeiro dia de março: foi “a grande desforra contra a peste que dizimara a cidade”.
Uma estimativa feita pelo jornal A Noite à época apontava que o Carnaval de 1919 levou cerca de 400 mil pessoas ao Centro do Rio de Janeiro.
“Hoje sabemos que a ‘Espanhola’ foi embora em fins de novembro daquele ano e não voltou. Mas eles, que a viveram, não sabiam se ela voltaria ou não – o Carnaval de 1919 podia ser o seu último. Era uma atmosfera de fim do mundo. O negócio então era aproveitar ao máximo”, disse Ruy Castro em entrevista à BBC em julho de 2020.
Dias de festa com lembrança da peste
Em 1919, os blocos carnavalescos de rua como conhecemos hoje ainda não existiam. Mas grandes grupos chamados de sociedades, — que eram estabelecidos geralmente pela elite, mas com grande acompanhamento popular— levavam milhares de pessoas às ruas, principalmente na capital, o Rio de Janeiro.
Diferentes também das grandes escolas de samba atuais, as sociedades não adotavam um tema único para as apresentações, mas desfilavam diferentes histórias, não necessariamente conectadas umas as outras. Entre os temas dos desfiles, alguns dos grupos adotaram a memória dolorosa da peste como sátira.
“A maior sociedade da época, chamada de Democráticos, fez um carro alegórico com uma grande xícara, e nela estava escrito ‘chá da meia-noite'”, diz Pilla.
A professora explica que o “chá da meia-noite” fazia referência a um boato popular que corria na época.
Dizia-se que na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, que estava lotada por tantos pacientes infectados com o vírus, aqueles que estavam em estado grave, mas sem sinais de que morreriam em breve, recebiam o tal chá com veneno, em uma espécie de eutanásia forçada.
“Outras referências apareceram, como um carro alegórico com um tônico capilar, por causa da perda de cabelo causada pela gripe espanhola, alguns com alusões a supostos medicamentos milagrosos, à venda de galinhas para fazer canja, considerada também como um remédio. Uma sociedade de tamanho médio, a ‘Zuavos’, chegou a desfilar pela Avenida Rio Branco, uma carroça similar a que levava os corpos de mortos pelo vírus”, diz o jornalista David Butter, que escreveu o livro De Sonho e de Desgraça: o Carnaval Carioca de 1919.
As marcas deixadas pelo Carnaval de 1919
Há, ainda, certa memória popular construída por cronistas sobre o Carnaval de 1919. A imagem passada por autores como Nelson Rodrigues e Mário Filho é da festa menos conservadora que já havia ocorrido até então, inclusive em termos de liberação sexual.
Para Butter, a visão é mais mítica do que factual. “No início do século, em 1910 muitas das práticas que são citadas sobre o Carnaval de 19, como assédios de grupos de homens direcionados a mulheres e funcionamento de prostíbulos já aconteciam. Uma mudança no código de vestimenta das mulheres também era algo que já estava em curso.”
Mas isso não quer dizer que a festa não tenha deixado marcas. “Ele pode ter sido uma preview de toda a sensacional década de 20 no Rio. Na cidade, o Carnaval, que começou em 1603, quando saíram à rua os primeiros fantasiados, já era uma maravilha no século XIX — há muita literatura a respeito. O que aconteceu é que o Carnaval de 1919 foi especial, assim como tinha sido em 1912, quando, por causa da morte do Barão do Rio Branco, o Rio teve dois Carnavais”, diz Ruy Castro.
Uma diferença, aponta David com base na sua pesquisa para o livro, é que o Carnaval desse ano teve a presença de muitos mais grupos do que os anteriores.
“Grupos femininos, novas sociedades de diferentes tamanhos e inclusive o Cordão do Bola Preta, bloco mais antigo do Rio de Janeiro, começou ali.”
“Também teve um lado sombrio que pouco se fala, com a ocorrência de estupros, muitas crianças desaparecidas e crimes violentos em consequência dessa loucura, do êxtase”, diz Pilla.
Apesar de mais de 100 anos terem se passado, é possível traçar alguns paralelos entre a pandemia do século passado e a atual.
As escolas de samba perderam importantes integrantes devido à covid-19, como Laíla, diretor de Carnaval da Beija-Flor, Maurina Feitosa de Carvalho, presidente da escola de samba 28 de Setembro, Marco Diniz, diretor de harmonia da Grande Rio, e os sambistas Carlinhos Sebá e Nelson Sargento.
Pela memória recente da covid-19, assim como foi feito com a gripe espanhola, em 2022 diversas escolas de samba desfilaram temáticas relacionadas à pandemia.
“Outro ponto é que para quem ficou em casa nos últimos dois anos e gosta do Carnaval, a mesma saudade da festa que estava presente em 1919 aparece agora”, diz Butter.
*Com colaboração de Ligia Guimarães