Especialista diz que situação nos Estados Unidos é menos preocupante do que na Europa tanto em termos de PIB quanto de inflação.
Sócia e estrategista-chefe da SM Managed Futures, consultoria especializada em gestão de recursos para clientes no Brasil e no exterior, Vitoria Saddi é PhD em economia pela University Southern California e carrega forte bagagem como professora em instituições de ponta no Brasil e nos Estados Unidos. Esse olhar segundo Edson Rossi, da IstoÉ Dinheiro, que mixa o dia a dia do mercado com os conceitos mais avançados da teoria macroeconômica ela usa para analisar o cenário global. Não acredita em recessão mundial, vê a inflação persistente nos EUA e enxerga um momento especial de oportunidade para o Brasil com a previsão de crescimento do PIB chinês. “Entre 4% a 5% este ano e de 5% a 8% em 2024”, afirmou na revista.
IstoÉ Dinheiro — O FMI prevê um mundo de inflação ainda elevada, apesar de menor (8,8% em 2022 e 6,5% em 2023), e crescendo menos (3,2% em 2022 e 2,7% em 2023). Mas alguns especialistas falam numa recessão. Você prevê qual cenário?
VITORIA SADDI — Vai existir desaceleração global, recessão não. Será pontual em alguns países da Europa, como Alemanha, Inglaterra e talvez França. Em outros deve ocorrer desaceleração do crescimento, mas acho difícil que isso vire um PIB negativo.
Por que a Europa vai sofrer mais?
O problema da guerra existe, mas mesmo com seu fim há inflação por causa dos custos de energia e a impossibilidade de solucionar isso a curtíssimo prazo. Não há como construir gasodutos até o ano que vem, por exemplo. Isso está explodindo os custos. Aí o BC Europeu tem de subir juros. E é possível que essa alta demore muito a segurar os preços, se é que vai. Então vai existir uma situação bem mais recessiva do que no restante do mundo.
Você acredita que o BC Europeu foi um pouco lento na reação de subir juro?
Muitos dizem que sim. Só que [a alta dos preços] não foi só por causa da guerra. É um componente muito mais estrutural por causa do aumento do preço do gás. É mais ou menos como foi o choque do petróleo, lá de 1974. Se subissem juros antes isso iria mudar? Acho que não muito. Apesar disso, sem dúvida a decisão do BCE foi errada [na demora], tanto quanto a do Fed.
Essa dependência energética também nasce da decisão tomada pela Alemanha, a maior economia do bloco, de abrir mão da energia nuclear e tornar-se dependente do gás russo. Foi erro estratégico?
Não sei se é um erro. Foi uma escolha. O Partido Verde é muito forte e todo mundo sabia que a Rússia mais cedo ou mais tarde faria isso. Mas a [ex-chanceler] Angela Merkel foi eleita com a promessa de acabar com a energia nuclear e cumpriu. Acima de tudo era algo acordado pela sociedade.
Será mais difícil aos europeus sair da crise?
Sim, mas não drasticamente. O mundo hoje caminha em ciclos e é quase impossível você ver, por exemplo, várias economias em crise e outras crescendo. Com exceção da China, os países caminham juntos em termos de crescimento, de inflação… Os ciclos são muito mais harmônicos e ordenados do que eram há 20 anos. Por que falo isso? Porque a situação nos Estados Unidos, que rege essa orquestra, é menos preocupante do que a situação na Europa tanto em termos de PIB quanto inflação, o que traz bons sinais.Mas a inflação americana, apesar de desacelerar, ainda navega acima das metas tradicionais, ali na casa de 2%. Foi uma surpresa essa resiliência?
Foi. Eles consideravam que a inflação seria mais transitória, na Covid, e chegou-se à conclusão, em março do ano passado, que não seria transitória. Aí ela já estava em mais de 6%. Eu sei que eles preferem inflação à deflação. Qualquer um preferiria. Ainda assim ficava claro pelo mercado de trabalho, que estava muito acima do pleno emprego, que haveria impacto na inflação mais cedo ou mais tarde. O Jerome Powell [presidente do Fed] chegou a afirmar que eles sabem lidar com a inflação, mas não sabem lidar com a deflação que a Covid poderia causar.
Os EUA não sabem lidar com uma economia que patina?
Desde 1998 eles vinham convivendo com taxa de desemprego abaixo de 5% e paralelamente com inflação também baixa. Eu dava aula lá e era questionada pelos alunos. Porque há um conceito, a Curva de Phillips, que mostra o trade-off entre inflação e desemprego [um cai e o outro sobe e vice-versa]. Ou seja, é quase impossível você reduzir a inflação ou ter inflação baixa sem o aumento do desemprego. E os alunos perguntavam, ‘mas e aí, como é que explica a situação atual?’ Eles ficaram 20 anos contradizendo isso [Curva de Phillips].
O Fed vai manter juro alto muito tempo?
No fim de 2022, o Fed divulgou que a previsão é que a taxa de 4,5% vá para 5,5% até o final de 2023. Alta de apenas 1%. É quase impossível que essa alta produza queda significativa da inflação pra que fique em torno da meta, cerca de 2%. O mais importante, e poucos veem, é a inflação de serviços. É a melhor proxy que a gente tem do mercado de trabalho. O desemprego está muito baixo, salário crescendo, 200 mil novos empregos todo mês. A economia está ótima. E isso aí bate na inflação de serviços, que está em 7,5% e sobe.
Muita gente no mercado diz o oposto, não?
Realmente em relação ao ano anterior a inflação caiu um pouco. Agora, dizer que isso vai provocar recessão? Não. Vai provocar desaceleração. E se só for isso o aumento dos juros, a inflação vai ficar em 5% ou 6%.
Qual o impacto no Brasil de um juro americano elevado por mais tempo do se estimava?
Espero que [aqui] o juro suba ou se mantenha. Porque vai haver mais gasto [público]. Se mesmo assim houver redução de juros a conta não fecha. Aí vai ser a Argentina, com quase 100% de inflação.
Olhar para a China, nosso maior parceiro no comércio exterior, é uma oportunidade?
Sim, a China é um outlier nos últimos 20 anos. Minha previsão é de que cresçam de 4% a 5% este ano e de 5% a 8% em 2024. Com isso o Brasil se beneficiará extremamente. Por fatores políticos e por fatores econômicos, a China vai voltar a crescer a taxas muito elevadas e isso vai beneficiar os emergentes. O que pode até neutralizar problemas domésticos, ser uma alternativa pro crescimento brasileiro.
Ou seja, dá até pra camuflar um pouco essa lambança fiscal que a gente vive internamente. Seria um novo grande ciclo de commodities?
Acho que ainda é prematuro dizer que a gente vai entrar num novo ciclo de commodities. Eu não falaria isso porque a recuperação da China ainda não ocorreu. Agora, imagine quando ocorrer.
Como enxerga a aproximação da China com o Mercosul?
É uma ótima oportunidade.
E sobre a tal de moeda única do Mercosul?
Não sei se moeda única [agora], mas alguma coisa nesse sentido. É importante entender que o euro surgiu como moeda em 1999, mas antes de mais nada foi um sonho que nasceu no Tratado de Roma, em 1957. Se uma ideia não for fomentada o futuro vai ficar lá e a gente nunca vai chegar nele.
Não há como desvincular que o Brasil teve uma gestão federal que batia muito de frente com a China. O quanto a mudança de governo pode nos beneficiar?
O Bolsonaro era muito cavalo. Sem dúvida agora há uma oportunidade. Mas para replicar o que aconteceu no primeiro governo Lula vai ser preciso um esforço fiscal. No primeiro governo dele, teve contenção de gasto, mas o País crescia por causa do boom de commodities. Então o esforço fiscal foi menor do que o necessário agora.
E com o perfil da equipe econômica você acredita que isso será provável?
É muito difícil que o atual governo, o time do Fernando Haddad e o próprio Haddad consigam ter controle fiscal ou produzir superávit primário apenas com o aumento de receita. É muito utópico. Por isso foi estabelecido o teto de gastos. Seria preciso entender que o teto ultrapassa a questão econômica. É como em qualquer lugar, qualquer casa. Você tem receita, despesa e uma hora a conta chega.
Mesmo que haja uma reação econômica global num médio prazo?
Claro que se o mundo começar um ciclo virtuoso e existir aumento da receita pra equalizar as contas, ok. Mas acho bastante difícil [esse equilíbrio]. Não só. Acho difícil que aconteça também pela composição dos integrantes da equipe do Haddad. Com exceção do Bernard Appy (secretário da Reforma Tributária), os outros são pessoas que pregam MMT [Modern Monetary Theory, que defende elevação do gasto público como propulsor do crescimento] e outras coisas bem heterodoxas.
Ou seja, é preciso olhar para a despesa sempre?
Nu e cru: cortar gasto é uma das coisas mais difíceis em qualquer país do mundo. Ninguém quer. Todo mundo quer ser legal, né? Dar dinheiro, ser rico, são valores universais. Cortar gasto ninguém quer.