Segundo o Código de Direito Canônico, poder do papa só chega ao fim com sua morte ou com renúncia apresentada por livre e espontânea vontade
A internação do papa Francisco com pneumonia e uma condição crítica de saúde vem gerando debates e especulações sobre seu futuro à frente da Igreja Católica e sobre o dia a dia da administração do Vaticano.
O papa foi internado no dia 14 de fevereiro, após sentir dificuldade para respirar. Desde então tem alternando momentos de melhora e piora desde que deu entrada no Hospital Gemelli, em Roma, em um quadro de saúde classificado como “complexo”.
O próprio papa já contou que deixou pronta uma carta de renúncia que pode ser utilizada em situação extraordinária. No caso, se houver uma incapacidade dele de conduzir a instituição.
Francisco chegou a sofrer dois episódios de insuficiência respiratória aguda na segunda-feira (3/3) e, desde então, tem se mantido estável, conforme os boletins divulgados diariamente pelo Vaticano.
Os informes têm reiterado que Francisco está consciente e, na medida do possível, exercendo algumas funções de trabalho.
“Neste momento, o papa está tomando as decisões que pode tomar, que dependem dele. Mensagens, nomeações, textos que seriam discursos. Seus assessores trazem o rascunho, ele mexe no texto, aí sai”, comenta à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e diretor do Lay Centre, também em Roma.
“Quando eles falam nos boletins que o papa ‘realizou atividades de trabalho’, é um pouco isso: ele estava ali sentado, lendo algumas coisas, aprovando alguns documentos. Ele tem secretários que estão lá e fazem esse trânsito de documentos”, contextualiza.
“Quando ele está mal, com crises, respiração mecânica, essas coisas, aí acho que ele não consegue fazer nada disso. Algumas coisas ficam na espera, outras não dependem diretamente dele, porque os dicastérios da Cúria Romana já estão delegados para os cardeais, o papa não precisa participar de tudo”, diz Domingues.
“Enquanto ele estiver consciente, o que não depende dele vai para frente, o que depende fica parado até que haja uma normalização da situação.”
Oficialmente, o Vaticano não tem se manifestado a respeito do que aconteceria se o quadro de saúde do pontífice piorar a ponto de ele não conseguir agir conscientemente.
Os boletins repetem que o prognóstico é “reservado”, embora enfatizem que o religioso, de 88 anos, enfrenta um quadro complexo de saúde.
As experiências de João Paulo 2º e Bento 16
A existência de uma carta de renúncia que pode ser usada em caso de necessidade foi revelada pelo papa em 2022.
“Em 2022, em entrevista ao jornal espanhol ABC, o papa Francisco disse que assinou em 2013 [no primeiro ano de seu pontificado] um documento de renúncia, em caso de uma doença que o impedisse de governar a Igreja”, diz o teólogo e padre Dayvid da Silva, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“Não é o caso, por enquanto, porque ele está consciente e até mesmo assinando decreto, preparando homilias… A Igreja está rezando para que ele se recupere logo, para que possa retomar as suas atividades”, comenta.
Uma descrição da entrevista no site de notícias do Vaticano reproduz a resposta dada pelo pontífice aos jornalistas do veículo espanhol na ocasião: “Assinei a renúncia e lhe disse: ‘Em caso de impedimento médico ou o que quer que seja, aqui está a minha renúncia'”. Ao que os entrevistadores questionam: “O senhor quer que isto seja conhecido?”
“É por isso que estou lhes dizendo”, responde Francisco.
A carta teria sido entregue pelo pontífice ao cardeal italiano Tarcisio Bertone, que era na época o secretário de Estado do Vaticano. Hoje, estaria sob a guarda do cardeal Pietro Parolin, que ocupa o mesmo posto.
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“O teor da carta, pelo que se deduz, é que dependeria de um parecer dos médicos de confiança de Francisco, aqueles que tratam dele e, assim, têm uma legitimidade para tanto”, contextualizou um vaticanista ouvido pela reportagem, que não quis que seu nome fosse divulgado por não se sentir à vontade especulando sobre a situação de saúde do papa.
Segundo esse vaticanista, isso seria em casos de “chegar ao ponto de, por exemplo, o papa ser intubado, ficar inconsciente, e não mais voltar”.
“Poderia ser numa situação dessas ou em caso de ele demorar muito, ficar muito tempo nesse estado”, complementa.
Para o observador, contudo, o uso dessa carta não faria sentido se houver um prognóstico médico de que uma eventual intubação não se prolongaria por mais do que uma semana, por exemplo.
O vaticanista lembrou que em diversas situações o próprio papa já se manifestou dizendo que uma renúncia deve ser entendida como exceção na história da cúpula da Igreja. “Para usarem essa carta, teria de ser uma situação prolongada.”
Um outra situação possível para o uso dessa carta de 2013, diz, seria se o papa tivesse uma doença como Alzheimer, o que não é o caso agora.
A BBC News Brasil questionou o Vaticano, por meio do Dicastério para a Comunicação, tanto sobre a existência ou não de uma carta de renúncia emergencial quanto sobre eventuais direcionamentos do papa quanto ao uso ou não de determinados procedimentos médicos. O órgão oficial não respondeu.
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A experiência dos dois predecessores de Francisco são ingredientes que mexem com a cúpula do Vaticano de forma especial nesse momento em que o líder máximo da Igreja Católica está internado.
João Paulo 2º (1920-2005), papa que comandou a Igreja de 1978 até sua morte, em 2005, definhou publicamente devido ao agravamento da doença de Parkinson. Ele já vinha apresentando dificuldades motoras e de fala pelo menos desde 1993, mas oficialmente o quadro só foi revelado em 2001.
Seu sucessor, Bento 16 (1927-2022), foi papa por apenas oito anos e em fevereiro de 2013 decidiu renunciar, alegando que sua idade avançada já não permitia exercer o pontificado de forma adequada.
Foi o primeiro sumo pontífice a abdicar do trono em quase 600 anos de catolicismo.
Da conjunção dessas duas histórias ficou um novo panorama possível para a Igreja, conforme comentou com a BBC News Brasil um religioso ligado ao Vaticano, que pediu para manter o anonimato porque não está autorizado a falar sobre o tema.
“Um líder visivelmente debilitado, agonizando publicamente, não parece uma imagem conveniente para a instituição, tampouco humana para o indivíduo que, enquanto pessoa e paciente, também teria direito a se tratar em privacidade”, disse ele.
Assim, nos corredores da Santa Sé, a ideia de um novo fim ao estilo de João Paulo 2º deixou de ser desejável. Nas palavras do religioso ouvido pela reportagem, isso seria “uma desnecessária exposição que tenderia a ser ainda maior em tempos de redes sociais”.
O outro fato foi o gesto de Bento 16. Ao repetir um gesto que havia sido feito pela última vez por Gregorio 12 (1335-1417) em 1415, ou seja, renunciar, ele tirou um peso de quase 600 anos de história de seus sucessores.
“A partir de Bento, uma renúncia tornou a ser possível”, diz o religioso.
Bioética e decisão do camerlengo
No meio disso tudo, há um debate bioético religioso, ou seja, sobre o uso ou não de recursos médicos extremos para a manutenção da vida.
A Igreja Católica, em sua doutrina, ensina que a vida começa na concepção e termina na morte natural.
Por isso, como diz um especialista em direito canônico ouvido pela reportagem, a Igreja permitiria a interrupção de “meios extremos e extraordinários” para manter uma pessoa viva, se isso for configurado como algo “excessivamente artificial” de “suporte à vida”.
O especialista, contudo, reconhece que há muitas nuances a serem observadas, com ambiguidades e diferentes interpretações possíveis.
Conforme noticiou o jornal The New York Times, o arcebispo Paul Richard Gallagher, atual secretário para as Relações com os Estados do Vaticano, afirmou que lhe disseram “que havia algum documento preparado por Bento 16” sobre como deveria ser conduzida essa questão em caso de necessidade.
Contudo, Gallagher disse desconhecer os detalhes do conteúdo dessa carta e não sabe se Francisco concorda ou não com esse teor.
Publicamente, o papa já se manifestou sobre os limites éticos da manutenção da vida. Em 2017 ele argumentou que entendia ser “moralmente legítimo” renunciar ou descontinuar algumas intervenções se elas apenas servissem para “atrasar um fim inevitável”.
“Cirurgias e outras intervenções médicas se tornaram cada vez mais eficazes, mas nem sempre são benéficas”, declarou ele.
Três anos depois, o Vaticano publicou um documento no qual explicitava que cuidados “extraordinários” podem ser interrompidos para “evitar sofrimento prolongado no fim da vida”. O texto deixava claro que isso não era para ser entendido como eutanásia ou suicídio assistido, ambos considerados “malignos” pela Igreja.
No caso específico atual, pessoas próximas ao Vaticano ouvidas pela reportagem disseram desconhecer se ele deixou instruções específicas.
“Mas, conhecendo a sua personalidade, acho que se chegar a um ponto em que ele entenda que não dá mais, não vai querer esticar a corda mais do que o necessário”, afirma uma dessas pessoas.
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“Quando se trata da vacância da Sé Apostólica, o Direito Canônico da Igreja Católica é explícito em casos de morte ou renúncia do papa. Nos eventuais casos de perseguição, prisão ou incapacidade prolongada, não existem leis, mas o papa pode deixar instruções específicas, que só serão conhecidas quando reveladas por quem validamente as recebeu”, esclarece o teólogo e jornalista Domingos Zamagna, professor na PUC-SP e na Faculdade São Bento.
Ele reforça que a regra é que “no impedimento da missão apostólica” do papa, “o governo da Igreja é exercido interinamente pelo colégio dos cardeais, comandado pelo camerlengo”.
Atualmente, o posto é ocupado pelo cardeal irlandês Kevin Joseph Farrell — é o camerlengo quem possui poderes para convocar um conclave para a eleição de um novo papa, por exemplo.
Zamagna explica que em casos “não previstos pelo Direito Canônico, cabe ao camerlengo tomar a iniciativa de prover a Igreja da sua continuidade administrativa”.
Nesse sentido, a função desempenhada hoje por Farrell é chave, pois cabe ao camerlengo declarar “a morte ou o impedimento” do papa. “No caso de enfermidade impeditiva de governo, as coisas se tornam mais complexas”, comenta o teólogo.
“Porque a doutrina da Igreja resiste em autorizar, por exemplo, o desligamento de aparelhos de manutenção da vida vegetativa de um paciente, já que a própria concepção de morte, para a teologia, não se coaduna necessariamente com o entendimento da medicina”, contextualiza.
“Certamente, com a assessoria de teólogos e juristas e o parecer por voto qualificado dos cardeais presentes em Roma, o camerlengo terá de assumir a responsabilidade de decidir o que é melhor, evangelicamente falando, para o bem do povo de Deus.”
Vice?
Na hierarquia do Vaticano não existe a figura de um “vice” para o papa. Ou seja: enquanto ele estiver vivo e não tiver apresentado uma renúncia, ninguém está apto a substituí-lo, nem de forma temporária.
“De acordo com o Código de Direito Canônico, o papa é quem tem, na Igreja, o ‘poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal, que pode exercer sempre livremente'”, afirma Silva.
“Isso significa que ele é a autoridade máxima da Igreja Católica no mundo inteiro. Dessa forma, não há nenhum outro ministro da Igreja que possa substituí-lo no cargo com plenos poderes”, acrescenta o professor.
“Ainda, de acordo com o Código de Direito Canônico, o poder papal só chega ao fim com a sua morte ou com uma renúncia apresentada por livre e espontânea vontade diante de algumas testemunhas”, contextualiza o teólogo.
“Foi o que aconteceu com Bento 16. Quando ele renunciou, colocou uma data a partir da qual a Igreja passaria pela chamada ‘sede vacante’, obrigando os cardeais a eleger um novo papa por meio do conclave.”
Desta forma, enquanto o papa seguir hospitalizado, o andamento da máquina estatal do Vaticano pode ficar comprometido.
Decretos e outros documentos que dependam da anuência do papa só são publicados quando ele consegue exercer suas atividades, mesmo do quarto do hospital.
Isto porque, conforme esclarece Silva, “não há nenhum dispositivo no Código de Direito Canônico que indique que, em caso de doença grave ou mesmo de inconsciência do papa, a Igreja tome algumas decisões”.
Ele lembra que o cânon 355 esclarece: “durante a vagatura ou total impedimento da Sé romana, nada se inove no governo da Igreja Universal; observem-se as leis especiais formuladas para tais circunstâncias”.
“Ou seja: os organismos continuarão funcionando normalmente, até que o papa retome as sua atividades”, diz. “Ou, em caso de morte do papa, que seja eleito um novo. Mas não se inova nada, não se lança nenhum decreto.”