As multidões de manifestantes insatisfeitos com políticos e governos que geraram fotos impressionantes em 2019 não se espalharam só pelas ruas de países da América Latina, como muita gente pensa.
Na África, na Europa e na Ásia, além das Américas, governantes foram pegos de surpresa por massas que decidiram sair do sofá – ou das redes sociais – para revindicar diferentes pautas.
Apesar de distintos em suas causas, métodos e objetivos, há pontos em comum nos atos mundo afora.
O primeiro é a desigualdade econômica – o que pode ser notado pela quantidade de países que registraram protestos devido ao aumento nos preços de serviços básicos (de combustíveis e transporte público ao acesso à internet), além do impacto das reformas e pacotes de austeridade no bolso dos mais pobres.
Outro ponto comum é a corrupção – uma das palavras mais repetidas pelos manifestantes, seja em democráticos mais estáveis, como a Itália, seja em sistemas políticos mais fechados e controlados, como o Egito.
Completando esta tríade aparece a liberdade política – de Hong Kong à Espanha, passando pela Bolívia, manifestantes gritaram por direitos a eleições transparentes, autonomia e liberdade política.
A crise global, segundo analistas, pode se aprofundar em 2020 – a ponto de o governo de Jair Bolsonaro demonstrar preocupação com possíveis reflexos da onda de megaprotestos nas ruas brasileiras.
Em outubro, em meio às manifestações no Chile, Bolsonaro disse, na China, que seu “governo não pode deixar de se antecipar aos problemas”.
“Isso faz parte de qualquer país do mundo: é saber como setores da sociedade estão se comportando para você poder negociar com antecedência”, afirmou.
Questionado na época sobre quais ameaças teriam sido registradas pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o presidente brasileiro se limitou a dizer que “devemos sempre nos preparar para o pior para poder reagir com serenidade e objetividade”.
Confira a seguir um resumo das origens e desfechos dos principais protestos registrados pelo mundo em 2019:
Irã
O aumento nos preços de combustíveis foi o estopim para uma multidão ir às ruas de diversas cidades do país islâmico, em novembro desse ano – o custo da gasolina triplicou da noite para o dia no Irã.
Na tentativa de conter as manifestações, o governo decidiu bloquear o acesso à internet no país, dificultando a articulação dos manifestantes por redes sociais ou aplicativos de mensagens.
Ao mesmo tempo, a comunidade internacional também não conseguiu acompanhar em tempo real o que estava acontecendo na capital, Teerã, e em seus arredores.
ONGs como a Anistia Internacional demonstraram preocupação com o “apagão” e criticaram o bloqueio da internet. Segundo o ONG, mais de 100 pessoas teriam morrido em 5 dias de protestos duramente reprimidos por forças policiais.
O número, no entanto, poderia chegar a 300.
Líbano
No Líbano, a razão que levou uma multidão de manifestantes às ruas pode surpreender muitos brasileiros.
A origem daqueles que são considerados os maiores protestos do país nos últimos 15 anos é o WhatsApp.
Em 17 de outubro, o governo lançou a ideia de cobrar taxas para ligações feitas pelo aplicativo com o objetivo de aumentar a arrecadação dos cofres públicos. O pano de fundo era a crise econômica que se aprofundou no último ano.
A ideia de uma espécie de imposto sobre o WhatsApp, junto a novas taxas sobre produtos como combustíveis e cigarros, foram a gota d’água para que a população libanesa resolvesse ir para as ruas protestar contra o mau uso de recursos públicos pelo governo.
Ao notar o caos gerado pelo anúncio de novos impostos, o governo recuou e anunciou que não taxaria mais o WhatsApp.
Mas era tarde demais.
Após duas semanas de manifestações, o primeiro-ministro Saad al-Hariri renunciou, afirmando que o país havia chegado a um “beco sem saída”.
O Líbano tenta formar um novo governo – e os manifestantes, descrentes com os politicos, continuam nas ruas.
Colômbia
O presidente colombiano Ivan Duque foi surpreendido no fim de novembro, quando uma greve de grandes proporções lotou ruas do país.
Autoridades decretaram toque de recolher e lançaram bombas de gás lacrimogêneo para conter vandalismo e saques em lojas.
Conhecidos dos brasileiros, os famosos panelaços também foram ouvidos em Bogotá, capital do país.
A razão dos protestos não é tão clara quanto a de outros países.
Parte dos manifestantes dizia ter ido protestar para evitar um suposto “pacotaço” que afetaria aposentadorias e salário mínimo.
Mas o governo nega qualquer plano de mudanças. Assim, não se sabe se o projeto foi engavetado depois dos protestos, ou se de fato os planos nunca existiram.
Falta de investimentos em educação e uma onda de assassinatos de indígenas, líderes sociais, ativistas e ex-guerrilheiros das Farc também estão na lista de razões apontadas por manifestantes e analistas para o início das manifestações.
França
Os chamados “coletes amarelos” surgiram no fim do ano passado, mas ganharam fama em 2019, graças a uma série de grandes protestos consecutivos que incluíram depredações de lojas de luxo, carros e agências bancárias.
Os protestos surgiram em cidades pequenas, pelas mãos de franceses pobres que sofriam com o aumento dos impostos sobre combustíveis.
Mas os atos cresceram, se espalharam e se transformaram em uma revolta mais ampla contra as elites e a classe dominante francesa. A pauta, como no Brasil de 2013, se tornou ampla, e as massas passaram a reunir grupos com diferentes orientações políticas – da “extrema direita à extema esquerda”, segundo a imprensa francesa.
Quando os atos dos coletes amarelos pareciam peder força, um novo grupo, este organizado em torno de sindicatos e movimentos sociais, foi às ruas de Paris neste mês de dezembro.
Dessa vez, os protestos foram contra a reforma da Previdência proposta pelo governo de Emmanuel Macron. Segundo os jornais franceses, centenas de milhares de pessoas em todo o país protestaram contra as reformas econômicas do governo.
O transporte publico de Paris chegou a quase parar no auge dos protestos.
Bolívia
Na Bolívia, o estopim para as manifestações foram as eleições gerais de 20 de outubro.
Os primeiros resultados apontavam para um segundo turno entre o então presidente Evo Moraels e Carlos Mesa, segundo colocado no pleito.
A divulgação dos resultados foi interrompida e, quando voltou, Evo apareceu com margem suficiente para ganhar as eleições no primeiro turno e se manter, pela quarta vez, no cargo político mais alto do país andino.
Muitos bolivianos foram às ruas protestar contra uma suposta fraude no processo – tese reforçada por orgãos internacionais como a Organização dos Estados Americanos e a União Europeia.
A tensão escalou rapidamente, se espalhou pelo país e houve muita violência, desde ataques a jornalistas e políticos até ofensas racistas contra indígenas, passando por saques e destruição nas ruas da capital, La Paz.
Evo ainda tentou controlar a onda de violência decretando estado de emergência no país, mas não teve sucesso – especialmente quando membros de forças de segurança (Exército e polícias) passaram a se recusar a conter os protestos.
O líder indígena chegou a aceitar novas eleições, mas a pressão foi tamanha – vindo inclusive da principal liderança do Exército, que sugeriu que ele renunciasse – que Evo deixou o governo e pediu asilo no México.
De lá, o ex-presidente boliviano viajou para a Argentina, onde recebeu asilo definitivo do novo presidente, Alberto Fernández.
Quem assumiu o comando da Bolívia foi a ex-senadora Jeanine Áñez, que se declarou presidente interina do país, mesmo sem que houvesse a quantidade mínima de parlamentares necessária para confirmá-la no cargo.
Agora, os bolivianos esperam por novas eleições.
Chile
“Não é só por 20 centavos.”
O mote dos protestos de junho de 2013 no Brasil poderia estar nas ruas do Chile neste ano de 2019.
A gota d’água para a tensão no vizinho sul-americano foi um aumento de 30 pesos chilenos (cerca de 17 centavos de real) nas tarifas de metrô da capital Santiago.
O resultado imediato foram cenas mostrando centenas de pessoas invadindo estações, pulando catracas, quebrando portões e ganhando as ruas da capital chilena.
Saques foram registrados em todo o país e a polícia reagiu com extrema violência, segundo observadores chilenos e internacionais.
De acordo com uma associação médica chilena, mais de 230 pessoas perderam a visão total ou parcialmente após levarem tiros de balas de borracha ou chumbo vindos da polícia.
Pela primeira vez desde a ditadura de Augusto Pinochet, o Exército foi para as ruas do país, que decretou 15 dias de estado de emergência. Mais de mil pessoas foram presas e pelo menos 20 morreram.
O Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, hoje chefiado pela ex-presidente chilena Michelle Bachelet, criticou a violência e acusou o governo de “fracassar em seguir as normas internacionais”.
O atual presidente Sebastián Piñera recuou nos aumentos das passagens e convocou um plebiscito para a discussão de uma nova Constituição – uma das principais demandas dos manifestantes, que criticam a Carta Magna que vigora desde o período Pinochet.
Hong Kong
As manifestações mais persistentes de 2019 acontecem em Hong Kong, um território semiautônomo da China que há muitos anos tem movimentos que defendem sua independência do gigante asiático.
Os atos começaram no fim de março, a partir de um projeto que permitiria a extradição de pessoas para a China continental.
A ideia gerou revolta porque China e Hong Kong têm sistemas de leis distintos e, para os críticos, a proposta poderia expor a população a julgamentos injustos e um tratamento violento, além de proporcionar à China maior influência sobre o território.
Alguns manifestantes adotaram o lema: “Cinco demandas, nem uma a menos!” São elas: que os protestos não sejam caracterizados como “motim”; conceder anistia aos manifestantes presos; conduzir uma investigação independente sobre suposta violência policial; implementar o sufrágio universal completo.
A quinta demanda, que seria derrubar o projeto de lei sobre extradição, já foi atendida.
Os manifestantes também pedem a renúncia da líder de Hong Kong, Carrie Lam, considerada por eles “uma marionete de Pequim”.
O maior protesto aconteceu em 9 de junho, quando mais de um milhão de pesoas foram as ruas segundo organizadores.
Muitos meses depois, a crise não dá sinais de que vá arrefecer.
Egito
Cairo, a capital egípcia, e diversas outra cidades do país foram tomadas de pessoas pedindo a queda do líder Abdel Fatah al-Sisi, que chegou ao poder após um golpe de Estado em 2013.
As manifestações teriam sido convocadas por Mohamed Aii, um ator e empresario egípcio que vive exilado na Espanha e acusa sistematicamente o governo de corrupção.
As manifestações de rua são raras na história do Egito por conta da dura repressão que os protestos costumam sofrer.
Dessa vez, no entanto, TVs e jornais internacionais registraram imagens fortes de manifestantes pisando, cuspindo e ateando fogo em fotografias do presidente.
Uma forte atuação policial parece ter contido os protestos – mas não há garantias de que eles não ganhem fôlego novamente no ano que vem.
Equador
Outro país latino-americano a decretar estado de emergência na tentativa de conter manifestantes foi o Equador.
Os combustíveis também foram o motivo inicial dos protestos – em troca de empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI), o presidente Lenín Moeno decidiu tirar subsídios da gasolina, o que faria os preços aumentarem.
A reação popular foi imediata e a capital do país chegou a ser transferida temporariamente de Quito para Guayaquil.
O presidente recuou nos aumentos, e a situação pareceu se acalmar.
Espanha
Os protestos pela independência da Catalunha não são novidade.
Neste ano, eles eclodiram em outubro, em reação a uma decisão do Supremo Tribunal Federal do país de condenar a mais de 10 anos de prisão um grupo de 9 lideres de movimentos separatistas, que haviam convocado um plebiscito discutindo a independência da região.
A Catalunha, onde está Barcelona, tem idioma e cultura diferentes do resto da Espanha.
Os protestos, em geral pacíficos, evoluiram para violência e confronto entre manifestantes e policiais.
Eles devem continuar em 2020, já que não há perspectivas de solução para o impasse.
Iraque
Piora em acesso a serviços básicos, desemprego e a corrupção estão na raiz dos protestos que se espalharam neste ano pelo Iraque.
A violência marcou as marchas no país árabe, onde mais de 200 pessoas teriam morrido durante os protestos, que foram além da capital Bagdá e se espalharam por diversas cidades.
Em uma tentativa de acalmar os manifestantes – e como resultado direto das mobilizações -, o primeiro-ministro Adil Abdul Mahdi anunciou sua renúncia no fim de novembro.
Segundo o think tank Monitor do Oriente Médio, o Conselho Judicial Supremo do país ordenou, em dezembro, a libertação de 2.700 manifestantes detidos pelas agências de segurança do país por participarem dos protestos.
Os manifestantes, no entanto, não desistiram e pedem uma mudança completa no sistema politico do país, que foi renovado em 2003 após a queda de Saddam Hussein.
Sudão
Em abril de 2018, as Forças Armadas do país africano derrubaram o ex-presidente Omar al-Bashir, após 30 anos no poder.
Em dezembro, ele foi condenado a dois anos de prisão por corrupção, após autoridades encontrarem 7 milhões de euros na casa do ex-líder, que promete recorrer da decisão.
Um conselho militar governa o país desde a deposição.
A junta deve continuar no poder pelos próximos 3 anos, prazo estimado para a transição rumo a um governo civil e democrático.
No entanto, os manifestantes, que celebraram a queda de Bashir, não querem esperar até 2022.
Eles pedem um governo civil e prometem continuar a onda de protestos – apesar da dura repressão dos militares, que já teriam matado pelo menos 100 ativistas (o número não é confirmado pelo governo local).
Itália
“Sardinhas”.
Assim se chamam os manifestantes que lotaram a praça San Giovanni, em Roma, neste mês de dezembro, contra a influência política do ex-ministro do Interior Matteo Salvini – considerado a principal voz da extrema-direita no país e hoje um dos políticos mais populares da Itália.
A policia e a prefeitura de Roma dizem que 35 mil “sardinhas” estavam na praça – mas os manifestantes dizem que 100 mil pessoas passam por lá.
O apelido surgiu porque os manifestantes vêm se espremendo, literalmente, em protestos embalados pela musica Bella Ciao, um hino antifascista tradicional no país.
Além de protestarem contra a Liga, partido liderado por Salvini, os manifestantes querem abolir um decreto assinado pelo ex-ministro que proíbe e pune navios que trouxerem para a Itália imigrantes resgatados no mar Mediterrâneo.
Haiti
Segundo a ONU, mais de 40 pessoas morreram nas protestos que se espalham pelo Haiti pedindo a queda do presidente Jovenel Moise, que está no poder desde 2017.
A capital, Porto Príncipe, é o principal palco de manifestações.
Diferentes de muitos protestos registrados neste ano, as marchas no Haiti vêm sendo marcadas pela presença de famílias vestindo branco e dançando ao som de artistas famosos.
O ponto de partida, neste caso, foi a falta de combustíveis – um problema registado desde agosto.
Inflação, desemprego e altos índices de violência também estão entre os principais problemas apontados pelos manifestantes.