“Eu sou a aula de vocês na prática”. Assim começou o primeiro dia de aula de um curso de compliance em uma escola na zona sul de São Paulo. Aos novos colegas de turma, o aluno experiente levantou a barra da calça jeans até a altura da canela e mostrou a tornozeleira eletrônica que usava. Condenado pela Operação Lava Jato por crimes de corrupção, ele é um dos ao menos três ex-diretores da Odebrecht obrigados a cumprir 40 horas anuais de aulas de boas práticas corporativas, o chamado compliance, segundo determinação da Justiça. Na sala de aula, engenheiros, promotores de Justiça e muitos advogados, dentre eles Joana D’Arc da Silva, ex-mulher do doleiro Alberto Youssef, também condenado. Assim como os demais alunos —exceto o delator—, Joana D’Arc fazia o curso livremente, e não por determinação da Justiça.
Além dos cursos e do uso das tornozeleiras eletrônicas, em São Paulo, 24 réus da Lava Jato são obrigados a prestar serviços comunitários como parte da pena, que varia entre eles. Semanalmente, delatores se esbarram na sede administrativa da Justiça Federal de São Paulo, onde realizam trabalhos burocráticos, como a produção de planilhas de Excel no computador. O programa de prestação de serviços comunitários é coordenado pela Central de Penas e Medidas Alternativas da Justiça Federal de São Paulo, a CEPEMA, e vale para qualquer pessoa condenada a até quatro anos por crimes não violentos —corrupção, lavagem de dinheiro, contrabando e fraudes no INSS e outros sistemas, por exemplo.
Ao todo, 923 condenados cumprem algum tipo de serviço à comunidade em locais conveniados com a CEPEMA, como o Hospital das Clínicas, a USP, a Defensoria Pública, além de ONGs, totalizando 50 instituições. Em todos os casos, o réu passa primeiro por uma entrevista com um psicólogo e um assistente social, para então ser direcionado ao trabalho mais condizente com seu perfil. Não há distinção entre os apenados, afirmou à reportagem o juiz federal Alessandro Diaferia, coordenador da CEPEMA. “Os réus da Lava Jato são tratados como todos os demais”, disse. “Com os mesmos direitos e deveres”.
Condenado a mais de 100 anos, o doleiro Alberto Youssef dedica parte do seu tempo a “fazer estudos do mercado financeiro” livremente, já que sua pena não inclui cursos nem serviços obrigatórios. Desde março de 2017, o paciente zero da Lava Jato cumpre pena em regime domiciliar, com tornozeleira eletrônica, no pequeno quarto-e-sala onde vive na Vila Nova Conceição, região do metro quadrado mais caro de São Paulo. A agenda restrita inclui conversas com seus advogados, apresentações à Justiça, exercícios físicos na academia do prédio —Youssef tem problemas cardíacos— e a narração de suas histórias ao jornalista que escreve sua biografia.
No bairro vizinho ao do doleiro, o também nobre (e caro) Itaim Bibi, o engenheiro Paulo Vieira de Souza, conhecido como Paulo Preto, vivia até o início deste ano, quando foi preso e condenado a 145 anos pela Lava Jato. Antes de ser preso, apontado como operador de caixa dois de campanhas do PSDB, Paulo Preto estava dedicado a organizar as contas do condomínio onde vivia. O luxuoso prédio em uma nobre esquina contava com o expertise do ex-diretor da Dersa, carismático e bom de conta, para organizar a contabilidade.
Assim como Youssef, outros personagens centrais condenados pela Lava Jato também já estão em casa, monitorados pela tornozeleira eletrônica. Na semana passada, Léo Pinheiro, ex-presidente da construtora OAS e testemunha-chave nos casos que incriminam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, passou ao regime de prisão domiciliar depois de passar três anos preso. Condenado em cinco ações na Justiça do Paraná, o empreiteiro teve a pena progredida depois que sua delação premiada foi homologada.
O mundo das tornozeleiras eletrônicas
Um sapato Chanel vermelho sob um pé com uma tornozeleira eletrônica. Foi essa a foto que a doleira Nelma Kodama, a primeira pessoa presa na operação Lava Jato, publicou em julho deste ano em sua conta na rede social apenas com as hashtags #picture #chanel #valentino. Muito adepta do Instagram e pouco da discrição, a doleira cumpria pena em casa desde 2016, depois de ser pega com 200.000 euros (cerca de 910.000 reais) na calcinha no Aeroporto de Guarulhos (SP) e ser presa em flagrante em 2015.
No início de agosto, ela recebeu permissão da Justiça para deixar seu objeto–fetiche, beneficiada pelo indulto concedido pelo ex-presidente Michel Temer (PMDB). Novamente, foi à rede social, para comemorar e publicar um verdadeiro tutorial de como retirar a tornozeleira eletrônica sozinha. Levou bronca pública do juiz Danilo Pereira Junior, da Vara de Execuções Penas de Curitiba, que classificou a atitude como um “desserviço à sociedade brasileira”.
Estar com uma tornozeleira eletrônica significa ser monitorado 24 horas por dia, por uma empresa privada que elabora relatórios com a periodicidade determinada pela Justiça. O raio em que cada réu pode circular depende também de pessoa para pessoa. “Se vivem em uma região com muitos prédios espelhados, esse raio pode ser maior, porque o sinal pode refletir nos espelhos”, explica o juiz Alessandro Diaferia. Resistentes e à prova d’água, podem durar até cinco anos e sua bateria resiste a até 24 horas, dependendo do tipo de monitoramento. Também é de acordo com o serviço requerido que o valor é definido, mas varia de 150 a 250 reais por mês cada tornozeleira. Em muitos casos, é o próprio réu quem paga esse boleto. O advogado de um delator afirmou que ele paga a mensalidade do ano todo de uma vez, no início de cada ano. “Mas se o réu não tiver condições de pagar, o Estado arca com os custos”, explicou o juiz Diaferia. Não costuma ser o caso dos delatores da Lava Jato.
A exibição da tornozeleira eletrônica —seja nas redes sociais, seja numa aula de compliance— coloca em evidência um aparelhinho cujo mercado vem crescendo exponencialmente. A empresa paranaense de monitoramento Spacecomm, que afirma dominar até 90% do mercado nacional, começou a prestar esse tipo de serviço em 2009, com 4.800 sentenciados de São Paulo. Hoje, são 42.000 monitorados por dia em mais de 15 Estados. Por telefone, o diretor Sávio Bloomfield, disse que esse crescimento se deve pouco à demanda da Lava Jato. “A Lava Jato é muito pequena nesse processo”, diz. “Não representa nem 1% das quantidades de presos [que a empresa atende]”.
Ainda que indiretamente, porém, a Spacecomm tem ao menos um pé, ou um tornozelo, fincado na bandeira anticorrupção. A empresa faz parte da holding Spacecomm Participações Ltda., cujo sócio é Mario Celso Petraglia, um dos maiores cartolas do futebol brasileiro e presidente deliberativo do Atlético Paranaense. O Atlético, do ex-juiz Sergio Moro e também de Luciano Hang, o grande entusiastas de Bolsonaro no setor empresarial, é um verdadeiro time de torcedores pelo Brasil. O clube viveu um capítulo especialmente particular na última eleição: na véspera do primeiro turno quase todos os jogadores – exceto o zagueiro Paulo André – entraram em campo, em uma partida contra o América de Minas Gerais pelo Campeonato Brasileiro, vestindo uma camiseta inteira amarela. Em vez do brasão do time, ela levava, em verde, os dizeres patriotas “Vamos todos juntos por amor ao Brasil”. A equipe foi multada em 70.000 reais por ter entrado em campo com a camiseta amarela sem autorização prévia da CBF.