Após a vitória de “Ainda estou aqui” como Melhor Filme Internacional no Oscar 2025, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) atacou o diretor do longa, Walter Salles, em postagem nas redes sociais. O filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou que o filme retrata uma “ditadura inexistente” e alegou que o cineasta é um “psicopata cínico” por “reclamar do governo americano”.
“Acredito que o sujeito que bate palmas para prisão de mães de família, idosos e trabalhadores inocentes, enquanto faz filme de uma ditadura inexistente e reclama do governo americano, que lhe dá todos os direitos e garantias para que suas reclamações públicas e mentirosas sejam respeitadas pelo sagrado direito da liberdade de expressão, define, em essência, o conceito do psicopata cínico”, escreveu o deputado no X, na terça-feira.
O filme “Ainda estou aqui” retrata a busca da advogada Eunice Paiva, que é interpretada pela atriz Fernanda Torres, pelo marido, o deputado Rubens Paiva, sequestrado e morto pela ditadura militar brasileira em janeiro de 1971. Ela só conseguiu a certidão de óbito de Rubens Paiva em 1996, após 25 anos de espera.
O golpe militar de 1964, que derrubou o então presidente do Brasil, João Goulart, deu início a uma ditadura (1964-1985) que durou mais de 20 anos, durante a qual o governo militar, respaldado legalmente por decretos oficiais criados por ele próprio, cancelou eleições democráticas, cassou mandatos políticos, fechou o Congresso, suspendeu direitos individuais e perseguiu, prendeu, torturou e matou opositores, entre eles Rubens Paiva. Segundo dados da Comissão Nacional da Verdade, a ditadura deixou 202 mortos, 232 desaparecidos e milhares de vítimas de torturas e detenções ilegais.
Uma lei de anistia aprovada em 1979 pelo regime militar impediu a punição dos culpados. Só em dezembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução que permitirá a retificação das causas de óbito dos 434 brasileiros mortos ou desaparecidos no período. Os registros passarão a constar como “morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.
Em julho de 2018, o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por não ter investigado a morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do Doi-Codi, em São Paulo, há 43 anos. O país já havia sido condenado em 2010 pela detenção, tortura e morte de militantes durante a Guerrilha do Araguaia.
‘Fragilização da democracia’
Na postagem, Eduardo Bolsonaro também afirmou que, se o diretor criticasse o “regime instaurado pelo Alexandre de Moraes”, ele estaria “na cadeia gozando de todo o esplendor da democracia da esquerda”, em referência ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Moraes é relator do caso que apurou uma tentativa de golpe de Estado após a derrrota do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições de 2022. Bolsonaro e outros 32 aliados foram denunciados no mês passado pela Procuradoria Geral da República (PGR) por participação na trama golpista.
A declaração do parlamentar foi uma resposta a uma fala de Salles sobre o cenário político nos Estados Unidos, sob governo do republicano Donald Trump:
— A gente está vivendo algo aqui (nos EUA) que eu não esperava ver tão cedo. A gente está vendo um processo de fragilização crescente da democracia, e esse processo está acelerando cada vez mais. A única coisa que eu posso atestar é o quanto o filme, que fala de uma ditadura militar, se tornou próximo de quem o viu nos Estados Unidos. Isso explica, inclusive, a maneira crescente como ele foi sendo abraçado — disse Salles em entrevista coletiva, em Los Angeles, depois da vitória no Oscar. — E eu diria que não é só aqui, porque, de uma certa forma, ele ecoa o perigo autoritário que hoje graça no mundo como um todo. A gente está vivendo um momento de extrema crueldade, da prática da crueldade como forma de exercício do poder. A gente está no meio disso, e é profundamente inquietante.
Silenciamento da direita
A repercussão digital sobre a vitória do longa quebrou o paradigma da polarização política e foi marcada pela euforia em torno do ineditismo. É o que mostra um levantamento da FGV, que aponta um silenciamento de perfis de direita sobre o tema, com “pouquíssimas publicações parabenizando ou comentando” o resultado de domingo.
Segundo o estudo, o enquadramento predominante das postagens “exalta o orgulho em relação à cultura nacional e as representações positivas sobre o Brasil no mundo, mobilizando um tipo de engajamento que não se pauta pelo conflito com campos políticos opositores”.
Na avaliação do sociólogo Marco Aurélio Ruediger, diretor da Escola de Comunicação FGV, a repercussão do prêmio dá uma pista da possibilidade de haver uma fresta para o Brasil se unir e se reinventar, “quebrando a polarização com base em valores universais”
— A vitória do filme tem uma mensagem de força, de potência das mulheres, de reconstrução pessoal, de família sem ser imerso numa numa perspectiva moralista. Também traz um certo empreendedorismo engajado da personagem de Fernanda Torres — afirma Ruediger.
O pesquisador acredita que a direita não conseguiu “construir nenhum argumento crítico contrário” ao longa, o que explica o silenciamento diante da vitória no Oscar.
— Soaria impatriótico, desumano e não engajaria. Daí que digo que o filme juntou um campo muito vasto. Mostra o potencial de quebrar a polarização pela mobilização de um repertório cultural mais amplo. Isso dá uma pista para a política agora em 2026.