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quarta-feira 12 de fevereiro de 2025 às 13:03h

Tomada por facção, Roraima é recordista em desaparecidos no Brasil

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O vídeo repassado a policiais pelo WhatsApp era tão desconcertante que Carlos Henrique Cornivell não conseguiu assistir à cena toda. Nele, o venezuelano Angel Cornivell, de 26 anos, seu irmão desaparecido, é executado a tiros em um cativeiro em Boa Vista, capital de Roraima. Semanas antes da chegada do vídeo, Carlos havia procurado de acordo com reportagem de Aline Ribeiro, do jornal O Globo, a Polícia Civil para informar que suspeitava que seu irmão estaria morto e teria sido enterrado em um provável cemitério clandestino à margem de um Igarapé, no bairro Pricumã, na periferia da cidade. Uma equipe com bombeiros, policiais militares e civis chegou a realizar buscas com a ajuda de cães farejadores no local em abril do ano passado, mas não encontrou o corpo do rapaz, que segue desaparecido.

Em 2023, o Brasil registrou 80.317 casos de desaparecimentos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública em levantamento mais recente. Roraima lidera a lista dos estados onde mais se some no país, com uma taxa de 81,4 desaparecimentos por cem mil habitantes. Fronteira com Venezuela e Guiana, a região sofre forte influência do garimpo ilegal, passa por uma crise humanitária de imigração e foi tomada por uma facção criminosa venezuelana, a Tren de Aragua, conforme mostrou o Globo.

Segundo o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (Gaeco), do Ministério Público de Roraima, a Tren de Aragua nasceu no presídio de Tocorón, na Venezuela, e se consolidou de dentro para fora da prisão. Hoje é uma organização transnacional, com presença também nos Estados Unidos, Chile, Equador, Colômbia, Peru e Bolívia.

A facção venezuelana foi a única da América Latina a ser classificada como “organização terrorista estrangeira” em um decreto assinado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, logo após a sua posse, em 20 de janeiro. O governo americano ofereceu até US$ 5 milhões pela prisão de seus líderes.

De acordo com o MP de Roraima, a facção Tren de Aragua se uniu à paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) para expandir e dominar rotas de tráfico de drogas e armas no país. E, mais recentemente, firmou alianças com a fluminense Comando Vermelho visando a exploração do garimpo ilegal.

De acordo com o MP, o sistema carcerário do Estado já tem 418 presos venezuelanos, ou quase 10% da população prisional de 4.460 internos. Seus crimes de maior incidência são contra o patrimônio (furtos, roubos e latrocínios), tráfico de drogas e homicídios. A facção é notória pela crueldade empregada, como o esquartejamento de opositores, método usado como “assinatura” de seus crimes e para impor terror.

A expansão da facção em Roraima coincide com o aumento do fluxo de imigrantes na fronteira. Na última década, mais de 568 mil venezuelanos entraram no Brasil como refugiados. O Estado viveu também uma escalada no número de assassinatos. André Pereira, promotor de Justiça e coordenador do Grupo de Atuação Especial de Vítimas, Minorias e Direitos Humanos, do Ministério Público de Roraima, afirma que o alto fluxo migratório justifica parte dos desaparecimentos, porque, em parte, muitos dos que chegam vão embora sem avisar.

— A outra é explicada pela criminalidade. Nesse fluxo, eventualmente pode ter gente fugindo de facções que acaba sendo morta aqui. Por fim, existe o garimpo ilegal. São pessoas que vão para regiões de selva, especialmente dentro de áreas indígenas, e desaparecem lá. Seja porque foram mortas, seja porque sofreram algum tipo de acidente. A família não fica sabendo e as mortes entram no cômputo de pessoas desaparecidas — diz Pereira.

Cemitério clandestino

No último mês, a notícia de um cemitério clandestino em uma favela entre os bairros de Pricumã e Cinturão Verde veio à tona em Roraima. É o mesmo local em que Angel Conivell estaria enterrado, como havia dito seu irmão. Dos nove corpos localizados, três já foram identificados e têm nacionalidade venezuelana. A principal suspeita da polícia é de que as vítimas tenham sido julgadas em tribunais do crime e mortas por integrantes da facção Tren de Aragua. Os corpos foram enterrados e cobertos com cal para amenizar o cheiro, dificultar a identificação e acelerar a decomposição.

— A polícia judiciária ainda não chegou a uma conclusão sobre quem são as pessoas já identificadas e as razões do desaparecimento e morte — explica Pereira.

O governo de Roraima sabe da existência do local desde, pelo menos, abril do ano passado. O relatório policial das buscas de Angel já apontava que, naquele mesmo local, “foram encontrados restos mortais de outros crimes, fato que levou estes investigadores a diligenciar nas buscas das pessoas desaparecidas”, diz o documento.

Dados do Núcleo de Investigação de Pessoas Desaparecidas do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) de Roraima, obtidos pelo Globo, revelam que muitos dos Boletins de Ocorrência de desaparecidos nem sequer são lidos pelos delegados — caso do de Angel, que está sem despacho — quando os agentes investigaram por conta própria, sem ordem dos superiores. Atualmente, o núcleo tem 259 BOs com despachos cumpridos, 1.439 com despachos pendentes e outros 345 documentos sem nenhum despacho. Uma delegada de alta patente resumiu a situação no Estado:

— Os policiais querem trabalhar, muitas vezes vão até sem ordem de missão, mas existe esse descaso por parte da chefia. Até pelo fato de a maior parte das vítimas ser imigrante existe esse preconceito — disse. — Estão deixando as organizações criminosas tomarem conta do Estado. Sem a atuação da Segurança Pública, as organizações criminosas preenchem essa lacuna.

Recém-moradora de um abrigo em Boa Vista, a venezuelana Marling Orence de Navarro, de 45 anos, reclama do desamparo das autoridades. Marling deixou emprego, família e sua terra natal para tentar encontrar a mais velha de seus quatro filhos, Heidymar Carolina Orence.

Em 18 de junho de 2022, uma chamada telefônica em português revelou que Heidymar tinha sofrido um acidente em Boa Vista. Na época com 23 anos, a jovem tinha se mudado havia pouco para o Brasil para trabalhar como cozinheira. O acidente está registrado em um Boletim de Ocorrência, segundo o qual Heidymar atravessou uma via e foi atropelada por uma viatura da Polícia Penal. Com uma lesão na cabeça, foi encaminhada para o hospital e liberada na sequência.

Ao seguir as pistas da filha quando chegou a Boa Vista, Marling descobriu que Heidymar foi vista pela última vez em uma pensão da capital. Dormiu ali e, na manhã seguinte, foi levada por uma desconhecida. Nunca mais voltou.

— Acho que minha filha estava já em perigo quando me ligaram para falar do acidente. Ao chegar aqui, soube que ela estava com um homem muito mais velho que ela e duvido que estivesse por vontade própria. Acho que ela tentou fugir. Tanto que encontrei todas as coisas dela no maleiro: roupas, alguns documentos, os pertences pessoais — disse Marling.

Quando soube da notícia do cemitério clandestino, Marling ficou preocupada, mas diz que ainda mantém a esperança de encontrar a filha.

— Já vai fazer três anos que não sei dela, mas confio em Deus e acredito que ela está bem — diz.

A Polícia Civil nega que os boletins de ocorrência de desaparecimento sequer foram lidos e afirma que independentemente de despacho formal inicial, as diligências para localizar pessoas desaparecidas são iniciadas imediatamente. Somente ao final dos trabalhos, com a localização ou não da pessoa, os despachos são formalizados. O órgão diz ainda que nenhum boletim é arquivado até que o destino da pessoa desaparecida seja esclarecido.

Sobre o cemitério clandestino, diz que a recente localização de corpos indica que o local pode ter sido utilizado posteriormente à primeira investigação, de abril de 2024.

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