O grande número de processos relacionados a demandas de saúde faz com que alguns tribunais de Justiça adotem práticas para frear o crescimento, que, entre 2008 e 2017, registrou um aumento de 130%, segundo dados divulgados em levantamento encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), divulgada em março deste ano. O planejamento estratégico e a interlocução entre magistrados, gestores públicos e profissionais da área da medicina são algumas ações desenvolvidas por três Cortes estaduais de grande porte: Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
No tribunal gaúcho, segundo o desembargador recém-aposentado Martin Shulze, que coordenou o Comitê de Saúde estadual nos últimos anos, alternativas positivas foram adotadas e vem conseguindo reduzir e qualificar as demandas. “A partir de 2010, aperfeiçoamos mecanismos da Secretaria de Saúde e fortalecemos a interlocução com as secretárias municipais. Antigamente, as demandas judiciais eram realizadas em protocolos de papel, informatizamos todo o processo e concedemos o acesso a estes pedidos a juízes, ao Ministério Público e a Defensoria Pública. Para isso, desenvolvemos o Sistema de Administração de Medicamentos Especiais (AME)”, explica Shulze.
A plataforma identifica em qual estágio se encontra o pedido de determinado medicamento, se foi ou não deferido, se está prestes a chegar ou se o processo de compra está lento. “Com estas informações é possível fazer uma mediação prévia e evitar que muitos casos sejam levados à Justiça. A mediação passou a ser um entendimento da Defensoria Pública, porta de entrada das ações judiciais no Estado. Nacionalmente também há um estímulo para que este método seja adotado”, destaca.
Estas alternativas resultaram em uma redução no Rio Grande do Sul. Em 2010, o estado gaúcho contabilizava em torno de 109 mil ações no âmbito da saúde e o Brasil acumulava 240 mil processos. Atualmente, estima-se que as demandas judiciais no país alcancem 1,7 milhão e o estado gaúcho tenha aproximadamente 100 mil ações.
Para Shulze, a validação do trabalho no sistema judiciário está embasada em quantos processos foram julgados, mas essa é uma cultura que precisa ser repensada. “A Defensoria Pública gaúcha avalia quantos casos o defensor público ajuizou e quantos ele conseguiu resolver administrativamente por meio da mediação. Esta segunda opção é a mais valorizada”, revela.
A juíza-corregedora e também integrante do Comitê de Saúde do TJRS Rosana Garbin salienta que o acesso à Justiça é extremamente importante, pois é uma segurança do cidadão de efetivar o seu direito, no entanto, sempre que uma política pública é implementada, um número maior de pessoas é impactado e com um custo muito menor.
“Muitas políticas existentes ocorreram através de um caminho trilhado em conjunto e os comitês estaduais de saúde são mecanismos para avaliar e resolver entraves em políticas concretas. É necessária, portanto, a existência e o fortalecimento destes comitês para o acompanhamento e a busca de soluções que não resultem em judicializações. Também pelo perfil da atuação dos últimos anos pelo nosso desembargador, Márcio Shulze, o diálogo entre os envolvidos é o diferencial para frear estes processos judiciais”, destaca.
Racionalidade na tomada de decisões
Em Minas Gerais, o Tribunal de Justiça replica uma metodologia que visa dar mais elementos à tomada de decisões. O estado registrou uma média de 60 mil processos judiciais: 32 mil referentes à saúde pública e 28 mil da saúde complementar. Na observação do coordenador do Comitê Estadual de Saúde de Minas Gerais, desembargador Renato Dresch, há processos judicializados indevidamente, por isso, é fundamental instrumentalizar os magistrados para as decisões.
“Trabalhamos para os que magistrados tenham, depois de todas as informações necessárias do processo, racionalidade nas decisões. Além disso, é importante que haja uma interlocução com o Ministério Público e a Defensoria Pública. A judicialização é positiva quando consegue solucionar demandas reais de pacientes”, destaca Dresch.
Além disso, o TJMG estabeleceu que, em comarcas que possuem mais de duas varas cíveis, uma delas trabalhe exclusivamente com questões de saúde, o que acaba dando vazão aos processos. Outro diferencial é um grupo utilizado para troca de informações formado com aproximadamente 170 magistrados, juízes e desembargadores de todo o estado.
Cooperação entre órgãos
A implementação da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) é uma das ações do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para frear as demandas judiciais. O projeto é uma cooperação que reúne as Procuradorias Gerais do Estado e do Município do Rio de Janeiro, além das Secretarias Estadual e Municipal de Saúde, as Defensorias Públicas Estadual e da União, além do Tribunal de Justiça do Estado.
“A intenção é buscar soluções administrativas para o atendimento de indivíduos que precisam de medicamentos, exames, internações, tratamentos e transferências no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), evitando o ajuizamento de ações. O índice de acordos realizados com esta iniciativa alcançou 80% em requisições de exames e consultas, 60% em cirurgias e 50% em transferências”, segundo a juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Flávia Chagas de Azevedo.
O Tribunal de Justiça ainda firmou com a Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) um convênio com a Fiocruz/Ensp para viabilizar o curso de mestrado profissional em Justiça e Saúde com diversas disciplinas envolvendo o SUS, saúde suplementar, questões farmacêuticas, bioética, dentre outras. A primeira turma, composta de 20 juízes, concluiu a capacitação e defendeu as respectivas dissertações.
Para a juíza, tais demandas judiciais se transformaram em um problema nacional de grandes proporções, não só para o Judiciário, mas também para o SUS. A ausência de política pública aos anseios da população e as facilidades encontradas para a população acessar o Poder Judiciário pelas vias dos juizados fazendários e cíveis, ainda de acordo com a magistrada, fizeram com que muitas pessoas deixem de aguardar atendimento.
“No entanto, os juízes precisam entender que o SUS possui uma regulação e que nem toda demanda pode ser deferida, pois há custos envolvendo a saúde que não podem ser desconsideradas. O deferimento com multas estratosféricas e com prazos exíguos compromete o orçamento previsto para o atendimento de toda a população, podendo, ainda, acarretar enriquecimento individual”, destaca.
Iniciativas dos CNJ
Tanto os desembargadores quanto a juíza destacam ainda que, nos últimos anos, foi possível frear os processos judiciais com parcerias estabelecidas com hospitais e clínicas e com os Núcleos de Apoio ao Judiciário (NatJus), implantado em todas as unidades da federação. O e-NatJus é um cadastro nacional digital de pareces, notas e informações técnicas, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com objetivo de fornecer ao magistrado fundamentos científicos que auxiliem na tomada de decisão.
A medida é resultado de uma parceria entre o CNJ, o Hospital Sírio-Libanês, por meio do Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi), com a coordenação do Ministério da Saúde. A plataforma e-NatJus, além de ficar disponível no portal eletrônico do CNJ para consultas por magistrados, pode ser utilizada pelos os Núcleos de Avaliação de Tecnologia em Saúde (Nats) e Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus).
Pela Resolução CNJ nº 238/2016, os Tribunais de Justiça e Regionais Federais devem a criar e manter Comitês Estaduais da Saúde, um avanço no âmbito dos Conselhos de Saúde nos estados, mecanismo que busca diálogo com o controle social e para garantir o direito à saúde.