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Lavagem do Bonfim cria novas tradições, põe fim a outras, mas continua sendo retrato fiel da alma soteropolitana

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A Lavagem do Bonfim é a prova definitiva de que Salvador nunca teve tempo — nem vontade — de escolher entre o sagrado e o profano. É uma celebração onde terços se entrelaçam com colares de contas, baianas borrifam água de cheiro ao lado de ambulantes oferecendo cervejas geladas, e charangas tocam enquanto acenos improvisados de políticos ecoam na multidão. Com tanta coisa acontecendo, é fácil perder o fio da meada: seria isso uma procissão religiosa, uma marcha política ou apenas o aquecimento para o Carnaval?

Tradições que resistem (ou nem tanto)

Não é preciso tantos anos de experiência e nem recorrer ao saudosismo. Quem acompanhou a festa há pelo menos uma década já consegue identificar mudanças na tradição. Consegue também sentir falta – ou agradecer em silêncio pela ausência – dos jegues e das carroças enfeitadas, que já foram um símbolo da procissão. Eles seguiam os 8 km da Igreja da Conceição da Praia até o Bonfim, levando flores e perfume, cercados de fiéis fazendo festa, até que em 2011 tudo virou um imbróglio judicial: enquanto protetores dos animais alegavam maus-tratos contra os jegues, os defensores da tradição pediam a manutenção do desfile. A Justiça acabou proibindo os animais no festejo.

Foto: Reprodução/Metro1

Na esteira, os cavaleiros que vinham do interior do estado, montados em seus cavalos, para enfrentar os 8 km do cortejo com toda a pompa que a tradição exigia, também perderam espaço.

Já os saudosistas de plantão, com memória mais longa, talvez se lembrem dos anos 1980, quando a Lavagem do Bonfim era quase um Carnaval fora de época, com direito a camarotes, trios elétricos e confusões regadas a cerveja.

Quem tinha fé podia até ir a pé, mas não necessariamente até a Colina Sagrada. Boa parte dos “foliões” marcava presença na Igreja da Conceição da Praia, ponto de partida do cortejo, mas depois era contido pelo burburinho no Comércio e desviavam para a Avenida Contorno. Lá, os trios elétricos transformavam o evento religioso em um “putetê” carnavalesco antecipado.

Axé Music e barraquinhas

Antes mesmo do Axé Music, como lembra o jornalista Jolivaldo Freitas, a festa tinha outro ritmo: “o povo curtia nas barraquinhas, ao som de marchinhas, sambas, atabaques, violões. Era ponto de comer, beber e paquerar. Mas os poderes públicos acharam que as barraquinhas poderiam descaracterizar a festa. Hoje ela é muito rentável, principalmente para eventos privados”.

Termômetro político

Há quem acredite que o percurso até o Bonfim é termômetro de popularidade das figuras políticas. Mas há também quem diga que hoje todo aquele movimento não passa do cordão de puxa-saco. Ainda assim, a festa é vitrine e medidor de popularidade. Há exatos 27 anos, uma prova: em 1982, dois meses após Mário Kertész provocar sua própria demissão da prefeitura e ouvir de Antonio Carlos Magalhães que estava morto politicamente, ele resolveu fazer o cortejo acompanhado de Eliana Kertész, poucos amigos e a bandinha do maestro Reginaldo, ao som de Deixa o Coração Mandar. O desfile foi de consagração para o ex- -prefeito, que chegou a ser carregado pela população. No mesmo ano, Eliana foi eleita vereadora, com o atual recorde de votação, e três anos depois MK retornou à prefeitura. Por esse e outros episódios que, ano após ano, do cortejo ao hasteamento das bandeiras, a data é disputada por políticos do cenário regional e até nacional.

Início

Lá no início, a lavagem já foi, literalmente, uma faxina. É o pesquisador e escritor Nelson Cadena que relembra: “os nativos de Itapagipe participavam dessa lavagem lavando a igreja, e geralmente eram as escravizadas que faziam esse trabalho. Mulheres brancas não faziam faxina. Lavava-se toda a igreja, não era como hoje, só do lado de fora”.

Repressão

O período mais repressivo da festa ocorreu entre 1941 e 1951, quando a lavagem dentro da igreja foi proibida. As baianas, vestidas com roupas típicas, nem sequer podiam chegar perto do templo. Mas o povo sempre dava um jeito, pontua Nelson Cadena. “Então, não podia lavar dentro da igreja, mas lavava o adro”.

Intervenção

Na década de 1940, a ditadura de Vargas percebeu o poder político da festa. “Os interventores participavam, com suas esposas até lavando o interior da igreja, porque isso era uma propaganda para eles”, destaca Cadena. Mais tarde, a presença dos políticos se intensificou, ganhando força com Antonio Carlos Magalhães, que frequentava a festa desde 1967.

Festa em movimento

É inegável que a Lavagem do Bonfim nunca deixou de se reinventar. Mariely Santana, mestre em Arquitetura pela UFBA, destaca como a lavagem reflete a dinâmica social: “A festa do Bonfim nunca foi igual desde o século XVIII. Todo ano havia modificações, o que, como consequência, gerou alterações também no espaço construído, principalmente na relação com o templo e a Cidade Baixa”.

Além do emblemático cortejo das baianas, o hasteamento da bandeira do Senhor do Bonfim e a procissão marítima também ganharam protagonismo nos últimos anos. A imagem do Senhor do Bonfim, que neste ano completa 280 anos na Bahia, faz seu translado em um carro aberto até a Marina da Penha, na Ribeira, onde é embarcada para a procissão marítima com destino ao Cais do Porto. Para completar, rituais como a queima de desejos escritos em papel, acompanhados de fitas, reforçam que a Lavagem não é apenas sobre preservar tradições, mas também sobre criar novas enquanto algumas antigas se perdem pelo caminho.

A alma de Salvador

No fim das contas, a Lavagem do Bonfim é um retrato fiel de Salvador: uma festa que mistura tudo, às vezes perde o rumo, mas nunca a alma. Seja rezando, dançando ou simplesmente se deixando levar, o que importa é celebrar — mesmo que poucos lembrem exatamente por quê.

E talvez ninguém tenha definido tão bem a essência da Lavagem do Bonfim quanto o saudoso Roberto Albergaria, com sua habitual sagacidade e um quê de sarcasmo. Afinal, “o Senhor do Bonfim não é mais do que o Senhor da Boa Morte, né?”, ele provocava. Para o historiador e antropólogo, o Senhor do Bonfim também foi ressignificado ao longo do tempo — um Jesus Cristo no momento de sua morte, “promessa da salvação, de você ter um bom fim, que significa um bom começo na sobrevida eterna”.

Nas palavras de Albergaria, o Senhor do Bonfim virou um “santo milagreiro, talmatu”. A festa, por sua vez, é: “uma mistura de romaria com orgia. É metade mangue, metade charco, metade água doce e metade água salgada. É o lado sagrado e o lado profano. É uma mistura de água benta com água dura”. Salvador em estado puro, equilibrando-se entre a graça e o excesso, como quem dança e reza ao mesmo tempo — sempre com um olho no céu e outro na festa.

Matéria de Daniela Gonzalez e publicada originalmente no Jornal Metropole em 16 de janeiro de 2025:

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