Quando o furacão chamado Donald Trump varreu a política americana pela primeira vez, em 2016, o mundo, atônito, se perguntou como aquele outsider, que não era levado muito a sério nem pela cúpula do próprio partido, tinha conseguido romper barreiras e se instalar na Casa Branca. Seguiram-se quatro anos de sobressaltos, movimentos imprevisíveis, falas irresponsáveis ou francamente abomináveis — enfim, uma Presidência como nunca tinha se visto e que, de tão desafiadora e caótica, acabou por não conduzi-lo à reeleição. Pronto. Trump acabou, pensou a oposição. Pois, passados quatro anos, o homem do topete que faz a festa dos cartunistas volta ao poder, desta vez com ampla maioria de votos e sempre insistindo na tecla megalômana: “Make America Great Again”, fazer os Estados Unidos serem grandes novamente. Ou seja: Trump não mudou. Quem mudou foram os americanos. “Acho que foi o maior movimento político de todos os tempos. Nunca houve nada como isso neste país”, celebrou no hiperbólico — como sempre — discurso da vitória. Reportagem de Ricardo Ferraz, de Washington, e Amanda Péchy, da revista Veja.
O sucesso incontestável em 5 de novembro, com potencial de abalar pilares dentro e fora do país, foi uma lavada e uma surpresa. Como já havia ocorrido antes, as pesquisas apontavam para um empate técnico entre Trump e sua adversária, Kamala Harris. No fim, o republicano não só venceu nos estados em que liderava a disputa, como carregou com vantagem quase todos os chamados “pêndulos”, onde a eleição é decidida: até quinta-feira 7, vencera em cinco dos sete — entre eles Wisconsin, Michigan e Pensilvânia, os principais tijolos do chamado blue wall que votaram no democrata Joe Biden em 2020 —, com chance de conquistar outros dois onde a apuração não estava definida.
No começo da manhã de quarta-feira, Trump já havia passado dos 270 votos necessários para ter maioria no Colégio Eleitoral (veja no gráfico), que bate o martelo na disputa, e ao longo da apuração superou a rival em cerca de 5 milhões de votos. Em outro feito crucial, os republicanos, agora unidos em torno de Trump, o dono do partido, recuperaram a maioria no Senado e caminhavam para manter a liderança na Câmara. “Eles (os eleitores) vieram de toda parte, sindicalizados, não sindicalizados, pretos, brancos, homens, mulheres, latinos, árabes”, destacou o presidente eleito no discurso em Palm Beach, na Flórida, ao lado da mulher, Melania, dos filhos e do vice, J.D. Vance.
O caminho de volta para Washington foi pavimentado pelo avanço de Trump em setores democratas da sociedade onde, até alguns anos atrás, ninguém votaria nele. A culpa maior pela virada é atribuída à falha do governo Biden em duas áreas: economia e segurança, essa atrelada à questão da imigração. Os preços dispararam na pandemia e, embora a inflação esteja agora sob controle, tudo hoje — comida, gasolina, remédios, casa própria — custa mais caro do que nos quatro primeiros anos de Trump no poder. Além disso, aproveitando a abertura de fronteiras no início da gestão Biden, milhões de imigrantes ilegais entraram nos Estados Unidos, incitando as denúncias de concorrência desleal, dilapidação dos serviços sociais e, principalmente, aumento da violência com a chegada de “criminosos de fora” — uma afirmação sem base nas estatísticas que o próprio Trump atiçou com gosto.
Atropelada pela onda vermelha, a cor do Partido Republicano, Kamala Harris e seus apoiadores ainda tentam entender o que aconteceu. “Quando lutamos, nós vencemos. Mas às vezes a luta é demorada”, ela observou no discurso de aceitação da derrota. Obedecendo à lógica que pautou as disputas anteriores e deu a vitória a Biden, o comando da campanha de Harris se organizou para obter maioria nos grandes centros urbanos e mobilizar minorias que poderiam fazer a diferença, sobretudo negros e latinos, redutos democratas desde sempre e alvo de boutades racistas do bloco trumpista. Não colou. “Ganhava mais dinheiro no tempo dele”, disse a VEJA Manuel Cueva, 42 anos, enquanto cortava o cabelo em uma barbearia na Filadélfia. Pela primeira vez, os homens latinos concederam a vitória ao republicano, com 54% da preferência. “Sempre haverá racismo. Pelo menos, Trump diz as coisas na minha cara”, justificou.
A alta de preços inflou a população de rua, engrossada ainda pelos consumidores de drogas como crack e fentanil, uma epidemia que varre os Estados Unidos e que é muitas vezes colocada na conta da atitude leniente das administrações mais progressistas. Na Filadélfia, a maior cidade da Pensilvânia, assim que o sol se põe os moradores de rua se aglomeram nas esquinas. Nos ônibus e metrôs que se dirigem aos bairros onde se concentra a população negra, é comum ver homens e mulheres com carrinhos repletos de latas de alumínio e outras embalagens recicláveis. Mais para o interior, fábricas abandonadas e população reduzida compõem o “cinturão da ferrugem”, região dilapidada pela globalização da produção e que se sente abandonada pelas autoridades — um celeiro de eleitores trumpistas. Os bons números atuais da economia americana — inflação de 2,1% nos últimos doze meses e alta do PIB de 2,8% no último trimestre — só ressoam em subúrbios da Filadélfia, como Chester County, que se mobilizou fortemente por Harris. Lá, mansões cercadas de grama verde convivem com concessionárias de automóveis de luxo como Ferrari e McLaren.
Trump se elegeu porque soube explorar o tamanho do descontentamento da população com Biden e sua disposição para votar na mudança — na véspera da eleição, 56% dos americanos desaprovavam o atual presidente, pior índice em quatro anos. Nesse contexto, a imagem de Trump como líder durão, que não se intimida perante as “elites”, se tornou palatável até para quem não tinha por ele o menor respeito — e a avalanche de agora é a expressão dessa espantosa mudança. “Harris não conseguiu se descolar do governo e foi punida pela impopularidade do presidente”, diz Jon Green, professor de ciência política da Universidade Duke, na Carolina do Norte. Dos 3 141 condados do país, apenas cinco não foram fortemente afetados pelo aumento de preços dos aluguéis e do supermercado. “A questão passou a ser quem você vai culpar por isso”, diz o aposentado Carl Weir, 72 anos.
Com maioria praticamente garantida no Congresso, o presidente eleito terá pista livre para agir. Em alusão a uma política econômica protecionista, com a implementação de tarifas pesadas sobre todas as importações (sendo as mais altas sobre produtos da China, o rival número 1), citou a necessidade de pôr os interesses dos Estados Unidos no topo das prioridades, ainda que “por um tempo”. Também estão ameaçados os programas sociais que o Partido Democrata implementou, sobretudo no setor da saúde. O bilionário Elon Musk está encarregado — até segunda ordem, pelo menos — de promover um enxugamento do Estado que, a depender dele, chegará a 2 trilhões de dólares. “A inflação e as taxas de juros passaram a ser atribuídas aos altos gastos do governo, que não foram acompanhados pelo aumento do poder de compra”, afirma Dan Mallinson, cientista político da Universidade Estadual da Pensilvânia.
Trump pretende ainda baixar impostos em geral, de pessoas físicas e empresas, além de podar o alcance das agências regulatórias, medidas que animam os mercados financeiros. No dia seguinte à eleição, a bolsa de valores abriu com alta de 1 300 pontos e o dólar subiu em toda parte, escaladas que devem perdurar. No longo prazo, o otimismo dá lugar à preocupação com o impacto de gastos maiores e arrecadação menor na delicada situação fiscal do país, que tem déficit público de 7% e dívida superior a 100% do PIB.
No Brasil, teme-se desde já o impacto negativo do prometido tarifaço no superávit que o país registra na balança comercial bilateral. “O triunfo de Trump põe mais pressão no governo brasileiro por corte de gastos, já que a alta da moeda americana poderia resultar em inflação e subida mais elevada dos juros”, diz o economista André Perfeito. No campo das relações internacionais, devem pesar os laços ideológicos do presidente eleito com Jair Bolsonaro e com o argentino Javier Milei. Lula, que antes das eleições sugeriu que um novo mandato trumpista seria “nazismo com outra cara”, cumprimentou Trump pela vitória e priorizou o diálogo — que, entre os dois, sempre será relutante, sem um milímetro da efusividade da relação com Barack Obama, que se referiu ao colega brasileiro como “o cara”. Avesso a controles ambientais e a acordos internacionais, Trump terá pouco a falar com Lula sobre questões climáticas, um raro tema em que o Brasil exerce protagonismo no debate mundial.
Trump, nas interações com outros países, mostrou-se intempestivo e imprevisível no primeiro mandato, desconsiderando acordos e parceiros de longa data — e nada indica que vá mudar de atitude agora, embora a imprevisibilidade seja uma de suas marcas. De um lado, ignorou países na periferia dos Estados Unidos, o Brasil inclusive (mesmo sendo o parça Bolsonaro seu colega brasileiro na época). De outro, interferiu, sem um pingo de sutileza, nos assuntos de nações na zona de interesse americano. Esse zigue-zague pode agora ser desastroso para a Ucrânia, que depende do poderoso aliado para enfrentar os invasores russos. Antecipa-se que o presidente Volodymyr Zelensky será pressionado a, em nome da paz, ceder os 20% do território ucraniano já conquistado pelos russos a Vladimir Putin, líder autoritário por quem Trump não esconde a simpatia. Em Israel, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, foi um dos primeiros a cumprimentar Trump e celebrar sua “volta retumbante”, contando que o presidente eleito vai apoiá-lo na guerra atual sem as imposições para negociar um cessar-fogo e prover ajuda humanitária aos palestinos, defendidas pelo governo Biden.
Nenhum tema pegou tão bem na campanha trumpista quanto a promessa de expulsar os 11 milhões de imigrantes ilegais no país, na “ maior deportação da história”, que custaria 300 milhões de dólares. Sob a alegação de que bandos de criminosos entram e agem à vontade, o republicano pretende enviar forças federais às cidades governadas pelos democratas para “impor a lei e a ordem” e defende o aumento dos poderes da polícia, com imunidade contra processos. A proposta é aprovada inclusive por imigrantes já instalados no país. “É preciso haver uma seleção melhor das pessoas que estão vindo para cá”, diz Milagro Melendez, 59 anos, nascida em Porto Rico. No discurso de vitória, Trump atenuou o tom, ao dizer que “vamos permitir que as pessoas sigam entrando em nosso país, só que legalmente”.
O autoritarismo do presidente eleito, bem como sua ligação preferencial com autocratas mundo afora, foi amplamente explorado pelos democratas na campanha eleitoral, aparentemente sem muito efeito, embora a preservação da democracia esteja no topo das preocupações dos americanos, o que talvez contribua para limitar excessos. Seja como for, o segundo mandato de Trump transcorrerá em um país decisivamente mais inclinado para a direita. A curva aparece, nítida, no campo da imigração, onde se percebe significativa desidratação do consagrado direito de asilo, que ditou as políticas de entrada de estrangeiros desde os tempos da Guerra Fria. Também está cravada no sistema judiciário, onde a indicação de juízes pelo governo ganhou evidente contorno ideológico e expandiu os tribunais com viés conservador (a começar pela Suprema Corte). “Há um risco real de que as instituições federais sejam politizadas e percam a neutralidade”, disse a VEJA Anne Applebaum, autora do livro Autocracia S.A. “Mas uma ditadura plena é improvável, já que no sistema americano os estados têm muito poder e recursos para desafiar o governo central.”
No campo pessoal, duas indagações incendeiam as redes sociais. Uma é se Trump perdoará a si mesmo nos dois processos federais aos quais responde, um deles por incitar os ataques ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Outra é se Melania vai se mudar para a Casa Branca, residência que já experimentou e decididamente não gostou. Donald Trump tomará posse no fim de janeiro, provando que nada, nem duas tentativas de assassinato, freia o ímpeto do empresário-político de 78 anos que sonha escrever outros capítulos na biografia. Na celebração da vitória, declarou-se — não pela primeira vez — um predestinado: “Deus poupou minha vida por um motivo, e esse motivo é salvar nosso país e restaurar sua grandeza”. Traduzindo: pelos próximos quatro anos, goste-se ou não, ele voltou.
Publicado na revista Veja de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918