Elaborado após cobrança do Supremo Tribunal Federal (STF) por mais transparência, o projeto aprovado pela Câmara que altera critérios das emendas parlamentares inclui novas amarras para que as indicações de deputados e senadores sejam efetivamente pagas pelo governo. Especialistas em contas públicas apontam ao menos três itens em que as regras vão “engessar” o controle do Orçamento pelo Palácio do Planalto.
A proposta, segundo Camila Turtelli e Victoria Abel, do O Globo, impede por exemplo que o governo bloqueie os recursos indicados pelo Congresso num patamar superior a das demais despesas não obrigatórias. Ou seja, se houver necessidade orçamentária de uma contenção de gastos e a equipe econômica estabelecer um corte de 10% em recursos do Ministério da Saúde, a tesourada nas emendas de comissão — indicadas em conjunto pelos colegiados da Câmara e do Senado —, também só poderá ser de 10%. As outras modalidades de emendas, de bancade e individual, têm o pagamento obrigatório e já não podem ser bloqueadas.
Para especialistas, essa mudança, na prática, transforma as emendas de comissão também em obrigatórias. Em julho, por exemplo, o governo anunciou um congelamento de mais de R$ 1 bilhão das emendas de comissão, o que representava cerca de um quarto do valor previsto neste ano. Com essa nova regra, isso não seria possível.
— Atualmente, não há regra para o montante dessas emendas, nem proteção contra cortes. Ambas as ausências seriam suprimidas pela proposta, introduzindo impositividade, mesmo sem que se preveja isso na Constituição Federal — afirmou Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos.
Outro ponto apontado por Salto que, na prática, o projeto aprovado pela Câmara “engessa” o governo é o que define uma regra de reajuste para as emendas de comissão. Segundo o economista, caso ganhe o aval do Senado, a proposta dificultará ainda mais o ajuste fiscal em discussão pele equipe econômica do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao perpetuar os valores atuais, que representam um recorde histórico.
Hoje, o Congresso tem R$ 49,2 bilhões do Orçamento da União para ser distribuído a critério de deputados e senadores, dividido em três modalidades principais: individual, de comissão e de bancada estadual.
De acordo com o texto, para o exercício de 2025, o limite será atrelado à receita corrente líquida no caso das individuais e de bancada —, mais R$ 11,5 bilhões para emendas de comissão. Para 2026, a correção deverá seguir a regra do arcabouço fiscal, que é a inflação mais uma variação que pode chegar a 2,5%.
—Apesar de correção apenas pela inflação, sem crescimento real, a fórmula também “cristalizaria” elevado patamar para as emendas de comissão por muitos anos— disse Salto.
A versão final do texto, apresentada pelo deputado Elmar Nascimento (União-BA) pouco antes da votação, na noite de terça-feira, também incluiu vedações para que o governo deixe de pagar emendas sob o argumento de “impedimentos técnicos”. Segundo a redação do projeto, para fazer isso, o governo precisará utilizar os mesmos critérios adotados para liberar recursos dos próprios ministérios.
Entre os itens considerados impedimentos técnicos, por exemplo, estão a falta de licença ambiental ou de projeto de engenharia de uma obra. Nestes casos, o projeto prevê que o recurso deverá ser empenhado mesmo sem essas etapas, que poderão ser apresentadas depois.
“É vedada a imposição de regra, restrição ou impedimento às emendas parlamentares que não sejam aplicáveis às programações orçamentárias discricionárias do Poder Executivo”, diz o artigo 14 do projeto.
O argumento de parlamentares é evitar que os impedimentos técnicos sejam usados pelo governo para barganhar a execução do recurso, criando dificuldades para enviar o dinheiro a prefeituras, por exemplo.
— Penso que o texto não engessa o governo, só protege as emendas — afirmou o deputado Rubens Pereira Junior (PT-MA), autor do projeto e vice-líder do governo na Câmara.
Uma primeira versão do relatório de Elmar incluia ainda um calendário de pagamento para as emendas. A proposta previa que o empenho de todas os recursos ocorresse em até 120 dias. Esse trecho, porém, foi retirado do texto pouco antes de ser votado após pedido de Pereira Junior a Elmar.
A criação de um calendário para o pagamento das emendas é uma demanda de parlamentares para evitar que o Planalto utilize a liberação dos recursos em troca de votações de seu interesse no Congresso. O mecanismo chegou a ser aprovado no ano passado pelos parlamentares, mas foi vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro.
—O texto consolidou as emendas de comissão. E além disso, manteve o poder do Legislativo de intervir na execução do orçamento, uma vez que a destinação das emendas de comissão será decidida depois da aprovação da Lei Orçamentária. Ou seja, não haverá um processo em que, ao longo da discussão do orçamento, as comissões decidam e votem onde alocar o dinheiro— disse o economista e pesquisador do Insper Marcos Mendes
O deputado Carlos Zarattini (PT-SP) avaliou que, diante de como é hoje, o projeto é positivo para governo pela possibilidade de se estimar quanto as emendas representarão no ano seguinte. Ele, porém, admite que o texto ainda não é o ideal.
— Dentro do conjunto do opera ficou bom para o governo. Primeiro que elas vão crescer menos do que antes, quando era de acordo com a RCL. E organizou as emendas comissão. Agora o governo tem uma previsão do quanto vai ser. Ficou melhor do que estava, deu uma disciplinada. Claro que na transparência, ainda estamos longe do ideal — disse o deputado.
Críticas de entidades
Além dos pontos que limitam a atuação do governo sobre as emendas, entidades criticam ainda outros aspectos do projeto que, na visão delas, não atende os critéiros de transparência definidos no acordo com o STF.
“A aprovação precipitada do PLP nº 175/2024 pela Câmara contraria a elevância do tema eos graves impactos que as emendas têm produzido em termos de distorções eleitorais, prejuízos a políticas públicas e casos de corrupção e conflito de interesses”, afirma nota conjunta da Transparência Brasil, a Transparência Internacional – Brasil e a Associação Contas Abert
Para as três entidades, que denunciaram ao Supremo o descumprimento da decisão que havia declarado a inconstitucionalidade do Orçamento Secreto, o texto aprovado na terça-feira “contém falhas e omissões graves”. Um dos pontos criticados pelas entidades é que a indicação dos beneficiários das emendas coletivas (bancada e comissão) segue podendo ocorrer após a aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA).
Pelo texto aprovado ontem, caberá aos líderes de cada partido fazer as indicações das emendas de comissão em até 15 dias após a publicação da LOA. A crítica é que, a exemplo do que ocorria no Orçamento Secreto, o real padrinho do recurso continuará desconhecido.
“A falta de transparência na formulação das emendas parlamentares seguirá, no caso das emendas coletivas, pela ausência de um rol mínimo e padronizado de informações que devem constar nas atas das reuniões de bancada e de comissão que definem as emendas a serem apresentadas”, diz a nota.
Segundo o líder do governo no Senado, Otto Alencar (PSD), apesar de aumentar as amarras, o texto aprovado na Câmara foi acordado com o Executivo. Os líderes da Casa querem que a votação do projeto ocorra já na semana que vem, em plenário, sem passar por comissões.
— O relatório de lá (Câmara) atende o que pretende o executivo e o STF. Estão em sintonia. Vai direto para o plenário, tem acordo para ter urgência. Acho que já vai na semana que vem — afirmou Otto.
Ministros do Supremo, contudo, avaliam que o texto não atende completamente às determinações da Corte sobre transparência, que motivaram os repasses dos bloqueios.
A principal reclamação de integrantes do STF ouvidos de forma reservada é que o projeto atual não detalha qual será o funcionamento das emendas de comissão. Um dos pontos ressalvados é a falta de clareza sobre a quem caberá fazer as indicações desses repasses — se competirá, por exemplo, aos líderes fazerem essas indicações para as comissões. Desta forma, permaneceriam problemas de transparência e rastreabilidade.