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sábado 26 de outubro de 2024 às 17:07h

Direita radical sequestrou a pauta do trabalho e do desejo, diz pesquisador

ELEIÇÕES 2024, NOTÍCIAS, POLÍTICA


Apresentar fatos, dados, argumentos racionais e lógicos na maioria das vezes não é suficiente para convencer quem acredita em teorias da conspiração.

Essa dificuldade tem sido cada vez mais estudada por pesquisadores, mas aos poucos vão surgindo caminhos para combatê-la, diz o pesquisador italiano Paolo Demuru.

Radicado no Brasil e professor na Universidade Mackenzie, Demuru publicou o livro Políticas do Encanto: Extrema Direita e Fantasias de Conspiração (Elefante), no qual discute, de forma acessível, conhecimentos relevantes produzidos sobre desinformação e políticas extremistas nos últimos anos.

Demuru afirma que a direita radical é muito bem sucedida no que ele chama de “fantasias conspiratórias”, pois, além de fornecer respostas simples para problemas complexos, essas histórias encantam, fascinam e levam ao êxtase seus adeptos.

Para contrapô-las, diz ele, é preciso entender o pensamento mágico e mergulhar nas “políticas do encanto”.

“A extrema direita sequestrou as pautas do trabalho e do desejo”, diz ele em entrevista à BBC News Brasil.

“Forneceu uma resposta para o desejo de pertencimento, de se maravilhar, entrar em transe” de quem vive sob um “sistema de trabalho opressor e um mundo desigual”.

“Fantasias de conspiração são a experiência do maravilhoso no mundo onde a maravilha está em falta”, afirma.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – No livro você fala em “fantasias de conspiração” em vez de “teorias de conspiração”. Por quê?

Paolo Demuru – Eu retomo essa nomenclatura de um livro de um autor italiano, do coletivo Wu Ming. Ele diz que a gente deveria usar o termo fantasia e não mais teoria, porque esse termo foca em uma dimensão fundamental do processo que é a construção discursiva das histórias sobre conspiração e complôs baseada no maravilhamento, no encanto.

A expressão “teoria” é um termo racionalista, em que o enfoque do problema está em explicações excessivamente racionais, excessivamente sociológicas.

O termo “fantasia” traz a reflexão justamente nesse aspecto, da maravilha, porque essas histórias conspiratórias encantam.

Além de oferecer uma resposta simples a uma questão muito complexa — da desigualdade social —, elas oferecem também algo que o próprio sistema neoliberal nos tira, que é o sonho.

Então essas teorias não são meras teorias, são fantasia, porque permitem às pessoas idealizar algo. E também fazem a pessoa se sentir especial, porque ela entra nesse pequeno círculo de escolhidos que sabe “a verdade”. Isso já por si só é maravilhoso, encantador. É algo que tira a pessoa da mediocridade, da rotina, do cotidiano.

E depois o encantamento se dá até por outras razões, porque os adeptos dessas fantasias de conspiração vão atrás de outras histórias e produzem outras histórias, não é uma coisa passiva.

Por exemplo, o pessoal do QAnon [teoria infundada segundo a qual Donald Trump está travando uma guerra secreta contra pedófilos adoradores de Satanás no governo, empresas e imprensa dos EUA] começou a achar que 17 era um número especial porque é a posição do Q no alfabeto, e começaram reparar as vezes em que Trump falou 17 e encontrar um significado escondido nisso.

É quase como uma caça ao tesouro. É a experiência do maravilhoso no mundo onde a maravilha está em falta.

BBC News Brasil – Você compara as fantasias de conspiração com jogos de RPG (sigla para role playing games, em inglês, jogo narrativo em que os jogadores assumem personagens fictícios) e com obras de arte participativas. Pode explicar essa comparação?

Demuru – A obra de arte participativa, a fanfic, são metáforas que funcionam porque dizem respeito justamente a participação do fruidor que se torna um criador.

Ele não lê apenas algo na internet, esses grupos não são apenas manipulados. Eles não têm um papel passivo.

Quando eles leem uma história conspiratória, por exemplo, essa do globalismo, do marxismo cultural, da grande substituição, muitas vezes nos fóruns, nas redes, etc, se desencadeia uma construção narrativa global coletiva de histórias que se desdobram.

“Ah, eu vi naquela foto o rosto de uma pessoa.” E quem escreve isso são as pessoas. Ou seja, é algo que desenvolve a imaginação, a fantasia, algo que está em falta. Porque o mundo é extremamente desigual, duro, onde muitas vezes a gente é confinado na nossa cotidianidade mais bruta e desinteressante.

BBC News Brasil – Você diz que essas fantasias não são puras fantasias, elas têm o que você chama de “núcleos de verdade”. O que é um “núcleo de verdade” dentro dessas narrativas?

Demuru – Um núcleo de verdade é o fato — que todas as fantasias de conspirações retomam, desde o globalismo, o marxismo cultural, os iluminati — de que existe uma elite econômica e intelectual que domina o mundo.

Isso é um núcleo de verdade. A gente vive em um mundo onde pouquíssimos bilionários detêm a maior parte da riqueza do mundo.

Outro exemplo é que o QAnon diz que artistas e políticos como Hillary Clinton, Tom Hanks, Celine Dion, formam um grupo satanista de pedófilos que traficam crianças.

Isso não é verdade, mas o núcleo de verdade é que existem pessoas famosas que fazem parte de associações secretas, seitas. O Tom Cruise, por exemplo, é um dos maiores nomes da cientologia. E existem famosos que cometem crimes, que fazem exploração sexual.

Algumas conspirações existem, coisas que governos escondem. O argumento dos EUA para invadir o Iraque, de que havia armas nucleares sendo feitas ali, depois se mostrou uma mentira.

Então muitas vezes os elementos gerais são reais. O mundo é de fato injusto, desigual, cheio de problemas. Partindo desses núcleos de verdade, as pessoas desdobram suas histórias e engajam nessa busca e construção coletiva das histórias.

BBC News Brasil – Você fala que as fantasias proporcionam um transe coletivo. Tradicionalmente, esse encantamento coletivo, esse senso de comunidade são coisas que você pode encontrar justamente no jogo, no futebol, na religião, nos mitos, no misticismo. Por que especificamente agora isso se voltou para a política?

Demuru – Ótima pergunta. Isso seria uma pesquisa ampla. Eu não posso falar com certeza, mas posso tentar traçar algumas hipóteses.

As redes sociais são o grande universo do eu, do individualismo. Ao mesmo tempo, o sistema capitalista nos confina em vidas individuais, onde a gente passa muito tempo em frente de telas, onde muito da experiência do dia a dia é intermediada pela tela.

Portanto, há uma necessidade que já existia e era sublimada por outras práticas sociais, mas que agora desembocou no campo da política.

A partir dos anos 2010, após o movimento de explosão de grupos progressistas, tudo isso desembocou num processo de captura da experiência coletiva física por parte da extrema direita, que entendeu que estava faltando algo nesse sentido, que as pessoas estavam talvez cada vez mais sozinhas.

E a direita conseguiu costurar isso, mas sempre dentro — e o [candidato derrotado à Prefeitura de São Paulo] Pablo Marçal, nesse sentido, é talvez o maior expoente — em uma coletividade onde o que importa não é tanto o coletivo, mas a pessoa dentro desse coletivo.

Pessoas que vão enriquecer individualmente. No discurso da extrema direita existe uma aura, uma aparência de coletividade que construíram, mas ainda tem uma predominância do indivíduo.

Sobre o futebol, eu tenho outra hipótese: que no Brasil após a Copa de 2014, após o 7 a 1 [referência ao jogo no qual o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha], aquela derrota, aquele trauma nacional coincidiu com o fim do mensalão, o começo da Lava Jato.

A minha hipótese é que aquelas paixões, aquele sentido de coletividade nacional, de transe, o desejo de pertencimento, dessas paixões que não se consegue nomear, as físicas mesmo, de pele, de entrega… Todas essas necessidades que não foram sublimadas no campo do futebol acabaram desembocando no campo da política.

A extrema direita entende isso muito bem e usa palavras certeiras: mito, capitão, usa a camisa da seleção. Tanto que nos jornais, na época do impeachment, a linguagem jornalística usava metáforas futebolísticas.

Não é coincidência que a camisa do Brasil foi cooptada como um grande símbolo. Mas é claro que a gente está falando em termos hipotéticos, mais ensaísticos, porque não tem como comprovar isso.

BBC News Brasil – Você cita o transe, e o encantamento, mas também fala, como muitos autores, do papel do ódio. Não parece uma coisa contraditória, algo que produz encantamento ao mesmo tempo se calcar no ódio? Parecem duas coisas que não se encaixam…

Damuru – O ódio foi um dos primeiros motores do transe no Brasil. O ódio ao PT, por exemplo, o ódio a Dilma, o ódio ao Lula. Foi por causa desse ódio que as pessoas foram às ruas e descobriram também esse sentido de encantamento de estar juntos dentro desse mundo, estar junto em um palco.

A questão é que o ódio é uma paixão que move. Ele também foi sendo utilizado como base do discurso humorístico. O ódio é a base das piadas de Bolsonaro. É ódio contra homossexual, contra nordestino, contra negro, contra a mulher, que transparece em formato de humor do que eu chamo de derrisão, que é diferente do riso. Não é o rir juntos. É o rir de alguém a partir de estereótipos negativos.

Hoje você tem até no mercado audiovisual produções muitas vezes feitas para serem odiadas, porque as pessoas vão entrar no Twitter, no Facebook, e vão comentar, gerar conteúdo.

O ódio move, a partir disso se cria uma comunidade onde se encontra o transe. A gente tem essas distinções entre as paixões nomeadas, que a gente consegue nomear: o ódio, a raiva, etc, e as paixões sem nome, aquelas que são da ordem da sensação.

Então falamos em transe, mas não só, pode ser algo mais delicado também, porque a gente não consegue às vezes traduzir numa palavra só. Na psicanálise chamariam de libido, de pulsões.

BBC News Brasil – No livro você diz que esse ódio funciona para reforçar a condição de vítima na qual os líderes conspiratórios se colocam.

Demuru – Esse é um papel que eles exercem muito bem. As fantasias de conspiração partem da ideia de que há uma elite econômica, intelectual que domina o mundo. E os líderes populistas de extrema direita, como [Javier] Milei, [Donald] Trump, [Jair] Bolsonaro, [Giorgia] Meloni, que se dizem a voz do povo, se colocam como vítimas, porque isso os coloca exatamente na mesma dimensão, no mesmo patamar que o povo.

Se o povo é vítima e eu sou a voz do povo, eu também sou uma vítima. E eles podem ir além, querer encarnar outros papéis, como, por exemplo, o do mártir. Que deu certo com o Bolsonaro quando ele levou uma facada. Foi por isso que ele compartilhou as fotos no hospital da cirurgia após a facada, com aquele corpo ferido, quase moribundo, o corpo do mártir.

O Marçal tentou o mesmo quando levou a cadeirada [do candidato José Luiz Datena], mas que no caso dele não deu certo, porque estava claro que não foi tão grave a situação.

Eles se colocam como vítimas do “sistema”. E o que é o sistema? É um termo guarda-chuva.

A vagueza também é um estratagema discursivo dele e da fantasia de conspiração, que funciona muito bem porque todo mundo pode preencher conforme a necessidade do momento.

O sistema pode ser a Globo, o STF, quando eles são oposição pode ser o governo, quando eles são governo pode ser o Congresso, mesmo que eles tenham maioria no Congresso. Podem ser as minorias, o marxismo cultural, o globalismo… Não importa, eles vão adaptar o discurso.

BBC News Brasil – E por que você defende que o excessivo de racionalismo não é a forma de lidar com as fantasias de conspiração?

Demuru – Temos muitos estudos a respeito dessa ineficácia. De modo geral, quem estuda discurso, comunicação, redes, sabe que o esforço de desmentir com cunho racionalista circula muito menos do que a própria mentira.

Aqui existe a questão de estrutura de plataformas de rede social que é complicada. Mas, além disso, é muito complicado tentar explicar ou dizer para uma pessoa que aquilo que ela acredita é mentiroso, é uma ilusão e não faz sentido com um viés extremamente racional, com dados, fatos etc.

Quando você usa argumentos racionais para desmentir, quando você usa dados, fatos, argumentações, lógicas super bem estruturadas, etc., o que acontece é que você aparece como o grande corta-onda, o furador de bexiga numa festa de crianças.

Porque as histórias nas quais essas pessoas já acreditam estão tão bem amarradas, estruturadas, e são tão encantadoras, maravilhosas, que as pessoas muitas vezes não querem deixar de acreditar.

Então não adianta explicar que não existe uma seita de pedófilos satanistas que está por trás do deep state [Estado profundo, um grupo secreto que, segundo os adeptos do QAnon, controlaria o governo] nos Estados Unidos. Porque a pessoa vai pensar: poxa, então o que explica o mundo estar indo tão mal?

As pessoas que estudam conspiração, principalmente nos últimos anos, fazem uma comparação do ponto de vista discursivo, mas também psicológico e social, com os adeptos das seitas religiosas.

É muito difícil você sair de uma seita, porque todo o seu mundo gira em torno daquilo. As relações sociais, as histórias nas quais você tem que se apegar. Então um argumento racional não pega, não funciona.

Não adianta chegar e falar que “as vacinas não vão te transformar em um jacaré”. Você parece alguém que se acha superior do ponto de vista racional e moral. Porque para a pessoa, é como se você estivesse dizendo que é mais inteligente que ela.

“Como assim você caiu nessa mentira? Como assim você não reconheceu que essa mensagem, cheia de erros de português, era fake?” E isso de fato é bastante elitista.

Além disso, ao negar algo, você muitas vezes reforça esse algo. Um exemplo é quando o ex-presidente americano Richard Nixon foi se defender ao ser acusado de ser trapaceiro, ele disse “I am not a crook” [eu não sou trapaceiro, em inglês], e o que pegou foi o “trapaceiro”.

BBC News Brasil – Você argumenta que para contrapor as fantasias conspiracionistas é preciso ser um pouco como um mágico que revela um truque, como o Houdini ou o Mister M. Pode explicar isso?

Demuru – Eu não estou dizendo que a gente não deve mais fazero debunking [desmentido] clássico, a checagem. Isso deve continuar a ser feito, é super importante.

Mas, ao mesmo tempo, é preciso fazer outro tipo de debate, tanto do ponto de vista intelectual quanto do ponto de vista moral, que não aponte dedos e que produza encantamento. Como você usa o mesmo sistema da magia, do feitiço?

A pegada de mágicos como o Mister M, Houdini, entre outros, que revelavam os truques de mágica, é que ao revelá-lo, quem está ali se encanta pelo próprio desvelamento do truque.

Quem faz debunking deveria tentar fazer isso de uma maneira não tão direta, tão chata. Fazer algo um pouquinho mais criativo, que faça as pessoas se encantarem pelo próprio processo de desvelamento. Não adianta mais fazer meros debunkings, não adianta só criticar.

É preciso construir alguma forma de encantar que seja capaz de trazer a pessoa de volta para o real. O Felipe Neto conseguiu um pouco disso em seus vídeos durante a campanha presidencial em que ele desmentia notícias falsas, mas também trazia outras coisas, contava outros fatos, fazia um pouco de humor.

Dá muito certo, por exemplo, mostrar como funciona o deep fake [sistema que cria vídeos falsos ultrarrealistas], como são feitos os vídeos, como as notícias falsas se espalham. Isso é sensibilizar, é uma educação midiática.

BBC News Brasil – Você fala que para criar esse encantamento é preciso se esquivar da negatividade. Mas isso não pode cair na platitude, no otimismo vazio, na positividade tóxica? Como falar em encantamento em um mundo com tantos problemas?

Demuru – Essa é uma observação muito pertinente. É um ponto crucial que pensei enquanto estava escrevendo: será que isso vai ser interpretado nesse sentido? Bom, eu não tenho respostas muito detalhadas nesse momento, mas talvez alguns caminhos que eu posso indicar.

Sobre a negatividade, tem a ver com não apenas falar contra as fantasias conspiratórias, mas mostrar o que você é a favor.

Teve um vereador no Rio, o Henrique Azevedo (PSOL) que teve sucesso nisso, fazendo uma campanha contra a jornada 6×1 [seis dias de trabalho, um de folga]. Falando coisas simples, sabe, “eu quero ter tempo de levar minha namorada no cinema e não consigo porque trabalho demais”.

Acho que o [candidato a prefeito de São Paulo Guilherme] Boulos também está tentando fazer isso nessa campanha.

BBC News Brasil – Eu ia perguntar como você avalia as campanhas na corrida eleitoral em São Paulo.

Demuru – Acho que o Boulos tem se dado bem nisso, em construir esse universo propositivo de uma outra cidade possível. Mas é claro que você também precisa lidar com o seu adversário.

Você não pode dar palco demais, mas também não adianta ignorar. O [ministro da Fazenda Fernando] Haddad disse isso recentemente em uma entrevista: a esquerda precisa voltar a falar do sonho.

E isso vale não apenas para o campo progressista à esquerda, para candidatos específicos. Vale para instituições que trabalham contra desinformação, que trabalham pela defesa da democracia, do meio ambiente, contra as mudanças climáticas, para que o mundo continue existindo basicamente.

O que traz encantamento também é mostrar como o sonho se traduz em uma pauta concreta. A gente precisa, sim, das grandes pautas, dos grandes sonhos, mas isso precisa estar ancorado no nosso dia a dia.

Então, quando se fala em ambiente e mudanças climáticas, por exemplo, tem a questão muito concreta do apagão em São Paulo. Eu não quero ficar sem energia elétrica. Eu quero que cuidem das árvores e enterrem os fios. Isso é muito concreto, muito próximo.

BBC News Brasil – Você também defende que a esquerda não deixe a direita radical dominar a pauta, escolher quais são os assuntos que vão ser discutidos…

Demuru – Sim. É preciso falar mais de trabalho. O discurso sobre o trabalho foi saqueado por gente como o Pablo Marçal, que vê o trabalho como uma questão de prosperidade individual e não como uma questão de defesa do coletivo ou de discutir como o sistema de trabalho mudou.

BBC News Brasil – Muitas pessoas da própria esquerda culpam os movimentos LGBT, feminista, antirracista, e dizem que eles dominaram a pauta da esquerda. Você concorda com isso?

Demuru – Não. Isso é uma visão muito pobre do que está acontecendo. A questão da direita sequestrar a pauta do trabalho não tem nada a ver com a pauta identitária. Isso é um terreno muito lamacento, mas muitas vezes é fruto das próprias visões e discursos do campo adversário, obcecado com a questão de gênero, com a fantasia da grande substituição etc.

Isso ignora que os desejos de certas camadas da população, que são sempre esquecidas, muitas vezes escravizadas até, também estão relacionados ao mundo do trabalho.

Não é uma questão do que é mais ou menos importante, mas de construção de rede discursiva, de como você liga uma coisa com a outra. Como você constrói elos narrativos, semânticos, de valores.

É isso que corresponde aos desejos das pessoas.

E eu acho que a palavra desejo é muito central nisso tudo, tem a ver com ser a favor das coisas, tem a ver com o encantamento. A extrema direita sequestrou não só a pauta do trabalho, mas a pauta do desejo. Como a gente constrói a política do encanto a favor de um outro mundo possível?

Outro dia li uma notícia, que tinha tom de crítica, e que dizia “Pablo Marçal admite que suas propostas são sonhos”.

Ele admitia que algumas propostas não são factíveis. Mas ter sonhos não é algo negativo. Quando é que foi que o Marçal, que a direita, se apropriou do sonho? O problema é justamente esse: a esquerda fica muito presa à defesa do realismo, mas de uma realidade que nem existe.

BBC News Brasil – As fantasias conspiratórias não são só da direita radical, você cita isso no livro.

Demuru – Sim. Quem luta contra o extremismo — que não é só de direita, existem vários extremismos conspiracionistas —, quem luta contra a desinformação extrema, precisa ter sonho.

É preciso juntar as pontas entre o sonho e o concreto. Que bom que não existe só a Ciência, que existe o sonho. É fantástico um candidato falar que tem sonhos.

É preciso se apropriar de um discurso um pouco mais alegre também quando a gente desmente uma fantasia conspiracionista.

O mágico, ao mostrar que algo é falso, ou que não é tão verdadeiro, que é distorcido, ele não usa o discurso da supremacia do racional. Ele faz rir, ele encanta, ele faz isso a partir de outras estratégias discursivas.

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