Primeiro turno municipal terminou com 856 agentes de segurança eleitos – maior número número da história recente. Especialistas apontam que resultado consolida “policialismo” na política e advertem para riscos.O primeiro turno das eleições municipais de 2024 terminou com o maior número de prefeitos eleitos oriundos de forças de segurança da história recente. Foram 52 prefeitos eleitos em 2024 contra 45 em 2020.
Ao todo, 856 agentes foram eleitos para todos os cargos – 759 vereadores, 52 prefeitos e 45 vice-prefeitos. É o maior número desde o ínicio da série histórica, em 2012.
Em 2024, foram quase sete mil candidatos com histórico de passagem por instituições como a Polícia Militar e Civil, que usaram termos como “sargento”, “capitão” e “delegado” junto a seus nomes nas urnas. O movimento consolida o chamado “policialismo” na política brasileira, e preocupa especialistas por possíveis reflexos na segurança pública.
O levantamento foi elaborado pelo Instituto Sou da Paz. O número pode aumentar depois do segundo turno, já que algumas cidades como São Paulo, Manaus e Belém contam com candidatos a prefeito e vice-prefeito com origem na segurança pública ainda na disputa.
“Há a consolidação do que chamamos de policialismo, que tem em uma de suas características a participação eleitoral de agentes da segurança pública”, afirma Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. Segundo ela, há um padrão que vem se repetindo nas últimas eleições, com aproximadamente 1,5% das candidaturas sendo oriundas das forças de segurança.
“Os partidos são predominantemente de direita, o que mostra que esse espectro político entendeu como usar a agenda da segurança pública. É uma agenda que se baseia no medo e em um discurso beligerante”, afirma a diretora, indicando que são candidatos que se “baseiam mais na violência policial do que no planejamento para a segurança pública”. Por outro lado, há “um vazio no campo progressista, com poucos candidatos deste espectro político”, indica.
O Partido Liberal (PL) do ex-presidente Jair Bolsonaro é o que teve mais candidaturas com essas características e maior número de eleitos, com um porcentual de quase 20%. Em seguida, aparecem Progressistas, Republicanos, MDB, PSD, União Brasil e Podemos.
Apesar de muitos temas abordados na campanha não serem de atribuição direta dos municípios, Roberto Uchôa, policial e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avalia que o movimento faz parte de uma presença cada vez maior da segurança municipal no debate público.
Ele destaca que o tema é especialmente forte em grandes cidades, nas quais a segurança pública é vista como o principal problema. “Mesmo com a queda nos índices de homicídios registradas nos últimos anos, não se sente melhora na sensação de segurança”, afirma.
Na visão de Uchôa, as candidaturas municipais, especialmente para o Legislativo, não são o “objetivo final” para muitos, já que se trata de um “primeiro passo” para ocupar posições maiores. Ele avalia que se trata de uma forma de acumular capital político, e lembra que muitos policiais vêm ocupando funções no Executivo, como as secretarias municipais e estaduais de segurança.
Forte presença nas redes
Parte importante dos eleitos teve amplo apoio das redes sociais, como o Sargento Nantes, quarto vereador mais votado em São Paulo. No Instagram, ele acumula 600 mil seguidores, e frequentemente publica conteúdos controversos.
A presença na rede ajuda a explicar como Nantes conseguiu a média de gasto mais barata entre os vereadores eleitos em São Paulo, gastando apenas R$ 2,89 por voto. Perfil semelhante tem o Sargento Salazar, vereador mais votado em Manaus, que mistura memes e perseguições a “maconheiros” para seus mais de 600 mil seguidores na mesma rede social.
A presença virtual é alvo de preocupação, e muitos órgãos limitaram o uso das redes sociais por agentes. Em 2023, a confissão extrajudicial de uma mulher condenada pela morte do marido foi anulada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) após defesa apresentar trecho de um podcast no qual uma policial civil revelou detalhes do método utilizado para extrair a confissão.
“Existem polícias que baixaram resoluções regulando as redes sociais, já que é um risco a partir da espetacularização da violência e das ações policiais. Existem pessoas que estão trabalhando como policiais e que ganham dinheiro usando as redes sociais”, aponta Ricardo. Um caso notório foi do Delegado da Cunha, que foi investigado pelos lucros que teria obtido monetizando um canal no Youtube no qual apresentava operações. Atualmente, da Cunha é deputado federal.
Riscos e enfraquecimento do debate
Com o avanço do movimento, “há o aumento de uma visão que recorre à violência policial e se baseia pouco em evidência. É uma lição linha dura, que não funciona para a segurança”, avalia Ricardo. Uchôa concorda, destacando um fenômeno que ocorre em uma série de cidades que visa mudar o perfil das guardas municipais, transformando-as em “réplicas da Polícia Militar”.
“Há o risco de estas forças perderem o caráter civil e aumentarem a militarização. Houve a possibilidade de ser algo mais próximo da população, mas estamos no caminho de criar outra PM”, avalia. Entre os exemplos, o analista cita a tentativa no Rio de Janeiro de criar um grupo de elite armado dentro da Guarda Municipal carioca.
Parte dos reflexos foi quantificada por Lucas Martins Novaes, professor associado do Insper e autor do estudo A violência da política de lei e ordem: o caso dos candidatos da aplicação da lei no Brasil. Com base em sua pesquisa, ele afirma à DW que quando um município elege um “vereador lei e ordem” que também é policial, há um aumento no número de homicídios.
Com base em sua pesquisa, ele avalia que discursos que incluem promessas de “bandido bom é bandido morto” potencialmente aumentam o número de homicídios, já que os candidatos policiais têm maiores razões eleitorais para “incentivar seus colegas para serem mais violentos”. O estudo apontou um aumento de até 14 homicídios a cada 100 mil habitantes em municípios com maior eleição de candidatos com este perfil
Há ainda o risco do conflito de interesses, com uso da segurança pública para fins privados e partidários, destaca Ricardo. “É muito grave, pois se trata da política de força do Estado”.
Uchôa também vê potencial para fragilização do espaço democrático. “Quando você coloca pessoas acostumadas a outro tipo de ambiente em um lugar em que o debate é o padrão, é preocupante”, observa. Em sua visão, a estrutura hierarquizada das polícias muitas das vezes é reproduzida pelos eleitos nos ambientes políticos, o que acaba limitando a busca por consensos. “Tem gente que diz: ‘se a proposta veio de esquerdista, não vou aprovar’”, observa.
Limitar candidaturas?
O projeto de lei do Novo Código Eleitoral (PLP 112/21) pretende colocar um freio nas candidaturas de policiais e militares. A ideia do relator da matéria, senador Marcelo Castro (MDB-PI), é estabelecer uma quarentena de quatro anos para que estas pessoas possam disputar cargos públicos eletivos.
“Todas as categorias profissionais devem ter direito de se candidatar. E, afinal, os policiais tem algum conhecimento da segurança pública”, afirma Ricardo. Por outro lado, diante do atual quadro, a diretora avalia que uma quarentena de ao menos dois anos seria adequada para mudar limitar os conflitos de interesses.
Uchôa também acredita que alguma limitação deveria ser estabelecida, mas é extremamente cético quanto a mudanças diante da configuração atual no Congresso, no qual a chamada “bancada da bala” tem grande força legislativa.
Na visão dele, “foi um equívoco permitir a politização das forças de segurança”. Neste momento, com a proliferação de agentes obtendo êxito no campo político, a avaliação do especialista é a de que cada vez mais candidatos vindos deste meio se sentirão impulsionados a seguir o mesmo rumo. “Quando se observa colegas se dando bem nesse meio, você acaba sendo estimulado”, resume.