Dois dos principais desafios na agenda educacional, a ampliação de vagas em escolas de tempo integral e em creches pouco aparecem nos planos de governo apresentados pelos candidatos que concorrem às prefeituras brasileiras. Uma análise do projeto “Vota Aí!” mostra que esses dois pontos são mencionados em apenas 6,7% e 29,8% , respectivamente, dos programas apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para o pleito de 2024.
O “Vota Aí!” é uma parceria das universidades estaduais de Campinas (Unicamp) e do Rio de Janeiro (Uerj). Utilizando ferramentas de inteligência artificial, as instituições mapearam 14,5 mil programas. A análise das promessas de educação, realizada com exclusividade para o jornal O Globo, também mostrou que pautas ideológicas do bolsonarismo na educação pouco aparecem e que os candidatos focaram seus planos em merenda e transporte escolar.
— Isso mostra um retrato de dificuldades que a gente tem no Brasil, que passa por questões muito básicas, como levar o estudante na escola e manter ele lá. Por isso que merenda e transporte apareceram bastante — afirmou Nara Salles, do Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp, coordenadora do “Vota Aí!” em parceria com a cientista política Argelina Maria Cheibub Figueiredo, pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj.
De acordo com Salles, a baixa menção de creche pode ser parcialmente compensada pelas menções ao termo “educação infantil”, que aparece em 30,2% dos programas. Esse guarda-chuva engloba a creche (que recebe crianças até 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5), sendo só a segunda etapa obrigatória. Por isso, é comum que os municípios privilegiem os alunos mais velhos em detrimento aos menores neste momento da vida escolar.
— Creche e tempo integral são dois grandes desafios porque demandam até novos prédios. Mas é incompreensível como a vaga para as crianças pequenas não é tema central no período de eleições, já que isso afeta muito diretamente a vida das pessoas na rotina delas. É uma dor que as pessoas sentem no agora, diferente da aprendizagem, que só é refletida no futuro — diz Ivan Gontijo, gerente de Políticas Educacionais do Todos Pela Educação.
Fila nos municípios
Atualmente, 632 mil crianças estão aguardando por uma vaga em creches públicas no Brasil e em quase metade dos municípios do país (44%) há fila de espera para fazer a matrícula na educação infantil, segundo dados do Ministério da Educação. Apesar de inúmeros estudos acadêmicos apontarem benefícios para toda a vida da criança que passa por essa etapa escolar, algumas cidades, como Manaus, definem através de um sorteio quais crianças entre as mais pobres da cidade terão esse direito na primeira infância.
— Dado o tamanho do problema, a menção às creches deveria ser maior. Inclusive porque é uma política multidimensional já que atende também às mães e, por isso, era esperado que tivesse mais destaque específico do que apenas 29% — diz a pesquisadora do Cesop.
Já a escola de tempo integral — aquela com mais de sete horas de aulas por dia — é uma das principais estratégias para alavancar a aprendizagem dos estudantes brasileiros. Dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2023 mostram que os alunos desse grupo de colégios aprenderam o equivalente a um ano a mais em Matemática. A análise foi feita por dois institutos voltados para a melhoria do ensino no país, o Sonho Grande e o Natura.
— A educação em tempo integral no Brasil é um debate que ainda necessita atenção e é essencial para anos eleitorais. Ofertar uma escola atraente, acolhedora e direcionada para a aprendizagem dos estudantes deveria ser prioridade para os candidatos — afirma David Saad, diretor-presidente do Instituto Natura para aAméricaLatina. — Os benefícios para toda a população são tangíveis. O tempo integral aumenta a aprendizagem, reduz homicídios, aumenta a empregabilidade, o acesso ao ensino superior e traz retornos econômicos para a sociedade. Esses impactos já foram verificados em vários estudos.
Atualmente, apenas 17% das matrículas do país é de tempo integral nos anos finais do ensino fundamental, que compreende do 6º ao 9º. Essa é a etapa escolar de responsabilidade dos municípios que vê benefícios mais tangíveis com o aumento da carga horária.
De acordo com Saad, é possível que entes federativos com menos recursos consigam garantir bons números de alunos em tempo integral. Ele lembra que estados mais pobres, como Pernambuco e Piauí, são referência nesse aspecto, e conseguiram avançar mais do que outros mais ricos, como o Rio e São Paulo.
— O gasto para a implementação do tempo integral pode ser superado pelos muitos ganhos de eficiência de custo que esse modelo acaba gerando nas redes. Dessa forma, a vontade política é que realmente fará esse tema avançar. Municípios como Sobral (CE), Benevides (PA) e Cachoeiro do Itapemirim (ES) apontam o caminho ao fazerem esforços para ter um território com uma rede de escolas 100% integral em todas as etapas — diz Saad.
Na vida de uma mãe de periferia, uma vaga na escola em tempo integral não significa apenas um futuro melhor para seus filhos. Mas também um presente mais próspero. Patrícia Santos, de 33 anos, deixou de trabalhar há quatro anos quando a filha nasceu. A cabeleireira de Manaus tenta até hoje matricular a criança numa escola com mais de sete horas diárias, mas nunca conseguiu.
— É muita criança para pouca vaga. É muito difícil conseguir mesmo — diz. — Durante a semana, não tenho com quem deixar ela. Hoje eu vivo com a ajuda de uma pessoa e com faxinas que consigo fazer aos fins de semana e o padrasto da minha filha pode tomar conta dela.
Cívico-militar
Entre as questões caras ao bolsonarismo na educação, o modelo de escolas cívico-militares, por exemplo, só é citado por 0,87% dos planos apresentados ao TSE. Em 2020, esse número era maior, mas ainda assim de 1,59%. Além disso, o tema é concentrado em candidatos do PL, PP e Republicanos. Nesses três partidos, estão 70 dos 127 programas que fazem menção ao tema. Já o combate à chamada “ideologia de gênero” aparece em somente 0,1% dos programas. Por outro lado, merenda e transporte escolar foram os termos que mais apareceram entre os temas pesquisados — em 48% e 44,5% dos programas do país, respectivamente.
— Esse poderia ser um espaço para que os partidos marcassem uma posição como conservadores, já que é assim que eles aparecem no debate nacional. Como não estão fazendo isso, eles podem ter entendido que se beneficiariam mais, na disputa municipal, tratando de temas mais tangíveis de ordem mais prática para as famílias — diz Nara Salles.