O governador João Doria (SP) receberá nesta sexta (31) as chaves do que restou do edifício do PSDB, partido que dominou com o PT a cena política nacional por quase 25 anos até ser humilhado com um quarto lugar na eleição presidencial de 2018.
Embora a liderança pareça natural, dado que Doria governa o mais poderoso estado do país, sua ascensão não ocorreu sem sobressaltos. Ele não deverá, contudo, sofrer resistência decisiva na convenção do partido que elegerá seu aliado Bruno Araújo (PE) presidente da sigla.
Foi o ex-deputado e ex-ministro das Cidades, aliás, quem providenciou um susto de última hora para Doria. No dia 17, Araújo foi comunicar ao tucano no Palácio dos Bandeirantes que desistira da indicação para substituir Geraldo Alckmin –ex-governador paulista derrotado na disputa presidencial em outubro e atual presidente do partido.
O governador cobrou seu comprometimento com o já acertado. Araújo, que preside a seção pernambucana do PSDB, reclamou que teria sua vida escrutinada. Já sabia, por exemplo que a Folha de S.Paulo apurava reportagem sobre seu crescimento patrimonial –de 454% ao longo de três mandatos, como publicado na segunda (27).
Além disso, na presidência tucana, teria de abrir mão da renda como advogado. Ao fim, saiu convencido por Doria. Há outros obstáculos no caminho do governador paulista, que nega, mas montou um plano de voo claro visando a construção de uma candidatura presidencial em 2022. A primeira é a resistência que ele sempre angariou dentro do PSDB, por ser considerado um “outsider” da vida partidária e dos grupos ligados à origem da sigla numa dissidência de centro-esquerda do PMDB, em 1988.
Expoentes desses grupos, particularmente integrantes da elite paulista do tucanato, nunca esconderam certo desprezo por Doria e a surpresa quando ele foi sacado da manga pelo então governador Alckmin para ser seu candidato a prefeito paulistano em 2016.
Para eles, faltava USP e sobrava Vila Nova Conceição –para usar um suposto antagonismo entre a intelligentsia universitária e o bairro abastado da capital– ao empresário e apresentador de TV que ganhou fama e dinheiro como promotor de encontros entre setores da economia e políticos por meio do grupo Lide, fundado em 2003.
Até a escolha de Alckmin, ele mesmo tachado pelos mesmos tucanos de provinciano, não foi feita sem solavancos. Em 2015, o governador considerava o hoje prefeito Bruno Covas o melhor nome tucano para o cargo, seguido do deputado federal Ricardo Tripoli.
Mas o neto do mentor de Alckmin, o governador Mário Covas (PSDB, morto em 2001), e o deputado não pareciam empolgados com a tarefa. Alckmin conhecia Doria e, segundo relatos de pessoas próximas, o casamento político foi celebrado por um amigo comum dos dois, o empresário Edson de Godoy Bueno.
Fundador e dono da Amil até 2012, Bueno foi um dos grandes incentivadores do Lide, uma porta de entrada para o mercado paulista.
Doria o chamava de melhor amigo. Quando Bueno morreu de infarto jogando tênis, pouco depois de Doria tomar posse como prefeito em 2017, o tucano batizou uma ponte em sua homenagem. Já Alckmin era conectado a Bueno por meio de Mário Sérgio Ribeiro, genro do ex-governador que chegou a vice-presidente da Amil, de onde saiu em 2014.No fim de julho de 2015, Doria se lançou pré-candidato contra Tripoli e o vereador Andrea Matarazzo, nome próximo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do senador José Serra (SP).
Alckmin deixou o fluxo correr até desaguar em prévias fratricidas no PSDB, que levaram Matarazzo a migrar para o PSD e fizeram explodir o azedume da velha guarda com Doria. Covas acabou na vaga de vice da chapa.
Em março de 2016, o governador chegou a tentar demover o empresário, mas foi confrontado com pesquisas. Elas indicavam a necessidade de trazer um nome novo, fora da política tradicional, ao tabuleiro. Doria também era identificado com o antipetismo que ajudaria a derrubar a presidente Dilma Rousseff naquele ano, tendo criado o movimento conhecido como “Cansei” em 2007, em oposição a Luiz Inácio Lula da Silva.
O posicionamento causou receio a empresários candidatos a “campeões nacionais” de associar-se aos eventos do Lide, com medo de melindrar o Planalto petista, mas ainda assim ministros eram figuras recorrentes em eventos. Após entrar na política, Doria afastou-se formalmente do grupo, que de todo modo continuou associado a seu nome: o prestígio dos encontros cresceu e, com ele, a mensalidade dobrou para R$ 9.000 à época. Essa face empolgou um Alckmin conhecido pela austeridade: na primeira eleição após a proibição do financiamento empresarial, Doria foi o maior doador de si mesmo: 35% dos R$ 12,4 milhões amealhados saíram de seu bolso, valor semelhante ao doado por amigos empresários.
Uma vez eleito, tendo esmagado o petista Fernando Haddad no primeiro turno, o prefeito tratou de costurar um voo nacional –antevendo a continuidade da onda antipolítica ou por sede de poder. A avaliação depende da simpatia do interlocutor por ele. Seja como for, a história é conhecida: ele se afastou de Alckmin, que usou seu peso partidário para assegurar a candidatura ao Planalto, enquanto Doria foi duramente criticado por largar a prefeitura e disputar o Bandeirantes.
Derrotado, Alckmin chamou o vitorioso Doria de traidor. É uma ferida aberta. Se alguém quiser ver o hoje relaxado ex-governador nervoso, basta questioná-lo sobre seu apoio ao ex-protegido. Já o governador teme a pecha da traição. Tanto é assim que dança um balé intrincado com o presidente Jair Bolsonaro (PSL), a quem se colou no segundo turno de 2018 para obter os 51,75% que derrotaram o ex-vice de Alckmin Márcio França (PSB).
Ora defende abertamente bandeiras do governo, como a reforma da Previdência, ora tenta diferenciar-se de Bolsonaro em temas comportamentais. Além disso, virou aliado do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), e estabeleceu pontes com Judiciário e militares. Esta movimentação, diz um ministro, o transformou em presidenciável aos olhos do Planalto.
Para conter impetuosidades, tem contado com o tucano Antônio Imbassahy, ex-ministro que representa São Paulo em Brasília. Há duas semanas, por exemplo, ele apagou o incêndio entre Doria e o PSDB mineiro acerca do apoio ao governador Romeu Zema (Novo): o paulista queria apoio total e foi confrontado. Despachou Imbassay para costurar uma saída, resumida na declaração de que só fizera uma sugestão.
Doria vive entre liderar fóruns de governadores, onde em tese dilui seu personalismo, e fazer anúncios de repercussão nacional como sua política de incentivo industrial. Segurança e emprego já são suas bandeiras para 2022.
Essa parece ser a maior dificuldade para ele neste ponto, já que tudo indica que enfim ele dobrou o PSDB. Os setores mais à esquerda do partido, hoje os mais vocais contra sua liderança, têm sido escanteados. São eles que podem fazer algum barulho na convenção, embora um integrante da velha guarda duvide da repetição de falas contra a renovação partidária ocorridas na convenção estadual paulista no começo deste mês.
Uma das últimas arestas ocorreu na semana passada, em reunião da Executiva Nacional. O grupo ligado a Doria sugeriu enxugar o colegiado, que tem 39 nomes. Sairiam os ex-presidentes da sigla e representantes de minorias e da juventude.
Não deu certo, e Alckmin reterá uma cadeira, ainda que quase simbólica. A vice-presidência ficará com a senadora Mara Gabrili (SP) e Doria ainda emplacou outros aliados, como o prefeito Orlando Morando (São Bernardo do Campo) na Executiva.
Nova reunião ocorre nesta quinta (30), e pode tocar no espinhoso tema do desligamento de tucanos envolvidos em suspeitas de corrupção. O alvo do movimento é o deputado Aécio Neves (MG) e o ex-governador Beto Richa (PR), enrolados na Lava Jato. É uma briga que amigos de Doria dizem que ele está disposto a comprar, ainda que perca, já que sustenta uma retórica de rigor com corrupção.
Já aliados de Alckmin temem a abertura de precedentes, uma vez que o ex-governador também é investigado. Velha guarda e Doria entraram em acordo em nome da sobrevivência de um partido destroçado, mas ainda com um patrimônio de 60 milhões de governados em estados, o maior de todas as siglas. Se sacrificará no processo o nome e a ave bicuda que o simboliza, é uma incógnita a essa altura, mas a mudança de rumo na sigla que comandou o país de 1995 a 2002 parece inevitável.