No ano passado, 93% dos juízes brasileiros ganharam mais por mês do que os salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – de R$ 39,3 mil até março de 2023 e depois reajustado para R$ 41,7 mil, valor que pela Constituição deveria ser o teto do funcionalismo.
Até 2026, os fiscais da Receita Federal devem ganhar mais de R$ 11 mil por mês para além de seus salários na forma de um “bônus de eficiência”, cujo pagamento independe do desempenho individual de cada auditor fiscal.
Com isso, a categoria poderá receber a partir daquele ano vencimentos de mais de R$ 40 mil, somando salário e bônus.
Os titulares de cartórios são a categoria profissional com renda mais alta do país – uma média de R$ 142 mil por mês, segundo dados do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) de 2022.
Mas, no Distrito Federal, um titular de cartório – cargo provido por concurso público – chega a ganhar em média meio milhão de reais mensais.
Como essas e outras categorias da elite do serviço público conquistaram essas remunerações exorbitantes que, em última instância, são financiadas pelo bolso de todos nós – seja através do pagamento de impostos ou do pagamento pela prestação de serviços, no caso dos cartórios?
É o que responde o mestre em economia e doutor em direito Bruno Carazza, em seu novo livro O país dos privilégios – Volume 1: Os novos e velhos donos do poder, lançado pela Companhia das Letras na terça-feira (25/6).
“Temos esse modo de funcionamento do Estado brasileiro, que permite que alguns grupos muito bem organizados, com poder de pressão, muito bem articulados com as esferas de poder – no Executivo, no Legislativo e no Judiciário –, consigam extrair do Estado uma série de benefícios”, diz Carazza, em entrevista à BBC News Brasil.
“É por isso que eu concebi essa obra com três volumes, porque não é algo restrito às carreiras públicas do funcionalismo. É algo também muito bem explorado pelo setor empresarial e pelas classes mais altas – os ricos e os super ricos”, diz o professor da Fundação Dom Cabral, já antecipando os temas de seus próximos volumes, previstos para serem lançados respectivamente em 2025 e 2026.
“A meu ver, isso explica muito do nosso atraso, da nossa desigualdade de renda, porque todos esses privilégios são acessíveis a um grupo restrito da sociedade e que acaba concentrando boa parte da renda. E são benefícios que se perpetuam no tempo”, acrescenta Carazza.
Desigualdade no funcionalismo
No primeiro volume de sua trilogia, dedicado aos privilégios no setor público, o pesquisador deixa claro que o problema do Brasil não é de excesso de servidores.
Apesar de o país contar com 10,8 milhões de vínculos formais de trabalho no setor público em 2021, ante 4,8 milhões em 1985 (num crescimento de 124% em 36 anos), o contingente de servidores públicos brasileiros não destoa da média internacional, demonstra Carazza.
Entre os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, os servidores públicos representavam em média 17,9% da população economicamente ativa em 2020, cita o analista.
No Brasil, considerando todos os níveis da federação e incluindo os militares, o setor público empregava 12% da força de trabalho do país naquele ano.
Ou seja, menos do que a média dos países ricos e menos até do que os Estados Unidos (14,9%), considerado um país menos estatizante.
No entanto, analisando o peso da remuneração dos servidores na economia, a história é outra.
O Brasil gastava 13% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em 2019 com a folha de pagamentos do funcionalismo, acima de países ricos como Alemanha (7,6%), Reino Unido (8,9%), Itália (9,3%) e França (11,8%) e muito acima de vizinhos latino-americanos como México (4,7%) e Chile (7,2%).
Carazza também observa que, embora o setor público pague em média salários mais altos do que o setor privado, o problema mais grave está no governo federal, onde essa diferença chega a 93,4%, comparando trabalhadores de mesmo gênero, raça, idade, escolaridade, experiência e ocupação nos dois setores.
Nos Estados, o diferencial de salários em favor dos trabalhadores do setor público é de 27,9%.
Já nos municípios – que empregam uma maioria de professores, assistentes sociais, médicos e enfermeiros da saúde pública, atendentes de repartição pública e outros profissionais que atuam no atendimento direto à população – o diferencial chega a ser negativo em -2,46%, conforme estudo dos pesquisadores Gabriel Tenoury e Naercio Menezes Filho, do Insper, citado no livro.
Essas desigualdades internas ao funcionalismo também ficam evidentes quando se analisa a mediana de rendimentos mensais no setor público, nos diferentes poderes e níveis federativos.
Qual reforma administrativa
Carazza destaca que reconhecer essas diferenças entre os servidores públicos é fundamental para pensar qual é a reforma administrativa necessária para o país.
Discussões sobre essa reforma existem desde a Constituinte, lembra o pesquisador.
Depois disso, houve uma reforma no governo Fernando Henrique Cardoso, que foi aprovada, porém, muitos pontos não foram regulamentados. Desde então, não houve nenhuma proposta robusta aprovada pelo Congresso, diz o professor.
Segundo ele, a proposta de reforma apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro (PEC 32/2020), ainda que volta e meia seja lembrada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é considerada por especialistas como uma reforma muito ruim.
“Temos um ‘não debate’ no Brasil a respeito da reforma administrativa”, avalia o professor da Fundação Dom Cabral.
“É um tema discutido de uma forma muito rasa no país. De um lado, temos aqueles radicais de direita, que entendem que o Estado deve ser o mínimo possível – o que não faz sentido, pois, pelos desafios que temos no Brasil, o Estado é muito necessário”, avalia o pesquisador.
“De outro, temos várias pessoas na esquerda que têm uma visão de que não se deve mudar nada na forma como o Estado está estruturado hoje. Como se o Estado não tivesse todas essas distorções, que geram uma má prestação de serviços públicos e uma concentração de renda, agenda que a esquerda se posiciona corretamente contra.”