Por Aline Ribeiro, Hyndara Freitas e Rafael Garcia, do jornal O Globo
Era dia de folga, e os dois investigadores da Polícia Civil voltavam desarmados de uma partida de futebol quando cruzaram com um Chrysler Stratus cor de vinho na Marginal Pinheiros, em São Paulo. O carro, incomum à época, era o mesmo do sócio de um dos criminosos do momento: Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, que em pouco tempo passou de batedor de carteira no bairro central do Glicério, onde nasceu, para um dos maiores assaltantes de banco do país. O sedã encostou diante de um telefone público e dele desceu um homem alto e narigudo. Como os policiais só tinham visto Marcola por fotografias, não o reconheceram de pronto, mas o nariz avantajado acendeu um alerta. Ao ver a cena, o motorista do veículo deu fuga, e deixou o companheiro ali, à mercê dos agentes.
— Eles prenderam o Marcola no dedo, e ele está na cadeia até hoje. Foi uma casualidade, calhou de desconfiarem — lembra o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino, autor de “Laços de Sangue, a história secreta do PCC”.
Preso desde junho de 1999, Marcola é considerado a autoridade máxima da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), presente hoje em todo o Brasil e na América Latina, além dos Estados Unidos e de parte da Europa e do Oriente Médio, segundo o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público paulista. Com cerca de 42 mil integrantes devidamente batizados, a organização baseia seus membros em pelo menos 24 países, com tentáculos que, se incluída a distribuição de droga para intermediários, alcançam os cinco continentes.
Atualmente, o PCC soma o dobro de membros fora de São Paulo, onde foi fundado há mais de três décadas, além de mais de mil representantes no exterior, que estreitam laços com grupos mafiosos como o clã Šaric, da Sérvia, e a ‘Ndrangheta, da Calábria, na Itália. O faturamento estimado em no mínimo US$ 1 bilhão ao ano vem, na maior parte, justamente do tráfico internacional de entorpecentes, que já responde por 80% do lucro da facção, cujo surgimento, ascensão e expansão além-fronteiras serão tema de uma série especial em três capítulos, que começa a ser publicada neste domingo no GLOBO.
Massacre do Carandiru
O PCC foi formado em 31 de agosto de 1993, na Casa de Custódia de Taubaté, conhecida como Piranhão, com o discurso de combater a opressão no sistema prisional e evitar novos massacres como o do Carandiru, ocorrido um ano antes. Teve entre os oito idealizadores Mizael Aparecido da Silva, criador do primeiro estatuto da organização; Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra, seu primeiro chefe; César Augusto Roriz da Silva, o Cesinha, cuja assinatura era a decapitação de rivais; e José Márcio Felício, o Geleião, inventor da sigla PCC. Marcola, que mais tarde tomaria o controle do grupo, não estava entre os fundadores.
Um jogo de futebol entre o “Comando Caipira”, detentos de cidades do interior, e o “Comando da Capital”, presos do município de São Paulo, marca a origem da facção. Depois de uma briga entre os times com duas mortes, os rivais pactuaram um acordo de proteção com medo de represálias. O grupo se manteve oculto até que seus membros começaram a ser transferidos para outras cadeias paulistas e passaram a recrutar milhares de integrantes.
O pretexto para a fundação dessa espécie de sindicato para combater supostos abusos do Estado foi o Massacre do Carandiru, mundialmente conhecido como a maior chacina de presos da história do país, com 111 mortos — episódio que consta, inclusive, no estatuto original da quadrilha. Um dia antes da eleição de 1992, para conter uma briga de facão e o corre-corre de presos na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, policiais militares de batalhões especiais, que pouco conheciam a disposição das celas, entraram fortemente armados no pavilhão sem energia elétrica e soltaram os cachorros em cima da massa. Uma testemunha narraria que os PMs se aproximaram batendo em seus escudos e gritando: “A morte chegou, a morte chegou”.
Naquele tempo, facções estruturadas como as atuais não existiam, apenas grupos isolados que dominavam regiões da cidade. Há 35 anos voluntário no sistema prisional paulista, o médico Drauzio Varella havia acabado de deixar o Carandiru quando a cadeia “virou”. Ele diz que os presídios eram “uma panela de pressão”, sempre prestes a explodir, mas que desavenças do tipo eram comuns à época e passíveis de serem contidas.
— O que se fazia para controlar? Trancava a cadeia, cortava a água, a luz e as refeições, e deixava os presos lá à noite. Eles faziam bagunça e, no dia seguinte, vinha alguém negociar. Aquilo teria acabado sem nenhum problema. Só que era véspera de eleição, e um idiota deu a ordem para a PM entrar e dominar a rebelião a qualquer preço — recorda o médico.
A inaptidão do Estado, para o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco, foi determinante para o surgimento e expansão da maior organização criminosa do Brasil. Há 20 anos no combate à facção, Gakiya já foi alvo de mais de um plano de execução por parte do PCC:
— Sem sombra de dúvidas, houve a omissão do governo estadual aqui de São Paulo por décadas. Primeiro porque negligenciou o sistema prisional, com as más condições de cumprimento de pena, penitenciárias lotadas, o episódio do Carandiru… Mas principalmente por ter negado a existência da facção por quase uma década.
A expansão global
Se, antes, o mote do grupo era, supostamente, a ajuda aos presos e seus familiares, financiando advogados e viagens de ônibus para as visitas às cadeias no interior, não demorou para que o cenário mudasse. O foco no faturamento com atividades criminosas variadas coincide com a ascensão no início dos anos 2000 de Marcola, que apostou as fichas no que viria a se tornar a principal fonte de renda do bando: o tráfico de drogas.
A jogada rendeu frutos e, nas últimas duas décadas, o PCC não apenas reforçou a hegemonia nos presídios paulistas, como também expandiu seus braços para todo o território nacional, controlando em múltiplos pontos a venda de entorpecentes. Mais recentemente, sua última e mais ambiciosa investida foi fincar raízes na Europa e estruturar o tráfico para fora do Brasil. O alcance internacional chamou a atenção do governo americano. Em 2021, o PCC foi incluído em uma lista de bloqueios da Agência de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC, na sigla em inglês), instituição do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos.
A história da internacionalização da facção começa com seu estabelecimento em Santos, não por acaso a cidade que abriga o maior porto do Brasil. Em meados dos anos 2000, a organização ainda não era hegemônica na região e disputava alguns pontos de venda de droga com Ronaldo Barsotti, o Naldinho. Preso em 2005 e libertado em 2009, ele desapareceu e nunca mais foi visto. O sumiço, informalmente atribuído ao PCC, abriu definitivamente o espaço para o grupo controlar o varejo do tráfico no litoral paulista.
— O PCC já tinha contato com pessoas do porto: estivadores, operadores de scanner e outros trabalhadores, que eventualmente moravam nas comunidades em que eles traficavam — diz Gabriel Patriota, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
Patriota destaca que a entrada da facção no ramo do atacado só se consolidou na década seguinte. Embora há tempos os navios que saíam de Santos fossem usados no tráfico internacional de cocaína, a chegada do PCC profissionalizou o esquema.
Até então, marinheiros recrutados por traficantes em bares e estabelecimentos na orla eram cooptados para levar droga na bagagem pessoal ou em sacolas de compra, um improviso que permitia levar quantidades não maiores do que 30kg. O PCC consolidou o transporte da droga dentro dos contêineres de carga, fazendo com que a escala do tráfico em Santos deixasse de ser medida em dezenas de quilos e passasse às centenas, com apreensões de mais de uma tonelada.
Para Patriota, o PCC soube aproveitar uma oportunidade que Naldinho não tinha estrutura para bancar. Quadrilhas como os grupos eslavos e da Itália já viam Santos como uma rota promissora para obter cocaína sul-americana, mas faltava encontrar o parceiro ideal. Segundo a criminologista italiana Anna Sergi, professora da Universidade de Essex (Inglaterra), o contato com a organização brasileira não foi só uma questão de oportunismo. Os traficantes europeus sabiam que o PCC tinha capacidade de operar nos portos porque, essencialmente, também funciona como uma máfia.
— Essa palavra tem um significado muito específico. Ela define grupos que têm interesse em acumular lucros por meios ilegais e legais, bem como em ganhar poder e governança extraterritorial — afirma Sergi.
Em paralelo à expansão internacional, o grupo buscou a fachada de atividades lícitas, inclusive de prestação de serviços públicos, para lavar o dinheiro proveniente das atividades criminosas — mais uma prática comum às máfias. Em abril, o Ministério Público paulista denunciou o elo da facção com o Estado em cidades de São Paulo, estabelecido há quase uma década. Entre outros métodos, a facção usava duas das maiores empresas de ônibus da capital para travestir de legalidade a renda obtida com o tráfico de drogas. O PCC, como apontam diferentes investigações, está entranhado no mercado formal, na política e até no Judiciário.
— O processo de expansão do PCC segue cada vez mais potente, com muito mais dinheiro envolvido, com a mesma ideologia antissistema bastante viva. Nos últimos anos, houve uma ampliação gigantesca de capacidade de operação, sobretudo nos mercados transnacionais, com cocaína na frente, mas também ouro, armas e todos os tipos de lavagem de dinheiro — enumera Gabriel Feltran, pesquisador em sociologia do crime no Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS) e autor de “Irmãos: Uma história do PCC”.
Navios, veleiros e até mergulhadores
Os primeiro método que o PCC usou para despachar cocaína em grandes quantidades para o exterior é chamado de rip-on/rip-off. A estratégia consiste em arrombar contêineres e recrutar pessoas carregando grandes quantidades da droga em mochilas para despejá-la rapidamente no compartimento, que é fechado com um lacre clonado para passar despercebido pela alfândega. Na Europa, os parceiros internacionais do PCC conseguiam resgatar a droga no porto de destino.
De lá pra cá, para despistar a fiscalização, a operação foi aperfeiçoada com diferentes estratégias, como a ocultação da droga entre sacas de grãos, o emprego de veleiros e até a contratação de mergulhadores profissionais, que ocultam a carga no casco de navios. O mergulho em portos é perigoso especialmente em lugares como Santos, onde a água é muito turva. Em 2022, um brasileiro recrutado pelo PCC morreu no porto de Newcastle (Austrália) ao mergulhar para tentar recuperar uma carga de cocaína. O incidente despertou autoridades também para a entrada da facção na rota Ásia/Pacífico, que paga mais pela cocaína no varejo.
A diversificação das modalidades de despacho da droga é apontada como uma das possíveis causas para a queda nas apreensões em Santos desde 2019, quando o índice atingiu um pico após a Receita Federal tornar obrigatório o escaneamento por raio-X de qualquer carga destinada à Europa. Outra hipótese é que a cocaína esteja saindo mais de outros portos, coo Paranaguá (PR), Salvador (BA) e Belém (PA).
— Em várias apreensões recentes em outros portos, percebemos, inclusive, o envolvimento de criminosos da Baixada (Santista)— destaca Daniel Coraça, chefe da Delegacia de Santos da PF.
A droga remetida pelo PCC segue para dezenas de portos diferentes, mas alguns com mais frequência, como Le Havre (França), Hamburgo (Alemanha), Roterdã (Holanda) e, sobretudo, Antuérpia (Bélgica). São vários os elementos que contribuíram para a maior facção brasileira conquistar mercados internacionais, segundo os especialistas, e um deles foi a capacidade de criar uma marca. A sigla PCC, frisa Anna Sergi, é hoje quase tão conhecida pelos criminologistas quanto nomes dos cartéis mexicanos e colombianos históricos, atualmente mais fragmentados.
Outro fator é a reputação de eficiência que o grupo começou a construir. Empregando menos violência e mais organização, o PCC ganhou a confiança de gângsteres mundiais, que não podem recorrer à Justiça quando um negócio dá errado. Esse processo, que inclui formas mais elaboradas de lavar dinheiro, também fez parte da evolução de outras quadrilhas pelo mundo.
— Grupos italianos, como a ‘Ndrangheta e a Cosa Nostra (máfia siciliana), passaram por essa transformação. Reduziram a violência e emergiram mais profissionais, atuando em crimes de colarinho branco e outros mais tradicionais, como extorsão — explica Sergi.