Voluntários de diferentes áreas resgatam pessoas em meio à água em Porto Alegre e região. Assumindo a liderança na logística e arrecadação de suprimentos, mobilização vem auxiliando no socorro de milhares de pessoasNo último sábado (4), o empresário Bruno Nagel Conrado, de 41 anos, acordou seguro em uma casa seca, confortável e tranquila. Mas logo cedo, recebeu pelo celular a informação de que havia uma família presa em uma casa praticamente debaixo d’água no bairro São Geraldo, em outra região da cidade de Porto Alegre.
“Tenho facilidade com água, surfo desde pequeno. Me prontifiquei em colocar a roupa de borracha e ir resgatá-los”. Desde então, Bruno não saiu mais da água: não apenas salvou aquela família e seus dois cachorros, mas ajudou a resgatar mais de mil pessoas nas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul.
“Nesse primeiro dia, resgatei as pessoas à pé, guiava elas pelas ruas com a água no peito. Como já havia feito o caminho, conseguia conduzi-las de volta até um local seco”, relata.
“Vi gente muito mal de saúde. Tivemos até de levar insulina praticamente nadando a condomínios distantes”.
Bruno avisou os amigos, que conseguiram botes e equipamentos, e formou um grupo que ganhou volume rapidamente, unindo cerca de 300 voluntários para atuar nos salvamentos. Batizaram o time de “resgate molhado”.
Logo, uma subdivisão do grupo até acabou juntando-se ao poder público. O vice-prefeito e a coordenadoria da Defesa Civil da cidade criaram uma equipe de trabalho e atribuíram uma zona de Porto Alegre à liderança dos voluntários.
“A logística e processo dos resgates do viaduto da Edu Chaves ficou sob nossa responsabilidade, inclusive caminhões do Exército”, conta Bruno. “Acredito que as forças do estado demoraram um pouco para reagir nos resgates aqui em Porto Alegre, mas depois foram fundamentais, principalmente a defesa civil”.
“No início era realmente as pessoas se ajudando. Não tinha nada relacionado ao governo que eu tenha visto”, conta o profissional de Relações Internacionais Rafael Folmann Chernhak, de 39 anos. “Mas depois o exército e bombeiros começaram a aparecer nos resgates, e a polícia civil estava auxiliando na segurança das pessoas”, acrescenta.
Rafael viu o seu bairro, Humaitá, ser totalmente invadido pelas inundações e teve o apartamento, térreo, tomado pela água. No dia seguinte em que saiu de casa fez seu primeiro resgate: o do irmão. Andou 10 km com água no pescoço para tirá-lo de casa. Voltando ao seu bairro, Rafael foi linha de frente na evacuação das casas. “Usamos de tudo, botes infláveis, pedaços de telha, colchões infláveis, até geladeira para salvar as pessoas”.
O empresário do ramo da construção civil, Chad Khatib, 42 anos, dormiu na empresa no primeiro dia de alerta de enchente na cidade de Porto Alegre para monitorar a situação. Sem ter o que fazer pelo próprio empreendimento que começava a alagar, ele viu que podia fazer muito pelas outras pessoas. “No sábado começamos a resgatar atingidos com um Jeep GMC full size. Creio que tenhamos feito umas 30 viagens com umas sete pessoas socorridas a cada vez.”
“A cena que mais me impactou foi ver uma mãe com água no pescoço segurando seu bebê contra o teto. Não sei quanto tempo ela ficou ali, com os braços erguidos, até a gente chegar”, diz o empresário, que encontrou a família dentro de uma casa em um beco, após ouvir gritos.
Com a subida da água, o jeep que Chad e seus amigos usavam já não dava mais conta. Aos poucos foram conseguindo barcos e motores emprestados ou comprados. “No segundo dia fomos até 4.30 da manhã fazendo salvamentos, havia muitos jet skis na área ajudando também”, conta.
Situação de desespero e vulnerabilidade
Os voluntários se depararam com uma população extremamente fragilizada. Pessoas com dificuldade de mobilidade, idosos, grávidas, crianças de colo. “Vi gente que tinha câncer, que tinha recém passado por cirurgias, pessoas que não poderiam entrar em contato com aquela água de jeito nenhum,” conta Rafael Folmann Chernhak.
Um dos resgates mais desafiadores que o internacionalista fez foi de um cadeirante de 96 anos, e sua esposa, de 90 anos. “Puxamos ele de cadeira de rodas do 5 andar do prédio pro bote, e depois do bote pro caminhão do exército”. Já em outro caso, teve de se comunicar com um idoso que era deficiente auditivo. “Ele morava sozinho e não adiantava gritar, apitar. Então perguntamos para o familiar que havia pedido resgate – e estava em contato conosco – se ele sabia ler. Assim, levamos algo para escrever e explicar ao senhor a situação”.
Em alguns casos, para alcançar moradores no interior dos condomínios, apenas barcos não eram o suficiente, tinham de levar colchões infláveis até as saídas das casas. “Tentávamos sempre colocar famílias juntas, se tinha crianças nunca deixávamos sozinha”, diz Rafael.
Chad Kathib relata um socorro especialmente delicado: ao chegar na casa de uma família a ser resgatada nas imediações da Arena do Grêmio, já à noite, havia uma idosa morta. “Me quebrou total. Não removemos, mandamos esperar a polícia. Decisões eram extremamente complicadas, era tudo muito novo para nós”, conta.
Uma logística improvisada
Rafael, morador do Humaitá, organizou com o irmão mais velho o recebimento dos chamados de socorro: “Centralizamos nele as informações. Ele perguntava o endereço, quantas pessoas eram, e se havia idosos, bebês, pets…e nos repassava”.
Bruno conta que o dia mais efetivo de operação foi na segunda-feira (06/05) quando montaram uma central de auxílio em uma estação de trem alagada. “Era um ponto intermediário entre as áreas críticas e a parte seca. Estava alagado, mas o nível da água era mais baixo, possível de alcançar de caminhão” Ali, o time de voluntários conseguia consertar equipamentos, abastecer o motor dos barcos, e oferecer um primeiro atendimento às pessoas–com água, comida, remédio– que então eram levadas pelo exército até áreas secas.
“Precisávamos tomar decisões sempre rápido, é muita pressão, pessoas gritando, pedidos de ajuda”, expõe Bruno.
Um rosto conhecido
Tendo morado toda a vida – seus 39 anos – no bairro Humaitá, Rafael foi crucial para os resgates da região. Um problema que voluntários relataram, é que muitas pessoas resistiam em deixar suas casas, às vezes por achar que água iria baixar e a situação não iria se agravar, outras por receio de que o resgate fosse um golpe para realizar assaltos.
Mas a presença de um rosto conhecido, um líder comunitário, entre os voluntários fez toda diferença. “As pessoas confiavam em mim, muitas me conheciam, e às outras eu relatava que também morava ali, que já havia perdido tudo, que precisavam sair naquele momento ou poderiam não ter mais chances. Agilizou o processo”, relata Rafael, que também auxiliou voluntários e forças do exército a se localizarem pelas ruas alagadas.
Em certas zonas, a ameaça de delitos passou a ser mais um fator de risco para quem estava empenhado nos resgates. O grupo de Bruno Conrado começou então a incluir, sempre que possível, um policial civil no barco para garantir a segurança. “Nos foi relatado, por exemplo, uma troca de tiros entre a polícia e criminosos que saqueavam uma fábrica”, conta Bruno.
“Estou o tempo todo vendo gente sofrendo, estou dormindo pouco, é bastante exaustivo”, diz Rafael, que estima que tenha resgatado quase duas mil pessoas junto a um amigo. “É desolador saber que houveram avisos da MetSul e a urgência da situação não foi passada à população. O próprio comitê de crise da cidade fica em uma zona alagada. É a população que está se ajudando”, desabafa Rafael.
Com a semana dramática chegando ao fim, os voluntários relatam que apenas casos mais específicos ainda estão por ser auxiliados, de pessoas que veementemente se negam a sair. Mas com o nível da água ainda alto e os suprimentos da população se esvaindo, mais pessoas devem necessitar de resgate. E o desafio do frio e de mais chuva bate à porta.
Uma sólida rede de apoio
“Quando tu tá lá na ponta, dentro da água, e começa chegar pra ti combustível, água potável, óleo, ferramenta para consertar barco, dá um alento. As doações e a mobilização das pessoas estão fazendo toda diferença”, diz Bruno.
As engrenagens da solidariedade parecem estar a todo vapor: alguns arrecadam doações de coisas que tem em casa ou recolhem doações em dinheiro e compram os suprimentos que faltam aos abrigos e aos resgates, outros vão a centros e instituições e ajudam a organizar essas doações, e todos compartilham informação. Assim, as faltas e necessidades vão pouco a pouco sendo supridas.
“Na segunda feira peguei carona com uma empresa que tinha um total de 5 retroescavadeiras. já tinham perdido duas na água, poderiam perder a empresa toda, e estavam lá ajudando, disponibilizando as que haviam sobrado”, conta Rafael.
Uma ajuda que tem vindo de diversas partes. Os voluntários relatam que encontraram até pessoas vindas de outros estados para atuar nos resgates. Voluntários de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo, pessoas que tinham barcos ou não e desceram para o sul, muitas vezes sem conhecer ninguém na região.
Enquanto conversa com a DW por telefone, Rafael descreve o local onde se encontra: “agora eu estou na frente de onde os botes estão saindo. Perto daqui tem uma central de recebimento de tudo que as pessoas organizam para trazer. Tem atendimento, água, triagem, tem até gaiolinhas para os animais que são resgatados. A População que se organiza e traz.”
“Penso que quando a água baixar vai doer muito, vamos ver coisas que não gostaríamos de ver. Mas a gente vai se reerguer, acredito que é também uma oportunidade para aproximar as pessoas”, observa Bruno.