A Polícia Federal tentou obter de militares das Forças Especiais do Exército, os chamados “Kids Pretos”, detalhes sobre o plano de golpe de Estado que teria sido organizado pelo presidente Jair Bolsonaro. Os interrogados admitiram encontros com o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, mas disseram que foram para tratar de outros assuntos. Um dos interrogados acabou revelando, no entanto, que a prisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, prevista em minuta apresentada a Bolsonaro seria “necessária para a volta da normalidade institucional”.
O coronel da reserva do Exército Laércio Vergílio foi confrontado com diversos áudios em que trata de um possível golpe com Ailton Gonçalves Moraes Barros, um capitão reformado que foi expulso do Exército e que dizia ter acesso a Jair Bolsonaro e à equipe dele. “Combatente, nós estamos no limite longo da ZL. Daqui a pouco não tem mais como lançar. Vamos dar passagem perdida, e aí é perdida para sempre. Você entende que eu tô falando”, diz um dos áudios. Vergílio confirmou ter mandado a mensagem, mas disse se tratar de medidas dentro da legalidade, e não de golpe de estado.
Perguntado sobre o plano para prender Alexandre de Moraes em sua residência, em dezembro, Laércio Vergílio disse não saber como se daria a prisão, uma vez que estava na reserva desde 2000. No entanto, a prisão do ministro seria para garantir a normalidade institucional.
Já os integrantes das Forças Especiais do Exército confirmaram encontros em Brasília após as eleições de 2022. Uma das reuniões aconteceu dias antes da divulgação de uma carta dos oficiais do Exército pressionando o Comandante Geral da instituição. Segundo as investigações, o plano envolvia a prisão do ministro do STF Alexandre de Moraes, a ser executada pelos “Kids Pretos”. Procurada, a defesa de Bolsonaro ainda não havia se manifestado até a publicação deste texto.
Ao menos três militares foram questionados sobre o assunto: o coronel da Cavalaria Bernardo Romão Corrêa Neto, que era assistente do Comandante Militar do Sul e integrante dos chamados “Kids Pretos”; o general Estevam Theóphilo, ex-chefe do Comando de Operações Terrestres e chefe dos “Kids”; e Cleverson Ney Magalhães, coronel do Exército e assessor de Estevam Theóphilo. Todos eles negaram que os encontros tivessem teor golpista.
A primeira reunião foi no dia 12 de novembro de 2022, pouco depois do segundo turno das eleições daquele ano, quando Lula (PT) derrotou Jair Bolsonaro. O encontro aconteceu no apartamento do ex-candidato a vice de Bolsonaro, o general Braga Netto, no bloco B da SQS 112, na Asa Sul. É o mesmo prédio onde mora o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira – que ficou em silêncio no depoimento à PF. Participaram desse encontro, entre outras pessoas, a mulher do general Villas Boas, Maria Aparecida.
A reunião mais importante, no entanto, foi no salão de festas do Bloco I da SQN 305, na Asa Norte: vários “Kids Pretos” confirmaram ter participado do encontro com Mauro Cid, inclusive Bernardo Romão e Cleverson Ney. O encontro aconteceu na noite do dia 28 de novembro, pouco depois da reunião na casa de Braga Netto. Dois dias depois, um grupo de mais de mil oficiais divulgou uma “Carta dos oficiais superiores da ativa ao Comandante do Exército Brasileiro”.
“Estamos atentos a tudo que está acontecendo e que vem provocando insegurança jurídica e instabilidade política e social no país. Ademais, preocupa-nos a falta de imparcialidade na narrativa dos fatos e na divulgação de dados, por parte de diversos veículos de comunicação”, diz um trecho da carta. Perguntado sobre o assunto, Estevam Theóphilo disse considerar a carta um ato de insubordinação.
Bernardo Romão é coronel de Cavalaria do Exército e, até a operação da PF Tempus Veritatis, era aluno do Colégio Interamericano de Defesa em Washington (EUA). Antes, era das Forças Especiais do Exército, que integrou de 2000 a 2009, e até maio de 2023, atuou como assistente do comando militar do sul. À PF, ele negou que a carta tenha sido tratada durante o encontro na SQN 305.
Segundo Romão, a conversa girou sobre “o momento pessoal de cada um e sobre o cenário político”. Além de Cleverson, também estava presente o tenente-coronel Hélio Ferreira Lima, das Forças Especiais em Manaus (AM). Ele foi alvo da Tempus Veritatis.
Nos depoimentos, a PF também confrontou os militares com mensagens de texto apreendidas nos celulares deles. Várias delas sugerem que os oficiais sabiam da ilegalidade dos atos que estavam cometendo, ou planejando. Numa mensagem para Mauro Cid, Bernardo Romão sugere que as consequências seriam drásticas caso o amigo executasse mal as tarefas. “Caga não, sou eu que vou levar MC Donalds para você na cadeia”, diz a mensagem do dia 01 de novembro. Segundo ele, a fala “foi em tom de brincadeira”, e havia apenas “uma preocupação como cidadão sobre o processo eleitoral”.
Cleverson Ney disse que o encontro na SQN 305 era uma espécie de “confraternização de fim de ano” de militares que integraram as Forças Especiais. Ele disse que “foi convidado para participar de um encontro” naquela segunda-feira porque o “final de ano é caracterizado por movimentações e transferências na área militar”; e que “se tratou de confraternização de final de ano extremamente informal”.
Também foi ouvido o tenente-coronel do Exército Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, lotado no Departamento de Ensino e Cultura do Exército no Rio. Ele não participou das reuniões em Brasília sobre golpe, mas trocou várias mensagens com Mauro Cid, dizendo coisas como “espero, sinceramente, que vocês saibam o que estão fazendo”. Ao que Cid respondeu: “senão estou preso”. O irmão dele, Marcos Paulo Cavaliere, encaminhou a Cid um arquivo PDF com o título “2022 first round brazilian elections vulnerability analysis report” (“Relatório de análise de vulnerabilidades no primeiro turno das eleições brasileiras de 2022”, em tradução livre).