A relação do presidente Lula da Silva (PT) com o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL), comandante da Câmara, é marcada por tensão e desconfiança, mas, como os dois são pragmáticos, também é de parceria, com ganhos até aqui para ambos os lados. No ano passado, o governo, apesar de minoritário no Congresso, aprovou sua pauta prioritária, incluindo a reestruturação da Esplanada, o novo marco fiscal e a reforma tributária. Não saiu barato. Líder do notório Centrão, Lira não recebeu todas as contrapartidas que esperava do Palácio do Planalto pelas votações, mas conseguiu para seu grupo político, entre outras coisas, o controle de dois ministérios e da Caixa Econômica Federal. No balanço de 2023, Lula e Lira fizeram concessões, deixaram de lado diferenças pessoais e, aos trancos e barrancos, avançaram juntos. O roteiro deve se repetir neste ano, conforme reportagem de Daniel Pereira, da Veja, como eles mesmos sinalizaram após reuniões recentes. Só uma coisa pode desestabilizar essa relação: a eleição para a sucessão de Lira na presidência da Casa, que só será realizada em fevereiro do próximo ano, mas já fervilha nos bastidores e terá peso decisivo no trabalho do Legislativo neste ano.
Para manter poder e influência ao deixar o cargo, Lira sabe que precisa fazer o seu sucessor. Se isso ocorrer, ele pavimentará o caminho para se tornar ministro, caso queira, e concorrer ao Senado por Alagoas em 2026. Poderá até mesmo ser vice numa chapa presidencial. Essas especulações são feitas por deputados próximos a ele. Em fevereiro de 2023, Lira foi reeleito para a chefia da Câmara com o apoio de Lula, que na ocasião percebeu que não tinha como derrotá-lo. O deputado quer agora que o presidente abençoe o candidato que ele escolher para comandar a Casa. Parece cedo para se preocupar com isso, mas não é, uma vez que já existem pelo menos quatro postulantes competitivos ao posto. Na sexta-feira, 23, Lira deu a entender que já fechou um acordo com Lula sobre o tema. “O presidente tem a vontade dele e o direito dele de tentar fazer o sucessor dele, como eu tenho a minha pretensão, ouvindo todos os líderes partidários e amigos na Câmara, de fazer o nosso sucessor”, disse ele. “O presidente Lula disse que estará junto desse projeto de acompanhar para que eu tenha o direito de fazer o meu sucessor, e o PT não pensará diferente, porque não tem motivos”, acrescentou.
Um acordo de Lira com Lula tornaria de fato o nome escolhido por eles praticamente imbatível. Aliados do presidente dizem, no entanto, que esse acerto ainda não foi fechado — nem será firmado tão cedo. Se o deputado tem pressa, o presidente joga com o tempo. Em público, Lula costuma dizer que o governo não tentará influenciar a disputa pelo comando do Congresso, que seria um assunto exclusivo do Legislativo. Na prática, ele vai decidir o que fazer na virada de 2024 para 2025, levando em consideração uma série de fatores, como o saldo da relação com a Câmara, o desempenho da economia e até o apoio parlamentar e popular ao governo. Se estiver forte o suficiente para ditar o rumo da eleição na Câmara, Lula assim o fará, podendo ou não ajudar o candidato de Lira. Hoje, o nome preferido do deputado para sucedê-lo é o do líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA). A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, já disse que o partido pode lançar uma candidatura própria. Setores petistas acham mais provável, no entanto, a bancada apoiar o líder do PSD na Casa, Antonio Brito, ou o deputado Marcos Pereira, presidente do Republicanos, que tem se aproximado de Lula. Em conversas reservadas, deputados do Centrão têm contado que Lira não aceitará Pereira como seu sucessor.
Apesar das dúvidas em relação à eleição na Câmara, são evidentes os sinais de aproximação entre Lula e Lira. Depois do discurso do deputado na abertura dos trabalhos do Legislativo, quando criticou com veemência a articulação política do governo, o presidente e o deputado conversaram pessoalmente e prometeram um ao outro melhorar a relação. Dias depois, Lula recebeu líderes de partidos para uma reunião, devidamente acompanhado por Lira. Além dos gestos de deferência, o presidente lançou mão da caneta e do poder de que dispõe para afagar o deputado, que vira e mexe reclama do descumprimento de acordos políticos e do ritmo lento na liberação de emendas. Na quarta-feira 28, o governo revogou trecho de uma medida provisória que reonerava dezessete setores da economia e que, na prática, anulava uma decisão do Congresso, amplamente favorável à desoneração. Ponto para Lira. Mesmo contrariado, o governo também prometeu criar um calendário para o desembolso de verbas orçamentárias indicadas por deputados e senadores, iniciativa que havia sido vetada pelo presidente. De novo, ponto para Lira.
Até o veto presidencial a 5,6 bilhões de reais em emendas de comissão pode ser revisto, segundo o chefe da Casa Civil, Rui Costa. Se isso ocorrer, será outra vitória do presidente da Câmara, que conta com esse tipo de iniciativa para se fortalecer na condição de líder dos colegas. Neste ano, o governo tem projetos importantes na área da economia para serem votados, como medidas destinadas a aumentar a arrecadação e a regulamentação da reforma tributária. A ajuda de Lira, como ficou claro no ano passado, é fundamental para garantir chances de sucesso na empreitada. Daí a sucessão de acenos ao parlamentar. Sem deixar digitais evidentes na operação, o governo agiu para que o senador Renan Calheiros (MDB-AL), desafeto de Lira, não assumisse a relatoria da CPI da Braskem no Senado. Formalmente criada para apurar os danos provocados pela empresa ao explorar sal-gema em Maceió, a comissão era encarada por Renan como uma forma de desgastar politicamente Lira e políticos aliados a ele, como o prefeito da capital alagoana, João Henrique Caldas. Aliado de Lula, Renan ficou contrariado com a decisão e culpou “pressões externas” por seu revés. Já uma pessoa ligada a ele disse a VEJA, sob a proteção do anonimato, que deixá-lo fora da relatoria foi uma maneira de Lula agradar a Lira sem ter muito custo.
De olho na harmonia com a Câmara, o governo promoveu outros sacrifícios. O Ministério da Saúde, por exemplo, demitiu o secretário de Atenção Primária, Nésio Fernandes, após Lira e líderes partidários reclamarem dos critérios adotados pela pasta para a liberação de emendas de deputados e senadores. Desde o ano passado, o presidente da Câmara e o Centrão sonham comandar a Saúde, hoje chefiada por Nísia Trindade. Eles chegaram a escolher um nome para assumir o ministério, mas Lula resiste a fazer a mudança. Numa tentativa de baixar a fervura, o Planalto decidiu mexer no segundo escalão. Segundo o ministério, a demissão foi uma mera questão de ajuste na equipe, sem qualquer ligação com questões políticas. Lira também alega que não tem relação com o caso. Vida que segue. Em outra coincidência, caiu outro servidor de segundo escalão que era alvo do Centrão: José Francisco Manssur, do Ministério da Fazenda, que capitaneou a regulamentação do mercado de apostas esportivas no Brasil. Quando a proposta de formalização do mercado das chamadas bets ainda tramitava no Congresso, políticos do Centrão já queriam a demissão de Manssur, para que alguém ligado a eles negociasse as regras do setor. Na época, até acusaram Manssur de tráfico de influência, sem fornecer nenhuma prova disso.
Como forma de impedir que a meta de arrecadação com as apostas esportivas não fosse prejudicada por concessões feitas por deputados e senadores, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, segurou o assessor. A blindagem ficou de pé até o Congresso aprovar a alíquota do imposto cobrado das bets e o valor da outorga a ser pago por elas. O Centrão, que desde sempre quis a cabeça de Manssur, passou a exigi-la depois de VEJA revelar que ele relatou a Haddad que um deputado da base governista teria pedido 35 milhões de reais a uma associação de empresas de apostas. O deputado em questão era Felipe Carreras, um dos quadros mais próximos a Arthur Lira. Carreras negou enfaticamente que tenha pedido propina às empresas. Em nota, o Ministério da Fazenda alegou que Manssur saiu a pedido. A pessoas próximas, ele disse que essa versão não é verdadeira e que acabou sacrificado no altar do pragmatismo político.
Evidentemente, o ministro da Fazenda não quer turbulência na Câmara. Ele precisa encontrar recursos para defender sua meta de déficit primário zero e de ajuda para impulsionar a atividade econômica. Lira deu sinais de que colaborará e prometeu não colocar em votação pautas-bomba. Lula também quer manter um ambiente de relativa calmaria. O presidente pode não ter apreço por Lira na pessoa física, mas reconhece a importância de uma relação de parceria na pessoa jurídica. A outra opção não parece muito animadora. Dilma Rousseff e Eduardo Cunha — que ensaiaram um acordo de proteção mútua, mas acabaram em pé de guerra no auge da Lava-Jato — sabem muito bem disso.
Publicado na revista Veja de 1º de março de 2024, edição nº 2882