A convocação veio no sábado (20) segundo reportagem de João Pedro Pitombo, da Folhapress, por meio de um grupo no aplicativo de mensagens WhatsApp. No dia seguinte, fazendeiros se encontrariam às 10h na ponte do rio Pardo, que separa os municípios de Itapetinga e Potiraguá, no sul da Bahia.
A ordem era desocupar uma fazenda que estava sob domínio do povo Pataxó Hã Hã Hãe após uma ação classificada como “invasão” pelos fazendeiros e encarada como “retomada” pelos indígenas. O conflito resultou na morte da indígena Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó.
O caso expôs o modo de atuação do grupo “Invasão Zero”, criado em 2023 por fazendeiros da Bahia que atualmente congrega cerca de 5.000 participantes e inspirou grupos semelhantes em ao menos outros nove estados.
A iniciativa ganhou protagonismo no Congresso Nacional na CPI do MST, que terminou sem relatório final aprovado e foi a semente para a Frente Parlamentar Invasão Zero, requerida em outubro de 2023 em solenidade com a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O grupo está no radar das autoridades, que comparam o seu modo de atuação ao das milícias ou forças paramilitares. Especialistas rechaçam a legalidade das ações que são chamadas pelos fazendeiros de “reintegração de posse”, mas que não têm respaldo de decisões judiciais.
Na investida em Potiraguá que resultou na morte de Nega Pataxó e deixou outros seis indígenas feridos, ao menos dois homens estavam armados –um jovem de 19 anos filho de fazendeiros e um policial reformado de 60 anos.
Ambos foram presos após a polícia identificar que as armas haviam sido usadas. Dias depois, a perícia confirmou que o tiro que matou a indígena saiu da arma que estava em posse do jovem.
“É inadmissível que, em um regime democrático, grupos armados movimentem-se atacando a quem quer que seja”, afirmou o secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas.
A Polícia Civil da Bahia abriu um inquérito para investigar a atuação e os métodos de funcionamento do grupo que convocou o ato. A apuração sobre o assassinato da indígena Nega Pataxó será conduzida pela Polícia Federal.
Coordenador nacional do grupo Invasão Zero, o produtor rural Luiz Uaquim afirmou à Folha que a entidade age dentro da legalidade e classificou como uma fatalidade a morte da indígena Nega Pataxó.
“Somos uma organização extremamente ordeira, pacífica e que luta pelos seus direitos de forma legal. O que aconteceu é extremamente atípico, uma fatalidade”, afirmou.
A entidade levou cinco dias para se manifestar sobre o caso, emitindo uma nota oficial em suas redes sociais apenas nesta sexta-feira (26). Na nota, a associação afirma que nunca incentivou ou consentiu com atos de violência.
O Invasão Zero foi criado no ano passado em Santa Luzia, sul da Bahia, após um grupo de produtores rurais impedir a invasão de uma fazenda por famílias sem-terra.
O grupo ganhou adeptos e se organizou em grupos de WhatsApp prometendo uma ofensiva contra invasões no abril vermelho, jornada anual de lutas pela reforma agrária do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que completou 40 anos neste mês de janeiro.
A entidade ruralista foi formalizada como associação em agosto de 2023 e tem como presidente Renilda Souza, conhecida como Dida Souza. Ela é filha de Osvaldo Souza (1930-2012), agropecuarista que foi deputado estadual pelo PFL de 1987 a 2003.
O movimento cresceu e atualmente possui representantes em 200 cidades, concentradas em 16 núcleos regionais. Foram realizadas ao menos dez ações para impedir a invasão de fazenda e para retomar áreas que foram ocupadas por famílias de sem-terra e indígenas.
Na maioria dos casos, as ações de retomada foram feitas por grupos de fazendeiros por conta própria, sem o respaldo de uma decisão de liminar de reintegração de posse emitida pela Justiça.
Luiz Uaquim afirma que a ação dos fazendeiros tem respaldo legal no chamado “desforço imediato”, instrumento do Código Civil que prevê que o proprietário pode manter ou retomar a posse que foi alvo de esbulho “por sua própria força, contanto que o faça logo”.
Especialistas, contudo, refutam a da hipótese de “desforço imediato” no caso da fazenda em Potiraguá, visto que houve uma organização prévia para a tentativa de retomada da propriedade.
“A ação tem que acontecer no momento da ação invasiva. No espaço de tempo que transcorreu, houve tempo suficiente para ir ao Judiciário. Houve um evidente abuso, e as pessoas que ali atuaram devem responder por isso”, avalia o advogado Pedro Serrano, professor da PUC-SP e especialista em direito constitucional.
Ele ainda classifica a ação de grupos armados no campo como uma ameaça à soberania nacional: “São grupos de pessoas querendo substituir o Estado para impor o que eles acham que é certo através da violência. Isso é gravíssimo e deve ser combatido”.
Visão semelhante é compartilhada por Erik Boson, defensor regional de Direitos Humanos substituto da Defensoria Pública da União, que compara a ação do grupo à das milícias e grupos paramilitares.
“O que vimos foi a ação de um grupo armado, planejado e institucionalizado com esse tipo de objetivo. Não foi uma reação a um esbulho, foi um planejamento de violência. Um grupo como esse não deveria existir.”
Ele afirma que este tipo de organização se torna mais perigosa num contexto de violência contra comunidades tradicionais e de omissão do Estado na reforma agrária e no processo de demarcação de terras indígenas, quilombolas e comunidades de fundo e fecho de pasto.
Uaquim nega que o movimento use violência. Ele enviou à Folha uma cartilha da entidade que diz que “qualquer ação que não seja ordeira e pacífica será de inteira responsabilidade de quem praticou, isentando assim o movimento Invasão Zero”.
Ela ainda afirma que “nem 1%” dos cerca de 200 produtores rurais que tentaram retomar a fazenda em Potiraguá estavam armados: “Se havia uma pessoa ou outra, isso não tem nada a ver com a questão da associação. Você não consegue controlar 150 pessoas ou mais. Se a pessoa vai armada, a responsabilidade é dela”.
A participação de policiais no grupo Invasão Zero preocupa as autoridades e deve ser alvo de investigação. No governo baiano, contudo, a avaliação é que as ações não têm o respaldo ou condescendência do comando das forças de segurança.
Em nota conjunta, Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União e do estado da Bahia cobraram medidas efetivas dos governos federal e estadual, citando casos recentes de assassinatos de indígenas no extremo-sul da Bahia no qual se constatou o envolvimento de policiais.
A popularidade do Invasão Zero impulsionou a criação de outros grupos com ideário e práticas semelhantes, caso da Unagro e da Associação Baiana de Fazendeiros. Em outubro, um grupo de fazendeiros foi acusado de tentar atear fogo em um acampamento do MST em Itiruçu (335 km de Salvador).
Em paralelo, há uma ofensiva legislativa em curso contra invasões de terra, com dezenas de projetos de lei que buscam acelerar as reintegrações de posse, inclusive com a possibilidade de fazê-la sem o aval da Justiça.
A Faeb (Federação da Agricultura e Pecuária do Estado da Bahia), que representa sindicatos rurais, disse orientar seus associados a atuarem em defesa de seus interesses “dentro dos limites da lei, sem extremismo ou violência de qualquer espécie”.
Entidades como a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), CPT (Comissão Pastoral da Terra) e MST repudiaram os ataques aos indígenas e cobraram medidas para demarcação das terras.