Tendência da Justiça é conceder valores que raramente ultrapassam os 500 salários-mínimos. Entre os motivos, estão análise da condição econômica da vítima e fobia de uma “indústria da indenização”, dizem especialistas. Neste mês, a tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), completa onze anos. Pelo incêndio que matou 242 pessoas em 23 de janeiro de 2013, ninguém ainda foi responsabilizado criminalmente. Na esfera civil, porém, algumas poucas ações de indenização já tiveram sentença proferida pela Justiça.
Em uma delas, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu, em 2020, que o estado do Rio Grande do Sul e o município de Santa Maria pagassem juntos uma indenização de R$ 109 mil aos pais de um jovem de 19 anos morto na tragédia. O mesmo tribunal também determinou que a prefeitura da cidade gaúcha onde ocorreu o incêndio pagasse cerca de R$ 200 mil à família de outra vítima, morta aos 18 anos de idade.
Esses casos são representativo das dificuldades enfrentadas por familiares de vítimas de tragédias e acidentes no Brasil na busca por uma reparação, em valores monetários, pelos danos morais e psicológicos causados pela perda de um ente querido. De acordo com especialistas ouvidos pela DW, os valores concedidos nas ações costumam ser baixos.
Fernando Jayme, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que um dos problemas das indenizações no Brasil é a falta de uma definição sobre os valores que devem ser pagos às famílias.
“Há danos materiais e danos morais. Os danos morais não têm parâmetros objetivos para serem arbitrados. Então podemos verificar uma grande variação na jurisprudência, uma oscilação muito grande de caso a caso – depende das condições da vítima, inclusive a condição econômica, já que a indenização por dano moral não pode gerar um enriquecimento da vítima”, diz.
Quanto vale uma vida?
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), os casos de indenização por morte têm sido fixados entre 300 e 500 salários-mínimos, o que nem sempre é regra. Em 2019, esse parâmetro foi utilizado para reformar uma sentença proferida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região aos familiares de um jovem de 17 anos morto em 2008 no Rio, no caso conhecido como Chacina da Providência.
O TRF-2 havia reduzido para R$ 110 mil a indenização aos familiares, o que foi reformado pelo STJ para os R$ 300 mil, ou 400 salários-mínimos à época, valor decidido na sentença inicial.
Segundo Leonardo Amarante, advogado especialista em responsabilidade civil e procurador aposentado do estado do Rio de Janeiro, há uma tendência de indenizações de valor baixo no Brasil. Ele cita como um dos motivos o fato de o Judiciário analisar elementos que, segundo ele, não deveriam ser considerados, como a capacidade econômica da vítima.
“Pouco importa se a pessoa é pobre ou rica, tem que se considerar a existência de um dano que é independente da capacidade econômica. É difícil falar de enriquecimento em troca de um parente, de um filho. Pelo contrário, a pessoa daria qualquer dinheiro para não receber essa indenização e ter o ente de volta”, afirma Amarante.
Fobia de uma “indústria da indenização”
Um argumento que costuma ser utilizado para manter as indenizações em valores relativamente baixos no Brasil é o receio de uma prática que acontece em países como os Estados Unidos, onde são concedidas indenizações de altos valores de forma pedagógica para que o dano não se repita.
Recentemente, a Ford foi condenada por um tribunal do estado da Geórgia a pagar 1,7 bilhão de dólares (cerca de R$ 8 bilhões) aos filhos de um casal morto em 2014 em um capotamento de uma picape produzida pela montadora. Os familiares alegaram que o teto do automóvel era defeituoso e causou o óbito dos pais.
A título de comparação, no Brasil, os familiares do músico Chico Science, morto em 1997 em um acidente com um automóvel da Fiat, receberam em 2007 uma das maiores indenizações pagas a pessoas físicas no país. O valor de R$ 10 milhões foi decidido em um acordo, sob o argumento de que o cinto de segurança se rompeu e causou a morte do artista.
“O Judiciário brasileiro tem muita fobia da chamada indústria da indenização, como é chamado o que acontece nos Estados Unidos”, diz o professor e advogado Maurício Stegemann Dieter, do departamento de direito penal e criminologia da USP. No entanto, ele valoriza o caráter pedagógico de indenizações de alto valor para que o erro não se repita. “As multas administrativas no Brasil geralmente perpetuam os erros”, diz.
Ele afirma que, no caso da Boate Kiss, por exemplo, pouco deveria importar quem causou o incêndio, já que houve omissão dos gestores públicos. “Se queremos evitar que novos acidentes em boates aconteçam, tem que doer no bolso dos gestores, para ensinar às prefeituras que isso é sério.”
Vítimas brasileiras buscam indenizações em outros países
Segundo o advogado Leonardo Amarante, a maior disposição da Justiça dos Estados Unidos em conceder indenizações levou a um movimento, principalmente no final do século 20, em que vítimas de outros países buscam ações reparatórias nos tribunais do país norte-americano.
No entanto, o entendimento de que um cidadão dos Estados Unidos não poderia custear indenizações a cidadãos que levariam esse dinheiro a outros países acabou por criar uma jurisprudência contrária a esse tipo de processo movido por estrangeiros
Em contrapartida, recentemente países como a Inglaterra se abriram mais para julgar processos de autores de outras nacionalidades. Atingidos pelo rompimento da barragem em Mariana (MG), que ocorreu em 2015, por exemplo, ingressaram nas cortes inglesas com um pedido de R$ 230 bilhões em indenizações.
“A Inglaterra, quando saiu da União Europeia pelo Brexit, deixou de se submeter a diversas diretivas da OCDE. Com isso, Londres virou uma espécie de hub desse tipo de processo. Lá há também a possibilidade de financiamento, porque são processos caros”, diz Amarante. “A Justiça brasileira deveria estar aparelhada para resolver esse tipo de grande tragédia, mas infelizmente não está.”