sábado 23 de novembro de 2024
Maria Ivatônia Barbosa, desembargadora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) — Foto: Divulgação/TJDFT
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segunda-feira 20 de novembro de 2023 às 18:13h

‘Assumi minha raça no Tribunal’: duas desembargadoras negras refletem sobre o racismo no Judiciário

JUSTIÇA, NOTÍCIAS


Em dezembro de 2019, a juíza Maria Ivatônia Barbosa tomava posse como a primeira desembargadora negra no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Foi um avanço, registra Cássia Almeida , do O Globo. Mas ela continua a ser uma entre poucos pares pretos e pardos num país de maioria negra.

No andar de cima do Judiciário, pouco menos de 10% dos desembargadores brasileiros são negros, segundo o Diagnóstico Étnico Racial do Poder Judiciário que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou em setembro.

— Não se pode negar o aumento na composição — observa a desembargadora. — Mas é evidente que a Justiça ainda é branca, masculina e de classe média alta. É desse lugar que fala o juiz no Brasil.

A participação negra no Judiciário — onde estão as carreiras mais bem pagas do serviço público — tem permanecido sem muitas alterações nos últimos anos. Segundo o diagnóstico do CNJ, em 2013, quando foi feito o Censo do Poder Judiciário, a parcela de negros na magistratura era de 15%, mesmo patamar dos atuais 14,5% pelo levantamento e 14,9% segundo dados parciais da edição deste ano da pesquisa, ainda em curso.

Há 12,8% de pardos e só 1,7% de pretos (são apenas 226 em todo o país). O Supremo Tribunal Federal (STF), em seus 130 anos, teve só três ministros negros.

— É um percentual distante dos 20% fixados na Resolução 203/2015 do CNJ e ainda muito distante do atingimento da equidade racial, se considerarmos o total de pessoas negras na população brasileira, que soma 56% — ressalta Wanessa Mendes de Araújo, juíza auxiliar da presidência do CNJ.

Cadê os negros?, pergunta advogado

Onde estão esses juízes negros? A pergunta é repetida por Estevão Silva, presidente da Associação Nacional da Advocacia Negra (Anan), para quem a ausência de magistrados pretos e pardos nos tribunais interfere no trabalho do advogado negro, que não se vê representado nessas alçadas de poder. Silva diz que também é difícil encontrar negros no Ministério Público:

 — Foto: Arte

A percepção dessa presença é ínfima. Quando tem audiência com juiz negro, a gente comemora. O CNJ diz que há juízes negros, mas, no dia a dia dos fóruns, eles não estão presidindo audiências. Na promotoria e na Defensoria Pública não é diferente.

Isso tem efeito nas sentenças, argumenta Silva. Se uma pessoa flagrada portando maconha for negra, a pena definida pelo juiz tende a superar a da pessoa branca. Para o líder da Anan, mais juízes negros perceberiam a distinção:

—Se for negro é traficante, se for de pele branca, é usuário. E o CNJ não faz nada em relação a isso. É uma irregularidade comprovada pelas pesquisas. A Agência Pública mostrou que 71% dos negros foram condenados (por tráfico de drogas) com apreensão mediana de 145 gramas. Entre brancos, 64% foram condenados com mediana de 1,1 quilo.

Silva, presidente da Anan, diz que, para o advogado negro, o preconceito já começa na entrada do Fórum, com o segurança exigindo carteira da OAB, uma, duas vezes. Há revistas e às vezes são impedidos de entrar nas audiência ou de fazer a sustentação oral:

— O advogado já chega abalado na audiência. Além de defender o cliente, precisa defender seu próprio direito.

Marcia Campos: ‘Tem que provar o tempo todo’

Em agosto deste ano, quando foi promovida e assumiu como desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 1ª Região, Marcia Regina Leal Campos deixou uma lacuna nas instâncias inferiores, onde ela era a única juíza autodeclarada negra. Ela avalia que pode haver um subdimensionamento da fatia de negros no Judiciário, por falta de reconhecimento da raça.

Marcia Campos: preconceito internalizado agrava a invisibilidade — Foto: Divulgação/TRT
Marcia Campos: preconceito internalizado agrava a invisibilidade — Foto: Divulgação/TRT

— Nossos dados vêm da autodeclaração, que tem um viés do sentimento da percepção da sua raça e origens e é influenciado pelo racismo estrutural. Nem todos se declaram negros. Fui tomar minha raça muito depois de já estar no Tribunal. É uma forma de se autopreservar. Para não sofrer preconceito, a pessoa tende a se embranquecer, alisar o cabelo, negar as origens.

Foi o que aconteceu com Marcia. Desde a infância, a mãe, para protegê-la, não queria que ela se identificasse como negra, fazia touca para alisar seu cabelo. “Com crespo não será contratada”, dizia a mãe.

— Internalizei essa condição. Vivi diversas situações de preconceito. No começo estranhava, não entendia. Com 20 anos no Tribunal, os agentes de segurança sempre me pediam identificação, o que não acontecia com os colegas brancos. Como tenho um carro melhor, sou sempre parada em blitz. Você tem que provar o tempo todo que não é bandido por ser negro.

Marcia coordena o Subcomitê de Equidade Racial do TRT, e uma de suas principais medidas é conscientizar sobre racismo estrutural, a aceitação de que há racismo na Justiça. Maria Ivatônia, do TJDFT, também vê a necessidade desse reconhecimento. Ao responder se viu efeito na Justiça das cotas raciais, que reservam 20% das vagas desde 2009 a candidatos negros nos concursos, admite: “ainda não”:

— O Judiciário ainda não se assumiu racista. Resiste a temas como “julgamento com perspectiva de gênero, de raça…” E parece ter ainda muita dificuldade de interpretar leis instituidoras de práticas e políticas afirmativas em editais de concursos públicos.

Advogados discriminados

Em setembro, o CNJ mudou o sistema de cotas nos concursos para acelerar a inclusão racial. Era exigida nota mínima 6 de candidatos cotistas, o que não valia para os demais postulantes. A conclusão é de que isso dificultava a entrada do negro, na contramão da intenção da política. A medida foi tomada a partir de uma ação levada pela Anan ao STF.

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