Na madrugada de 12 de novembro de 1823, um decreto emitido pelo imperador D. Pedro 1º determinou a dissolução da casa parlamentar que estava encarregada de elaborar o que seria a primeira Constituição do Brasil, então independente de Portugal há apenas um ano.
Segundo o texto imperial, a Assembleia Constituinte havia “perjurado ao tão solene juramente que prestou à nação de defender a integridade do império, sua independência, e a minha dinastia”.
Para alguns especialistas, foi o primeiro golpe institucional do país. Além de fechar o Legislativo, o imperador determinou a prisão de 14 deputados — seis dos quais foram condenados ao exílio e enviados à força para a Europa.
O episódio — e toda a confusão que o precedeu — entrou para a história como a Noite da Agonia. “Tinha fim a primeira experiência parlamentar nacional”, diz o historiador José Theodoro Mascarenhas Menck em seu recém-lançado livro 1823: A Constituinte Interrompida. Ele diz que, na ocasião, “foi sacrificada a primeira Assembleia Constituinte do Brasil, encarnação da soberania nacional.”
Segundo o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o ato do imperador pode ser considerado um golpe institucional. “Foi um momento em que as perspectivas de derrota política comandaram as ações de dirigentes e de representantes para fazer valer interesses, valores e benefícios de um grupo específico em detrimento de outros, desprezando os protocolos e as regras observadas até então”, define conforme a Deutsche Welle.
Biógrafo do imperador e de outros personagens da época, o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti tem a mesma opinião. “É possível considerar que foi o primeiro golpe, já que houve conflito entre os poderes e o Executivo, no caso o imperador, mandou fechar uma assembleia eleita para elaborar a Constituição”, comenta.
É preciso fazer uma ressalva, pondera Martinez. As próprias regras institucionais “ainda não estavam consolidadas como práticas regulares e tão pouco as formas e meios para estabelecê-las, alterá-las, reformá-las e substituí-las”.
Fronteiras institucionais indefinidas
É justamente por conta disso que alguns historiadores preferem não classificar a dissolução como golpe. “Até porque naquele momento as instituições da monarquia constitucional não estavam definidas, nem mesmo a monarquia constitucional estava definida”, contextualiza a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Ideias em confronto: Embates pelo poder na Independência do Brasil (1808-1825).
“Além da falta da própria Constituição, havia uma indefinição a respeito dos espaços de atuação do Executivo e do Legislativo, e uma das questões-chave para entender a dissolução é justamente essa tensão.”
“Conceber [o episódio] como um golpe institucional, no meu ponto de vista, seria um anacronismo historiográfico. Naquele momento não estava definido quais eram as instituições. E, mais do que isso: a legitimidade do monarca estava assegurada e o regime instituído por D. Pedro previa que ele tivesse de alguma forma autoridade para fazer o que fez”, avalia a historiadora Andréa Slemian, professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora do livro Sob o Império das Leis: Constituição e Unidade Nacional na Formação do Brasil, 1822-1834.
Ela argumenta que “havia projetos alternativos” ao representado pelo imperador brasileiro e ele dissolveu a Constituinte “em meio a esse ambiente de disputas”. “O que não há dúvida é que D. Pedro representava uma ala conservadora. E reagiu a uma situação de instabilidade em nome da ordem e de sua legitimidade dinástica”, diz.
Professor na Universidade Estadual do Maranhão (Uema), o historiador Marcelo Cheche Galves acredita que cravar o episódio como golpe “é delicado porque a própria ideia de país ainda não estava consolidada”, já que havia o argumento de que “sem Constituição não haveria união” de toda a América portuguesa em um só Estado. “Para considerar que foi a primeira ruptura seria preciso existir um todo já consolidado”, argumenta.
O que aconteceu
“A Assembleia foi muito importante porque significou o primeiro momento de reunião de representantes para falar em nome de um governo que ainda não existia, um governo que necessitava construir sua base política e consenso para poder existir”, analisa Slemian. “A Assembleia significou uma chamada à nação para a construção de um pacto político. Por outro lado, ela não mudou, do dia para a noite, todo o arcabouço institucional que funcionava. Uma das poucas leis que ela aprovou foi a que mantinha vigente toda a legislação que existia até 1821.”
O cerne da desavença entre os poderes estava no fato de que os parlamentares planejavam uma Constituição que limitava o poder do monarca.
Salles Oliveira lembra que a convocação da Assembleia Constituinte, ainda em 1822, foi contra a vontade de D. Pedro. “Foi organizada em grande campanha popular, com assinaturas, abaixo-assinados pela imprensa e liderada pelas oposições a ele”, pontua.
Na ideia de organizar a monarquia sobre os pilares de três poderes, haveria “uma participação popular mais alargada” e uma “recomposição política do poder com o privilegiamento do Legislativo”, explica a historiadora. Além disso, os constituintes queriam “um governo que de alguma forma contemplasse as demandas das lideranças provinciais, que questionavam o centralismo do Rio de Janeiro [capital do império]”.
Em outras palavras, aquela Assembleia estava prestes a aprovar uma Constituição que garantiria mais autonomia provincial e municipal, com menos poder ao imperador. “D. Pedro e os que o apoiavam dentro do projeto imperial tinham a noção perfeita da importância de uma Constituição como pacto político, quando o imperador dissolveu a Assembleia. Daí, sem dúvida, o fechamento [da casa] representou uma ação política desse grupo”, comenta a historiadora Slemian.
“Por mais que todos os debates que ocorreram na Assembleia tenham sido acirrados do ponto de vista das alternativas institucionais, a grande questão que se colocava ali era na verdade os que apoiavam e os que não apoiavam D. Pedro”, afirma ela.
Galves atenta para um outro ponto: a imaturidade do constitucionalismo no mundo ibérico. “A primeira Constituição espanhola data de 1812. Em Portugal, a primeira Assembleia foi constituída em janeiro de 1821, finalizou a Constituição em setembro de 1822 e, em junho de 1823, ela foi suspensa”, ressalta. “É um constitucionalismo de história muito incipiente e projetos que subordinariam a monarquia a uma Constituição serviam de base para uma reação.”
Após o episódio, D. Pedro montou uma equipe de sua confiança e a encarregou de redigir uma nova Constituição, que ficou pronta em março de 1824. Ficaria conhecido como “outorgada”, já que foi apresentada pelo próprio imperador e acabou sendo a base de todo o período monárquico brasileiro — com o poder bem mais centralizado nas mãos do executivo.
Lições sobre uso dos militares
Em um Brasil cuja história é repleta de cicatrizes de golpes institucionais e tentativas, olhar para esse episódio suscita algumas reflexões.
“É importante pensar que nossa vida constitucional começou de maneira atribulada e a Constituição de 1824, que não emanou de uma discussão mais ampla, prevaleceu até 1891”, analisa Galvez. “Isso é a expressão de uma sociedade civil ainda pouquíssimo organizada, de base escravocrata e fundamentada no poder do imperador.”
“A lição que fica é que força militar e força política não deveriam se misturar, porque a força militar sempre ganha. Naquela época, o Exército ao lado do imperador fez o que imperador queria [dissolvendo a Assembleia]”, pontua Rezzutti. “E isso vai sair do controle com o golpe contra o Império [que marcou a Proclamação da República, em 1889].”
O pesquisador ainda acrescenta que essa ideia “de força militar como força política” se manteve em toda a história brasileira, passando pela deposição do presidente Getúlio Vargas, em 1945, pelo golpe que instituiu a ditadura em 1964 “e toda a aproximação de parte do Exército no último governo [federal], democraticamente eleito mas com mais ministros e funcionários militares do que qualquer outro governo”.
Martinez acrescenta que “há situações assemelhadas e singulares” na história brasileira, que “nos permitem comparações e animam reflexões”. “De um lado, a secular tensão na busca para acomodar e traçar fronteiras na atuação dos poderes de Estado. De outro, a persistência em filtrar, manipular e domesticar as manifestações dos poderes legislativos pelo cerceamento, a disciplina ou a sua falta, dos representantes eleitos”, comenta o historiador.