É tentador ver Vladimir Putin como um vilão ao estilo James Bond sentado diante de um painel de controle gigante, em um esconderijo nas montanhas, semeando o caos pelo mundo.
Ele aperta um botão e há agitação nos Bálcãs.
Ele pressiona outro e o Oriente Médio explode.
É tentador… mas provavelmente impreciso. Há um exagero na influência global do líder do Kremlin.
Sim, a Rússia tem ligações com o Hamas e tornou-se um aliado próximo do Irã. Segundo os Estados Unidos, Moscou e Teerã têm agora uma parceria de defesa.
Mas isso não significa que Moscou tenha tido envolvimento direto ou conhecimento prévio do ataque do Hamas a Israel.
“Não acreditamos que a Rússia esteja envolvida de alguma forma”, disse o embaixador de Israel em Moscou, Alexander Ben Zvi, ao jornal Kommersant nesta semana. Ele ainda acrescentou que era um “total absurdo” sugerir que havia uma ligação russa com os ataques cometidos pelo Hamas em Israel.
“Não vi qualquer evidência de fornecimento direto de armas russas ao Hamas, ou de militares russos treinando agentes do Hamas”, diz Hanna Notte, especialista em Berlim e no Centro James Martin para Estudos de Não Proliferação.
“É verdade que a Rússia tem uma longa relação com o Hamas. A Rússia nunca declarou o Hamas como uma organização terrorista. Delegações do Hamas estiveram em Moscou em 2022 e 2023.”
“Mas eu não deduzo que tenha havido um amplo apoio militar. Embora saibamos que os sistemas fabricados na Rússia chegaram à Faixa de Gaza, provavelmente através do Sinai [no Egito] e com assistência iraniana.”
Em outras palavras, o presidente Putin não apertou um botão que dizia “guerra no Oriente Médio”.
Mas ele está pronto para tirar vantagem da situação?
Absolutamente. E já.
Distração da Ucrânia
Com o aumento da violência no Médio Oriente dominando a agenda noticiosa internacional, Moscou conta com manchetes dramáticas vindas de Israel para desviar a atenção da guerra da Rússia na Ucrânia.
Mas isso é mais do que apenas mudar o ciclo de notícias. As autoridades russas também esperam que, como resultado da situação no Oriente Médio, fornecimentos de armas ocidentais à Ucrânia sejam redirecionados para Israel.
“Acredito que esta crise influenciará diretamente o curso da operação militar especial [na Ucrânia]”, disse o diplomata russo Konstantin Gavrilov ao jornal pró-Kremlin Izvestia.
“Os patrocinadores da Ucrânia serão distraídos pelo conflito em Israel. Isso não significa que o Ocidente abandonará os ucranianos. Mas o montante da ajuda militar diminuirá… e o curso da operação poderá virar acentuadamente a favor [da Rússia]. ”
Pensamento positivo por parte da Rússia? Bem possível.
“Podemos e iremos apoiar Israel, assim como apoiamos a Ucrânia”, disse o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, numa reunião de ministros de Defesa da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Mas um conflito prolongado no Oriente Médio testará a capacidade da América de apoiar simultaneamente dois aliados em duas guerras distintas.
Rússia mediadora?
A Rússia está tentando reforçar o seu papel no Oriente Médio, apresentando-se como um potencial pacificador.
Já desempenhou esse papel antes, juntando-se aos esforços internacionais anteriores para pôr fim ao conflito na região.
“A Rússia pode e irá desempenhar um papel na resolução [do conflito]”, disse o porta-voz do presidente Putin, Dmitry Peskov. “Estamos mantendo contatos com ambos os lados do conflito.”
Numa visita a Moscou nesta semana, o primeiro-ministro do Iraque fez um apelo ao presidente Putin para “anunciar uma iniciativa para um verdadeiro cessar-fogo” na região.
Rússia, a pacificadora? Isso é difícil de vender.
Afinal de contas, a Rússia é o país que iniciou uma invasão em grande escala contra seu vizinho. Após quase 20 meses, a guerra da Rússia na Ucrânia causou mortes e destruição numa escala que chocou o mundo.
Além disso, dizer que você “pode e irá desempenhar um papel” na conquista da paz não garante que os envolvidos no conflito o aceitarão como mediador.
Há muito tempo, Moscou tem interesse no Oriente Médio, com a União Soviética adotando uma posição pró-árabe, à medida que Israel forjava um vínculo estreito com os Estados Unidos. Durante anos, o antissemitismo patrocinado pelo Estado foi uma característica da vida soviética.
Após o desmembramento do império soviético, as relações da Rússia com Israel melhoraram, em parte devido ao influxo de mais de um milhão de judeus provenientes de antigas repúblicas soviéticas para Israel.
Mas, mais recentemente, a Rússia de Vladimir Putin aproximou-se dos inimigos de Israel, especialmente o Irã – colocando as relações russo-israelenses sob tensão.
Nesta sexta, a Rússia apresentou uma proposta de resolução durante o encontro do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) a portas fechadas, pedindo por um cessar-fogo humanitário. A proposta não foi aceita pelos integrantes e a reunião, presidida pelo Brasil, terminou em impasse.
Culpando os Estados Unidos
O Kremlin vislumbra uma oportunidade para fazer o que já faz bastante – culpar os Estados Unidos.
Desde o ataque do Hamas a Israel, a mensagem central de Vladimir Putin tem sido que “este é um exemplo do fracasso da política dos Estados Unidos no Oriente Médio”.
Isto enquadra-se no padrão geral de Moscou em atacar o que chama de “hegemonia dos EUA”.
E enquadrar a América como o principal culpado no Oriente Médio é a forma de o Kremlin reforçar a posição da Rússia na região, às custas de Washington.
Até agora falei sobre os potenciais benefícios para a Rússia dos acontecimentos no Oriente Médio. Mas também existem perigos.
“A instabilidade cuidadosamente calibrada é o que a Rússia serve de melhor”, acredita Hanna Notte.
“Se esta crise desviar a atenção da Ucrânia – e há um risco real disso acontecer, dada a importância de Israel no contexto político interno dos EUA – sim, a Rússia poderá ser um beneficiário a curto prazo”.
Mas a Rússia não se beneficiaria de uma guerra que atingisse toda a região, incluindo o Irã, que fornece armas e financiamento ao Hamas, diz Notte.
“A Rússia não quer uma guerra total entre Israel e o Irã. Se as coisas evoluírem para isso, e ficar claro que os EUA ficarão do lado de Israel, penso que a Rússia não terá outra escolha senão inclinar-se ainda mais para o lado iraniano. Não tenho certeza se é isso que ela quer.”
“Acho que Putin ainda valoriza os seus laços com Israel. Não creio que a diplomacia russa queira avançar para esse espaço onde tem de escolher um lado. Mas quanto mais este conflito se intensifica, mais poderão sentir a pressão.”