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domingo 8 de outubro de 2023 às 13:35h

O caminho que levou Curitiba a virar a capital da direita

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Cidade por décadas reconhecida como modelo de urbanismo e com papel progressista na redemocratização, Curitiba emergiu na última década, com a Lava Jato e a maior votação proporcional de Bolsonaro em uma grande capital, como polo da direita brasileira. Pendor conservador tem longa tradição por lá, ligada à imigração europeia, ao pujante movimento integralista local e, mais recentemente, à influência do jornal Gazeta do Povo e do ex-morador Olavo de Carvalho. As informações são de Fabio Victor, do jornal, Folha de S.Paulo.

No auditório da Câmara Municipal de Curitiba, o vereador Eder Borges (PP) abre o evento festejando o público. “Casa cheia. A direita está viva, mais viva do que nunca”, afirma, sob aplausos. “Essa cerimônia tem um simbolismo especial, porque a direita brasileira começou a existir por causa do professor Olavo de Carvalho.”

Na noite de 25 de abril passado, o parlamento curitibano abriu as portas para uma sessão de homenagem ao polemista que se tornou a principal referência intelectual dos eleitores de Jair Bolsonaro. Olavo de Carvalho, o “guru do bolsonarismo”, havia morrido um ano antes, aos 74 anos, nos Estados Unidos.

A ideia da homenagem foi de Borges, autor do projeto de lei aprovado pela Câmara de Vereadores que concedeu cidadania honorária a Olavo —a lei acabou vetada pelo prefeito Rafael Greca (PSD). Um dos representantes mais histriônicos da direita radical curitibana, Borges já teve o mandato cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral (depois recuperado) por publicar uma fotomontagem que associava estudantes e educadores ao comunismo.

A mesa foi composta de outros quatro homens brancos de meia-idade. Eles estavam à frente de um mural representando a formação de Curitiba: as pessoas pintadas são todas brancas e de olhos azuis (em 2019, a vereadora petista Professora Josete sugeriu incluir no painel negros e indígenas, que também construíram a cidade, mas a proposta nem foi apreciada).

Por mais de duas horas, admiradores e ex-alunos deram depoimentos derramados sobre como o homenageado mudou suas vidas. Olavo viveu por cerca de cinco anos em Curitiba, de 2000 a 2005, deu incontáveis cursos presenciais e construiu na cidade uma rede de alunos e admiradores em um momento histórico preliminar ao renascimento da direita brasileira.

Mesmo sem formação superior, lecionou inclusive em universidades locais. A PUC-PR, uma delas, informou que Olavo “nunca possuiu vínculo empregatício com a instituição” e foi “convidado por uma instituição parceira para uma participação pontual no curso ‘in company’ gestão de assuntos públicos, em 2004”. A Universidade Tuiuti do Paraná, onde Olavo também teria lecionado, não respondeu.

Geovani Moretto, atual coordenador dos cursos de filosofia e ciências sociais da PUC-PR, recorda que desde aquela época Olavo “tinha um grupo muito fiel, como todo dogmático tem”. “Criou uma espécie de seita. Os cursos livres dele não tinham hora para acabar, às vezes os debates se estendiam até altas horas.” Moretto ensaiou conhecer esses cursos, mas desistiu sem nem começar, depois de uma experiência curiosa.

“Um amigo marcou de encontrar Olavo e pediu para eu ir junto. Todo sábado à tarde ele ia a um bar fumar charuto e tomar uísque. Quando chegamos, a primeira coisa que ele perguntou foi onde a gente fazia filosofia”, narra Moretto. “Falamos que na PUC. ‘Então vocês não fazem filosofia, vocês têm consciência disso, né?’, ele disse de cara. Um colega perguntou onde então teria filosofia no Brasil. ‘Não tem curso de filosofia no Brasil’, ele rebateu. Mas então o que tem de filosofia no Brasil?, perguntamos. Aí ele apontou para ele.”

Primogênita dos oito filhos do polemista, Heloísa de Carvalho, que era rompida com o pai, afirma que uma das explicações para o período curitibano é que Olavo foi ajudado financeiramente por alunos milionários da cidade, sobretudo Guilherme Almeida, herdeiro da construtora CR Almeida.

Em mais de uma ocasião Olavo definiu os paranaenses como os seus melhores alunos, “notavelmente mais humildes e interessados em aprender”. Três filhos do escritor continuam a viver na cidade. Dois deles foram procurados pela reportagem, mas não responderam às mensagens.

No fim da homenagem, Eder Borges e um dos seus convidados anunciaram o desejo de criar uma entidade (o Instituto Pró-Ocidente) para manter aceso o legado de Olavo. “A esquerda dominou o Ocidente por causa da escola de Frankfurt. Precisamos criar a escola de Curitiba”, concluiu Borges.

Quatro meses depois, em 25 de agosto, o mesmo espírito animou os centenas de presentes a um centro de eventos na capital paranaense para a primeira edição do Foro de Curitiba. O trocadilho com o Foro de São Paulo, reunião de representantes da esquerda latino-americana, é um dos apelos de marketing para atrair outra boa leva de órfãos do governo derrotado em outubro de 2022.

A estrela do evento foi o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). O primogênito do ex-presidente defende um projeto para retomar o poder perdido para o PT. Conta ter aprendido com Olavo a usar “um pouquinho da estratégia do lado de lá”. “Não tem outro caminho a não ser pela política.”

Aconselha evitar redes sociais, “senão você vai ser banido”. “Um pouquinho de inteligência. Manda na tua rede de WhatsApp. Não precisa atacar ninguém, não precisa ofender ninguém […]. Não tem que ter ruptura, pancada, cabeça de ninguém na bandeja não, gente.”

A temperança vinda de um Bolsonaro choca alguns. Um homem berrou da plateia: “Mas se continuar assim daqui três anos seremos escravos! Ninguém entende isso! O senhor tem que dar uma palavra de esperança que isso mude”.

“A palavra que eu estou dando, comandante, é de organização. Não espere de mim pegar uma espada e enfiar na cabeça dos outros. Não posso fazer isso. Não vou defender isso”, respondeu Flávio.

“Quando nós pegaremos em armas?”, questionou aos gritos o “comandante”. “O caminho que eu estou defendendo é o da política. O senhor tem outro caminho, pode ficar à vontade”, retrucou o senador e foi aplaudido.

Ambos os eventos seriam espasmos naturais da derrota da extrema direita nas eleições, passíveis de ocorrer em outras cidades brasileiras: Bolsonaro, afinal, teve 58,2 milhões de votos e venceu em 13 estados e no Distrito Federal, contra 60,3 milhões de Lula, ganhador nos outros 13.

Um exame mais detalhado dos números revela, no entanto, que há algo diferente em Curitiba. Entre as principais capitais brasileiras, ou as com mais de 1 milhão de habitantes (lá vivem 1,7 milhão), foi a que deu a maior votação proporcional a Bolsonaro no segundo turno de 2022, 64,78%, mais que os 62,4% obtidos pelo candidato no Paraná como um todo.

É um raro caso em que, tendo vencido no estado, o candidato do PL se saiu melhor na capital que no interior. Em São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina, todos estados em que Bolsonaro ganhou, ocorreu o inverso —sua votação na capital foi menor e, em São Paulo e Porto Alegre, ele foi até derrotado por Lula.

Quem também teve uma votação melhor em Curitiba que no interior foi o senador Sergio Moro, ex-juiz nascido em Maringá que comandou a Operação Lava Jato, baseada na capital. Aqui chega-se a outra força motriz elementar do fenômeno que transformou a cidade das araucárias na capital da direita brasileira.

Ao investigar casos de corrupção na Petrobras durante governos petistas, Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol à frente, guiaram a onda conservadora que derrubou Dilma Rousseff, impediram Lula de ser candidato em 2018 e pavimentaram a estrada que levou a Bolsonaro. Com o capitão reformado eleito, Moro largou a toga, virou ministro da Justiça e, após romper com o aliado, foi fazer política na arena adequada. Dallagnol seguiu o mesmo caminho.

Entre as duas aventuras, eclodiu a chamada Vaza Jato: a revelação de mensagens dos integrantes da operação descortinou descalabros processuais e uma ação coordenada entre o juiz e os procuradores da força-tarefa, levando o STF a anular os processos contra Lula (e boa parte das ações da Lava Jato). Para quem circulava no mundo jurídico curitibano, não foi surpresa. Moro sempre trabalhara em conjunto com o Ministério Público e a Polícia Federal.

Bem antes da reviravolta, e pouco antes de ser preso, Lula se referiu ao grupo como República de Curitiba, numa alusão à República do Galeão, que agiu para a derrubada de Getúlio Vargas em 1954. Paulo Generoso, empresário que hoje vive nos EUA e é sócio de Eduardo Bolsonaro, batizou com a expressão um movimento de apoio à Lava Jato, reunindo mais de 1 milhão de seguidores em redes sociais.

O estrago causado pela Vaza Jato respingou na capital paranaense. O ministro Gilmar Mendes, do STF, afirmou em entrevista em maio: “Curitiba gerou Bolsonaro. Curitiba tem o germe do fascismo. Inclusive todas as práticas que desenvolvem. Investigações à sorrelfa e atípicas. Não precisa dizer mais nada”. Foi um pandemônio.

Gilmar pediu escusas em rede social. “Usei uma metonímia que merece explicitação. Jamais quis ofender o povo curitibano. Não foi Curitiba o gérmen do facismo; foi a assim chamada ‘República de Curitiba’ (Operação Lava Jato e os juízes responsáveis por ela na capital paranaense).”

A própria escolha de Curitiba como sede da operação foi uma artimanha dos seus líderes, como aponta a juíza federal Fabiana Alves Rodrigues no livro “Lava Jato: Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça”. Moro, escreveu ela, agiu estrategicamente para manter em Curitiba os casos da operação, omitindo o local de vários fatos criminosos. Foi um dos motivos para a anulação dos processos contra Lula.

Moro trata a acusação como “questões jurídicas muito específicas”. “O próprio STF afirmou a competência de Curitiba, depois é que mudou de posição, a meu ver influenciado pela política”, disse o senador.

A consolidação de cidade como epicentro da direita lavajatista reflete, segundo Moro, “essa inspiração que as pessoas têm de mais integridade da política”. “É um sentimento que nos últimos anos vem sendo atacado, mas que permanece ali latente, pronto para aflorar. E gera um sentimento de orgulho nos curitibanos e paranenses, por ver que Curitiba se tornou um epicentro mundial de combate à corrupção.”

O ex-juiz aponta também a força do agronegócio no Paraná, inclusive na região metropolitana de Curitiba, como propulsora do fenômeno. “É um meio em que essas ideologias conservadoras, os costumes liberais da economia estão mais presentes, né? O retrato do empreendedorismo, de uma economia brasileira que deu certo.”

Moro se recusou a responder sobre outros temas. Indagado quanto à possibilidade de ter o mandato cassado, encerrou a entrevista. Dallagnol não respondeu às mensagens da reportagem. Com o mandato de deputado federal cassado e em tese inelegível, filiou-se ao partido Novo junto com a esposa, Fernanda, que poderá concorrer em seu lugar à Prefeitura de Curitiba em 2024.

Fundador do instituto Paraná Pesquisas, o economista Murilo Hidalgo relata que levantamentos recentes da empresa mostraram Dallagnol como favorito na corrida à Prefeitura de Curitiba, e Moro na mesma posição para o governo estadual em 2026.

Para Hidalgo, a capital paranaense “é mais Lava Jato do que Bolsonaro”. “O curitibano é conservador: contra o aborto, a favor da família, do trabalho, da propriedade. Mas isso não tem nada a ver com ser antidemocrático.”

O Paraná Pesquisas, que foi contratado pelo PL na última eleição (mas atende partidos e políticos de vários matizes), cresceu graças à parceria com a Gazeta do Povo, iniciada em 1992. Segundo Hidalgo, é impossível entender a cidade sem entender o jornal. “Curitiba retrata a Gazeta, e a Gazeta retrata Curitiba.”

Guilherme Döring Cunha Pereira retrata ambos. Presidente do Grupo Paraense de Comunicação —que reúne, além da Gazeta do Povo, retransmissoras da TV Globo, rádios e um jornal popular—, liderou a guinada conservadora da Gazeta em meados da década passada.

Comprado em 1962 pelo pai de Guilherme, Francisco Cunha Pereira, e um sócio, a Gazeta virou o principal diário do Paraná nos anos 1970. Era um jornal de extração conservadora “light”. Com a morte de Francisco, os filhos Guilherme e Ana Amélia assumem, e inicia-se uma gradativa transição que ressalta os valores morais do novo comandante.

Doutor em direito pela USP, Guilherme Cunha Pereira é numerário da Opus Dei, como se chamam os fiéis celibatários da corrente ultraconservadora da Igreja Católica que se dedicam a trabalhos apostólicos e de formação.

Vive em uma casa comunitária da prelazia e, conforme revelou à reportagem em entrevista na sede do grupo de comunicação, é adepto das penitências chamadas “mortificações corporais” da Opus Dei, o cilício e as disciplinas.

O cilício é uma corrente de metal colocada ao redor da coxa com pontas viradas para dentro, comprimindo a carne, para machucar. Ele o usa diariamente por duas horas (menos em dias de festa). As disciplinas são pequenos chicotes, com os quais Cunha Pereira se fustiga uma vez por semana.

Crítico do que considera ativismo judicial do STF, o executivo ministra cursos online sobre liberdade de expressão, obrigatórios aos jornalistas que entram na Gazeta (15 aulas de uma hora e meia) e gratuitos para o público em geral. Gratuitos em termos: só é possível se cadastrar se o interessado ticar na caixinha “quero receber por e-mail reportagens em defesa da liberdade, da vida e de virtudes.”

Estes últimos quesitos estão nos cursos e na base das “convicções” da Gazeta, um conjunto de princípios em que o jornal defende “a vida desde a concepção”, “o valor da família” e “a importância do casamento”, entre muitos outros.

A partir de 2015, a Gazeta reforçou sua orientação antipetista, com editoriais criticando o partido e mais tarde estimulando o voto em Bolsonaro sem citar o nome do candidato. Um ano antes, o jornal extinguira sua edição diária impressa; hoje é 100% digital. Cunha Pereira, que se define como um “democrata de centro-direita”, diz que nunca pediu voto em Bolsonaro nem nunca visitou o agora ex-presidente.

A Gazeta, no entanto, tem como colunistas alguns dos mais fervorosos bolsonaristas, casos do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) e dos jornalistas Alexandre Garcia, Rodrigo Constantino, Guilherme Fiuza e Luis Ernesto Lacombe, entre outros.

Moro e Dallagnol também integram o time. Ainda hoje um defensor fervoroso da Lava Jato, Cunha Pereira despreza críticas à operação. “Pode ter tido efeitos políticos, mas nunca enxerguei motivação política, continuo a vendo como essencialmente técnica”, afirma. “Tenho esperança de ajudar o Brasil a recuperar o legado da Lava Jato.”

Antes de ruir o castelo lavajatista, a operação e seus líderes cristalizaram uma imagem heroica pelo país, mas sobretudo em Curitiba. Moro e Dallagnol eram aplaudidos nas ruas e em restaurantes, carros circulavam com adesivos em apoio à Lava Jato e militantes acampavam em frente à 13ª Vara da Justiça Federal, no centro da capital, pedindo o impeachment de Dilma e exaltando a operação.

“A Lava Jato vem ocupar, na identidade cultural curitibana, o espaço que no passado foi de cidade modelo de planejamento urbano, que fica vazio com a saída de cena de Jaime Lerner”, interpreta Ricardo Costa de Oliveira, professor titular de sociologia da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Oliveira se refere ao arquiteto, engenheiro e urbanista que foi prefeito de Curitiba e governador do Paraná por vários mandatos, do fim da ditadura ao começo do século 21, e por longos anos a figura mais influente e representativa da política curitibana, símbolo de uma cidade moderna e organizada.

Rafael Greca, atual prefeito curitibano, é uma das crias de Lerner. Hoje no PSD de Gilberto Kassab, assim como o governador Ratinho Jr, Greca virou à direita a reboque da onda que assolou o Paraná e o Brasil. Disse que, certa feita, tinha vomitado ao sentir cheiro de pobre e elaborou projeto prevendo multa para quem doasse comida a moradores de rua sem autorização da prefeitura (depois retirou a multa do texto).

Amigos dizem que votou em Lula no segundo turno, e progressistas o têm como um bom gestor. Para direitistas radicais, é tido como de esquerda. Greca não quis dar entrevista.

Oliveira também observa que houve uma sintonia étnico-racial do curitibano com o líder da extrema direita. “Quando surge Bolsonaro, com olho claro, sobrenome italiano, a identificação com o fenótipo europeu é automática.” Isso apesar de quase um quarto da população curitibana ser de pretos e pardos, parcela comumente invisibilizada pela mística de “cidade europeia” com suas vastas comunidades de descendentes do Leste Europeu, de japoneses, árabes e judeus.

“Aqui em Curitiba tem um memorial ucraniano, um polonês, um alemão, um japonês, vários italianos —bairro, clubes—, tem uma mesquita linda, o Museu do Holocausto. Mas não tem monumento à história dos pretos”, observa o advogado Luiz Carlos da Rocha, o Rochinha, que foi advogado de Lula e é filho de Espedito Rocha, um negro pernambucano que se radicou em Curitiba e virou um líder sindical histórico, além de artista escultor.

A visão de uma cidade de descendentes de europeus trabalhadores serviu também para plasmar a busca por uma identidade local. É nela que está assentado o ensaio “Um Brasil Diferente”, do crítico Wilson Martins, que apaga o papel de negros e indígenas na formação do Paraná e enaltece a contribuição da imigração europeia.

O fecho do livro fala por si. “Assim é o Paraná. Território que, do ponto de vista sociológico, acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de uma civilização original construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão, sem negro, sem português e sem índio, dir-se-ia que a sua definição humana não é brasileira. […] Assim é o Paraná. Terra que substituiu o sempre estéril heroísmo dos guerreiros pelo humilde e produtivo heroísmo do trabalho quotidiano e que agora, entre perturbada e feliz, se descobre a si mesma e começa, enfim, a se compreender.”

Anos antes de Martins escrever “Um Brasil Diferente”, a busca sôfrega por uma identidade própria produziu o paranismo, movimento surgido nos anos 1920 que, nas palavras do prefeito Rafael Greca no livro “Curitiba, Luz dos Pinhais”, foi “uma reação ética e estética ao apequenamento da nossa terra diante de São Paulo e de outras regiões do Brasil e do mundo”. Dalton Trevisan criou a lendária revista Joaquim em parte como reação ao paranismo.

Era uma época conturbada. Quando defende que Olavo de Carvalho “se aproveitou mais do conservadorismo curitibano do que o contrário”, o professor Geovane Moretto tem amparo histórico. Quase um século antes da Lava Jato, Curitiba e o Paraná tiveram, nos anos 1930, um pujante movimento integralista, a versão brasileira do fascismo italiano.

Em 1955, quando Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira, concorreu à Presidência, terminou apenas em quarto, com 8,2% dos votos (atrás de Juscelino Kubitschek, Juarez Távora e Adhemar de Barros). Mas o líder integralista teve no Paraná sua melhor votação em todo o país (24%) e terminou em primeiro em Curitiba (Adhemar foi o segundo, JK ficou em quarto).

A resistência à ditadura militar (1964-1985) e a mobilização pela abertura democrática marcaram um período progressista no Paraná. Em 1982, José Richa foi eleito governador pelo MDB, partido de oposição à ditadura, e governou inclusive com quadros egressos do velho partidão, o PCB. A Boca Maldita, reduto no centro curitibano, recebeu o primeiro grande comício das Diretas Já no país, em 12 de janeiro de 1984.

Os contrapontos de esquerda na terra da Lava Jato são em sua maioria do PT, como o deputado estadual Renato Freitas e a deputada federal Carol Dartora. Ela foi a primeira negra eleita vereadora da cidade em 2020 e, dois anos depois, a segunda pessoa mais votada na capital para a Câmara dos Deputados (atrás apenas de Dallagnol). “Curitiba não é só conservadora, é uma cidade muito complexa, aberta ao novo e à modernização”, afirma Dartora, que tenta se viabilizar como candidata do partido à prefeitura no ano que vem.

A noite virou outra trincheira da minoria. Durante a pandemia, o Bek’s Bar foi notícia por rejeitar a presença de eleitores de Bolsonaro. Dona do local, cujas paredes têm bandeiras do MST e a frase “fora, bolsonaristas”, Giovanna Lima assumiu o lugar após a morte do pai. “Ele votava na esquerda, mas não revelava, para não perder clientes. Honro sua memória, mas sou diferente, acho que nestes tempos não dá mais para fazer isso.”

O jornalista Rogério Galindo foi demitido da Gazeta do Povo em 2018 —segundo ele, as discordâncias políticas influíram, o que Cunha Pereira refuta, atribuindo a “questões de gestão”. Em 2019, fundou com dois sócios o jornal digital Plural. “O Plural nasceu porque Curitiba tem muitas vozes, mas os jornais insistiam em amplificar sempre as mesmas”, diz Galindo. “A gente busca diversificar o debate, não queremos pregar para convertidos.”

Sempre há a arte como espaço libertário e transgressor. Curitiba abriga desde 1992 um dos principais festivais de teatro do país. Seus parques têm espaços culturais admiráveis, como o museu Oscar Niemeyer, a Ópera de Arame e a Pedreira Paulo Leminski.

Para não mencionar a vigorosa cena literária da cidade, que mescla contemporâneos como Luci Collin, Giovana Madalosso e Caetano Galindo a cults como Valêncio Xavier (1933-2008) e Manoel Carlos Karam (1947-2007) e aos consagrados Dalton Trevisan, Paulo Leminski (1944-1989) e Cristóvão Tezza.

Leminski afirmou que Curitiba era “uma cidade em que a sexualidade, o Eros da vida, é reprimido”, em que vigora “a ‘mística do trabalho’, herança equivocada dos imigrantes alemães, italianos e polacos”. Mas o “polacolocopaca” também dizia que jamais conseguira morar em outro lugar por muito tempo.

Numa ode ao seu modo ao torrão natal, escreveu o poema “Curitibas”, que decerto faria corar muitos conservadores. “Conheço esta cidade/ como a palma da minha pica./ Sei onde o palácio/ Sei onde a fonte fica/ Só não sei da saudade /A fina flor que fabrica / Ser, eu sei./ Quem sabe,/ esta cidade me significa.”

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