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segunda-feira 2 de outubro de 2023 às 16:34h

Pauta de costumes que fisgou Lula na eleição se infiltra na esquerda não só no Brasil

MUNDO, NOTÍCIAS, POLÍTICA


A pauta de costumes que fez o presidente Lula (PT) se posicionar na reta final da campanha eleitoral de 2022 contra o aborto, banheiros unissex e a interferência do Estado na educação das famílias se infiltrou na esquerda não só no Brasil.

Levantamentos internacionais sobre partidos políticos mostram que legendas no poder com visão mais esquerdista na economia se dividem quando se trata de temas como esses.

Não é uma exclusividade desse campo político, diz reportagem de Angela Pinho, da Folhapress. Também a direita não é homogênea, mas tem uma concentração maior de siglas entre as tradicionalistas.

Para cotejar o pensamento econômico com a visão sociocultural dos chefes de governo pelo mundo, a Folha recorreu a dois índices de posicionamento ideológico.

Calculados a partir da avaliação de centenas de especialistas de diferentes países, ambos usam como critério de esquerda na economia a defesa de um papel mais proeminente do Estado na área.

Para os países da América Latina e da União Europeia, além de Islândia, Noruega, Suíça, Turquia e Reino Unido, foi considerada a pesquisa Ches (Chapel Hill Expert Survey), feita por acadêmicos de todo o mundo e financiada pela Universidade da Carolina do Norte – Chapel Hill, nos Estados Unidos.

No caso de Argentina, México, Uruguai e Venezuela, ela disponibiliza o posicionamento do chefe de Estado. Para os demais países, foi levada em conta a posição do partido no poder no país.

No quesito comportamento, a Ches avalia a posição das legendas em relação a valores sociais e culturais, em temas como aborto, divórcio e casamento entre pessoas de mesmo sexo (escala Gal-Tan).

Para países da América do Norte, Ásia, África, Oceania e Europa oriental, onde a Ches não foi feita, a reportagem usou com parâmetro o índice V-Party, criado pelo Instituto V-Dem, da Universidade de Gothenburg, na Suécia.

O indicador do V-Party utilizado como parâmetro para a escala de costumes foi o de direitos das minorias, que o instituto defende como respeitos aos direitos humanos sem qualquer distinção de raça, cor, sexo, religião ou outras.

Foram considerados mais libertários os partidos que acreditam que a vontade da maioria nunca deve determinar políticas se essas violarem direitos das minorias, e mais tradicionalistas os que avaliam que a vontade da maioria tem que prevalecer sempre.

A partir dessas duas pesquisas, foram levantados dados da ideologia dos partidos no poder em 99 países que detêm 80% da população mundial (leia mais sobre a metodologia em texto abaixo).

Do total, 43% foram considerados pelo Ches e pelo V-Party à esquerda na economia. Outros 23%, de centro, e 33%, de direita.

Em relação aos costumes, 31% dos partidos no poder foram colocados no nível de escala de partidos libertários; 28%, no de moderados; e 40%, no de tradicionalistas.

Entre os partidos de governos esquerdistas na economia, 42% foram considerados libertários em questões de costumes. Outros 23%, moderados, e 35%, tradicionalistas.

Já entre as legendas da direita no poder, 48% foram classificadas como mais tradicionalistas, 21%, libertárias, e 30% foram situadas no espectro intermediário.

Entre os governos de líderes eleitos por partidos considerados de esquerda na economia, mas conservadores nos costumes, estão os de Peru, Venezuela e México.

A presidente peruana Dina Boluarte chegou ao poder após a destituição de Pedro Castillo, de quem ela era vice. Alinhado à esquerda na economia, Castillo se posicionava contra o casamento gay, o direito ao aborto e o que chamava, como conservadores de direita, de “ideologia de gênero”.

Na Venezuela, o ditador Nicolás Maduro tem histórico de declarações homofóbicas.

No México, Andrés Manuel López Obrador também foi posicionado no Ches como mais tradicionalista. Em seu governo, ele nomeou uma série de mulheres para postos relevantes, mas teve uma série de entreveros com movimentos feministas.

Entre os pontos de crítica, está suposta omissão de seu governo quanto a feminicídios e declarações consideradas machistas.

Outros partidos de esquerda na economia classificados como tradicionalistas nos costumes são os que governam nações consideradas pelo V-Dem autocracias, como Chade, Coreia do Norte, Cuba, Eritrea, Hungria, Laos, Nigéria, Turcomenistão e Zimbábue.

No caso da Hungria e da Polônia, que também enfrenta erosão democrática, os partidos foram considerados pelo Ches como de esquerda na economia, mas de direita no geral —esse índice total não está presente no V-Party.

Um motivo que ajuda a explicar essa aparente contradição é abordado em artigo de pesquisadores responsáveis pelo Ches.

Usando dados do levantamento, eles concluem que, na Europa, as posições dos partidos sobre economia e questões socioculturais não andam juntas, diferente do que acontece em muitos países latino-americanos como o Brasil —o PT, por exemplo, foi situado à esquerda na economia e libertário nos costumes.

Fatores como migração e questão ambiental, mais relevantes no debate político europeu, ajudam a explicar a situação diferente no continente, diz Bruno Bolognesi, professor de ciência política na Universidade Federal do Paraná.

Ele afirma que imaginar uma posição única para temas econômicos e socio-comportamentais também não faz sentido no cotidiano do cidadão comum.

“Se você for à rua e perguntar a uma pessoa sobre aborto para saber a posição dela sobre incentivos à indústria automobilística, ela vai achar que você enlouqueceu.”

Acontece que, em alguns países, essa sobreposição de fato acontece nos partidos políticos.

Professor da FGV, o cientista político Cesar Zucco explica que, por diferentes motivos, há no Brasil e nos Estados Unidos uma tendência de a política ser unidimensional, ou seja, saber a posição sobre uma questão comportamental permite mapear valores sobre outras áreas.

Na teoria, pode parecer contraditório para a direita defender menos Estado na economia e mais intervenção nas escolhas individuais das pessoas, como a da gestação ou casamento. Na prática, não é, diz Elisabeth Friedman, professora da Universidade de São Francisco, nos EUA.

“A direita reinterpreta as reivindicações da esquerda sobre direitos individuais como uma intervenção visada a reinventar sociedade e a família”, afirma ela, organizadora do livro “Seeking Rights From the Left: Gender, Sexuality and the Latin American Pink Tide” (em português, Buscando direitos pela esquerda: gênero, sexualidade e a onda rosa na América Latina).

Por outro lado, ela vê o tradicionalismo de parte da esquerda latino-americana nos costumes como resultado de um misto de convicção pessoal de governantes com estratégia de sobrevivência eleitoral.

Segundo ela, essa característica se manifestou em alguns governos de esquerda do continente no período de 2000 a 2015, mas só em parte dos temas.

“Às vezes pareceu haver uma compensação entre reconhecimento de relações de pessoas do mesmo sexo e [menos atenção a] direitos reprodutivos, por exemplo”, diz.

No geral, afirma, a maioria dos governos esquerdistas do período investiu na melhoria das condições de vida de mulheres pobres e houve melhora da representatividade feminina, além de, em muitos casos, ter ocorrido o reconhecimento de união de pessoas do mesmo sexo e possibilidade de uso do nome social para pessoas trans.

Por outro lado, ela aponta como contradição o fato de que esses governos não adotaram medidas que mudassem estruturalmente a desigualdade de gênero e renda.

MÉTODO DE CLASSIFICAÇÃO IDEOLÓGICA

O levantamento da Folha sobre ideologia e pauta de costumes de partidos no poder abrange países que se enquadram em dois critérios: estão presentes na Chapel Hill Expert Survey (Ches); ou têm ao menos 3 milhões de habitantes e dados no V-Party.

Em todos os casos, foi levada em consideração a posição ideológica do partido do chefe de governo: presidente no caso de regimes presidencialistas, primeiro-ministro ou chanceler no caso de regimes parlamentaristas.

Monarquias absolutistas como a da Arábia Saudita não puderam ser avaliadas, uma vez que a classificação ideológica leva em conta os partidos.

Também não entraram no levantamento países para os quais não havia dados nos levantamentos sobre o partido do governante, casos de Chile e Colômbia, por exemplo.

A rodada mais recente da pesquisa Ches é de 2019 no caso da Europa, e de 2020 no da América Latina.

Já no caso do V-Party, a avaliação foi feita em 2020, mas em alguns casos foi avaliada a atuação do partido só em um período mais antigo.

Devido ao intervalo temporal, os levantamentos não captam eventuais mudanças de posição dos partidos em momento mais recente.

Ches e V-Party usam escalas diferentes. Em economia, o V-Party tem uma escala de 0 a 6 em que cada ponto corresponde a um espectro, da extrema esquerda à extrema direita.

Já, o Ches usa uma escala meramente numérica de 0 a 10, na qual 0 é o ponto mais à esquerda, 10 mais o mais à direita, e 5 é o centro. Os partidos que receberam pontuação de 0 à 4 foram localizados à esquerda, e de 6 a 10, à direita.

Nos dois levantamentos, números com casas decimais de 0,5 ou mais foram arredondados para cima, e os demais, para baixo.

A classificação ideológica de partidos feita por especialistas em política é usada como referência em pesquisas acadêmicas sobre o tema e é considerada mais acurada do que a que analisa manifestos partidários.

Artigo acadêmico mostra considerável convergência entre os indicadores do Ches e do V-Party, mas ainda assim há um grau de subjetividade envolvido.

A segmentação da avaliação também pode levar a resultados que contrariam o senso comum, como no caso de China e Estados Unidos. Em economia, o V-Party considera o Partido Democrata de centro-esquerda, enquanto o Partido Comunista chinês, por arredondamento, fica no espectro de centro.

A subjetividade e o lapso temporal das avaliações de especialistas também levam a indicadores, em casos pontuais, pouco consistentes com a atualidade. É o caso de Maláui e Indonésia, classificados no espectro mais libertário pelo V-Party, mas com forte discriminação legal a pessoas LGBT+.

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