A escassez de dólares já afeta o dia a dia dos argentinos. Com entraves cada vez maiores para a importação de produtos, o país sente os efeitos da falta de insumos médicos, remédios, automóveis, materiais de construção e até de alimentos, como palmito, abacaxi e atum, entre outros. A falta de insumos médicos já adia cirurgias. Nas concessionárias, são poucos os automóveis expostos: não há carros disponíveis para venda nem previsão de quando a situação vai se normalizar.
Este mês, o chefe de Cardiologia da Fundação Favaloro, uma das clínicas privadas mais importantes de Buenos Aires, Oscar Mendiz, teve de reprogramar uma cirurgia porque não contava com uma válvula específica para operar uma artéria pulmonar.
O país importa 100% dos insumos médicos que utiliza. Nos sistemas público e privado, já não se encontra o líquido usado para tomografias com contraste e cateteres.
Fontes empresariais ouvidas pelo O Globo confirmaram que, desde julho, a escassez de divisas chegou a um ponto tão dramático que o governo fechou a torneira para todo produto acabado importado. A decisão terminou afetando também as companhias nacionais, que, em muitos casos, não conseguem insumos básicos para manter a própria produção.
Se no passado a Argentina já se fechou para implementar um plano clássico de substituição de importações como estratégia para impulsionar a indústria nacional, desta vez o cenário é outro.
O plano do governo de Alberto Fernández era chegar às eleições presidenciais de 22 de outubro com a situação minimamente sob controle, mas o objetivo não foi alcançado.
— Ainda temos um estoque de insumos e remédios, mas ele está diminuindo, e a informação que recebemos de nossos distribuidores é que eles não têm certeza sobre futuras entregas — explica Mendiz, visivelmente preocupado.
O médico argentino teme que as reprogramações de cirurgias sejam cada vez mais frequentes.
— O paciente que precisava da válvula pulmonar pode esperar, mas a verdade é que não sabemos quando vamos recebê-la. Hoje o que mais nos preocupa é a demora em receber o líquido para contrastes, porque isso pode afetar os casos de possíveis infartos — afirma Mendiz.
O médico tem 30 anos de carreira e diz nunca ter vivido momento igual ao atual.
— Já passamos pela hiperinflação, por tudo. Mas o que vemos hoje é inédito e afeta a todos, os que têm e os que não têm dinheiro — lamenta Mendiz.
Na província de Corrientes, o médico Jorge Baccaro, chefe de cardiologia do Instituto de Cardiologia da província, tem as mesmas preocupações que Mendiz. Lá também faltam insumos para realizar tomografias com contraste, e a clínica, como todas as da Argentina, depende de produtos importados.
— A situação é preocupante — frisa Baccaro.
O setor de saúde não é o único a sentir o impacto. A escassez de dólares aumenta a percepção da crise em um país com inflação de 100% em 12 meses e com preços que aumentam até 20% de um mês para o outro. Um empresário que pediu para não ser identificado se refere ao peso como “entrada de circo”.
Sem data para pagar
No setor automotivo, o cenário é de paralisia nas vendas de importados. Comprar um carro zero quilômetro é missão praticamente impossível. Na Avenida Libertador, que atravessa quase toda a capital argentina, as concessionárias estão praticamente vazias. Não há carros disponíveis, e os interessados não podem sequer deixar um sinal para reservar um automóvel adiante, já que não há data para entregas. A resposta é sempre a mesma: “não temos preços e não sabemos quando teremos carros”.
A alternativa dos que precisam urgentemente de um veículo é comprar um modelo nacional, embora neste caso ainda haja demora, ou optar por um usado em boas condições e preço nas alturas.
Até 2019, explica o jornalista Horacio Alonso, do jornal Ámbito Financiero, 70% dos carros que eram vendidos na Argentina eram importados. Nos últimos dois meses, os números se inverteram, e cerca de 70% das operações fechadas foram vendas de automóveis nacionais.
— Desde junho não entram carros importados na Argentina. Na teoria, foi fechado um acordo para liberar pouquíssimos modelos, com o compromisso de congelar preços, mas não sabemos se isso vai funcionar. Muitas concessionárias têm estoque, mas não querem vender porque não sabem quando poderão repor — comenta Alonso.
Existe, ainda, um problema adicional. Cerca de 70% das peças usadas em carros produzidos no país são importadas e estão sendo afetadas pelo muro às importações imposto pela Casa Rosada.
No setor de alimentos, o chamado Sistema de Importações da República Argentina (Sira), encarregado de liberar as autorizações para trazer produtos importados e pagar fornecedores externos, veta produtos acabados. Nos últimos dias, circularam informações entre distribuidores sobre uma nova metodologia do governo argentino: autorizar as operações, mas sem informar a data em que o importador argentino terá acesso aos dólares para pagar o fornecedor. Resultado, os fornecedores externos estão limitando as vendas ao mercado argentino.
— O que estão fazendo agora é uma loucura, porque autorizam algumas importações, mas não o respectivo pagamento. Isso significa que o governo que assumir em dezembro terá dívida gigantesca em matéria de pagamentos a importações atrasada. É uma bomba-relógio — alerta o economista Gustavo Lazzari.