Aliados de Jair Bolsonaro (PL) fizeram mais que vistas grossas para a atual situação do ex-presidente ao homenageá-lo com títulos honorários e apoiá-lo com declarações públicas em meio às investigações sobre ataques golpistas e desvios de joias.
De acordo com cientistas sociais ouvidos por Uirá Machado, do jornal Folha de São Paulo, os afagos vão além: representam uma “passada de pano”, uma tentativa de minimizar a gravidade de crimes cometidos contra o Estado democrático de Direito.
“A postura desses políticos que posam ao lado de Bolsonaro, que o homenageiam e que fazem elogios é, para usar o popular, uma passada de pano para golpista”, diz o cientista político Cláudio Gonçalves Couto.
Nas últimas semanas, o ex-presidente recebeu três títulos de cidadão honorário: de Goiás e de Minas Gerais, nas respectivas Assembleias Legislativas, e de Barretos (SP), na Câmara Municipal da cidade.
Além disso, ouviu elogios públicos de Ricardo Nunes (MDB), prefeito de São Paulo, que agradeceu a atuação do ex-presidente em relação à capital e declarou desejar o apoio de Bolsonaro na eleição municipal de 2024.
A questão é saber como o eleitorado vai reagir a esses gestos, que tendem a ser lembrados o tempo todo na eleição, afirma Couto, que é professor do Departamento de Gestão Pública da FGV Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas).
Para Couto, o cálculo eleitoral por trás desse tipo de movimentação é impreciso no caso de prefeitos e governadores, mas certeiro para deputados e vereadores.
A diferença é que os postulantes a esses cargos do Legislativo precisam agradar apenas a um determinado nicho da população; ou seja, eles conseguem se eleger somente com os votos de bolsonaristas.
Quem pretende comandar o Executivo, por outro lado, precisa do apoio majoritário dos votantes. E, como mostrou a mais recente pesquisa Datafolha, 68% dos entrevistados dizem não votar em candidato indicado por Bolsonaro na eleição paulistana.
“[Aproximar-se de Bolsonaro] é uma estratégia relativamente arriscada pelo momento que ele vive. Depois da pandemia, depois do 8 de janeiro e dos ataques às instituições durante o processo eleitoral, o caso das joias vem, sem nenhum trocadilho, coroar essa situação”, diz Couto.
O também cientista político Gabriel Ávila Casalecchi pondera que não se deve subestimar a força de Bolsonaro na opinião pública, apesar de ele ter sido declarado inelegível pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Casalecchi considera que políticos do campo bolsonarista vão tentar se beneficiar do capital político do ex-presidente, sobretudo em temas conservadores, ao mesmo tempo em que se afastam dos pontos tóxicos.
“A nossa sociedade é majoritariamente conservadora. Só que nem todos os conservadores são autoritários”, diz o cientista político da UFSCar.
Até por isso, na visão dele, políticos que usarem o apoio de Bolsonaro vão recusar o discurso do golpe em todos os níveis. Ou seja, vão rejeitar apoio a movimentos antidemocráticos e vão negar que o ex-presidente tenha sido golpista.
“Se perguntar para o próprio Bolsonaro, analisar as entrevistas que ele deu, ele jamais se coloca como alguém que pretendeu dar um golpe”, diz Casalecchi.
“Pelo contrário, ele diz que agiu dentro das quatro linhas, como manda a Constituição. Ele já deu a entender que o abuso não vem dele, mas das instituições”, completa o cientista político.
Para o professor da UFSCar, o perigo das homenagens e elogios está aí: dentro dos setores conservadores, eles ajudam a criar uma ideia de que Bolsonaro não fez nada grave.
“Ninguém diz que vai dar um golpe. Pelo contrário, todo mundo jura amor à democracia. Então o autoritarismo é revestido de uma linguagem democrática e vai minando as instituições por dentro e pelo discurso”, afirma Casalecchi.
Para a cientista política Camila Rocha, essa tentativa de normalizar o golpismo é muito grave e destoa da imensa maioria dos eleitores, que condena os ataques de 8 de janeiro.
“Uma coisa é alguém se dizer conservador e defender determinados valores morais; outra é defender golpe de Estado”, diz Rocha, que é pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e colunista da Folha.
Só que, quando se trata de Bolsonaro, as duas dimensões se embaralham –um problema e tanto para candidatos que não gostariam de se ver identificados com atos antidemocráticos.
“Nunes tenta fugir disso. Ele é bem escorregadio”, diz a cientista política. O prefeito de São Paulo, quando elogiou Bolsonaro, buscou se afastar de julgamentos ao afirmar que não é juiz nem policial.
Na avaliação da pesquisadora do Cebrap, Nunes está de olho no tempo de TV e na máquina do PL, que pode ajudar a dar capilaridade para a campanha com estruturas nas periferias e simpatia de igrejas.
Outro ponto que pode interessar não só a Nunes mas também aos demais políticos que mantenham proximidade com o ex-presidente são os valores que ele representa.
“A figura do Bolsonaro em si está muito desgastada por conta dos escândalos, mas o que todo mundo fala é que os valores [conservadores] ainda são importantes”, diz Rocha, que desde 2019 conduz pesquisas para entender como os eleitores do ex-presidente pensam.
A antropóloga Isabela Kalil acrescenta outro fator nessa equação contraditória. Apesar de Bolsonaro ter despencado nos rankings de popularidade digital após os escândalos, nenhum político vai dispensar o apoio dele antes de saber o que de fato vai acontecer.
Ela cita como exemplo o caso de João Doria (ex-PSDB), ex-governador de São Paulo que se elegeu com a dobradinha BolsoDoria, teve atuação elogiada na pandemia e caiu em desgraça ao se descolar do ex-presidente.
“Foi ruim para ele não só do ponto de vista do cálculo eleitoral em si, pensando que aquele eleitor que votava no Doria deixou de votar porque ele passou a ser visto como um traidor, mas também pela variável dos ataques bolsonaristas, o que não é pouca coisa”, diz Kalil.
Coordenadora do Observatório da Extrema Direita, Kalil afirma que o cenário internacional também reforça a adoção de uma postura que vá até os limites da ambiguidade.
Nos Estados Unidos, por exemplo, Donald Trump, que teve envolvimento muito mais direto nos ataques ao Capitólio, surge como uma possibilidade bastante real na disputa pela presidência.