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domingo 31 de março de 2019 às 16:17h

No Chile, a política repudia a figura de Pinochet e matiza seu legado econômico

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Nos arredores da Escola Militar, em Santiago, milhares de pessoas faziam fila para cruzar o portão de entrada. A cena foi impactante. A multidão não queria perder de vista o caixão que, envolto na bandeira do Chile, abrigava os restos mortais de Augusto Pinochet, o ditador que morreu aos 91 anos. Em 12 de dezembro de 2006, depois de dois dias de procissão, mais de 50.000 pessoas tinham desfilado diante do caixão. O corpo de Pinochet percorreu Santiago entre pétalas de rosas lançadas por seus seguidores e o desprezo de centenas de milhares de pessoas que ainda hoje consideram que a ditadura (1973-1990) foi o período mais obscuro da história do Chile.
Aquele velório foi um cartão-postal do Chile. Vivianne Banlot, ministra da Defesa da então presidenta socialista Michelle Bachelet, foi recebida com insultos e vaias no grande parque central da Escola Militar, onde aconteceu a despedida final do ditador. O Governo evitou dar honras de chefe de Estado a Pinochet, mas pouco pôde fazer para que o funeral não se tornasse um grande ato de defesa da ditadura. Os pinochetistas dizem que seu líder salvou o Chile do comunismo de Salvador Allende e defendem que seu Governo lançou as bases econômicas que tornaram o país um exemplo de livre mercado.

Quase 30 anos depois do fim da ditadura, o Chile ainda é regido pela Constituição elaborada pelo governo militar e os governos democráticos mal conseguiram tocar no texto. A herança da ditadura se sente no Chile, mas o ditador, no entanto, já não suscita as paixões do passado. Todos os anos, no dia 11 de setembro, quando o aniversário do golpe é lembrado, La Moneda [sede do Governo chileno] realiza um pequeno ato em homenagem às vítimas. Não há grandes manifestações na rua, no máximo marchas em memória de Allende.

A política, enquanto isso, pouco a pouco conseguiu se distanciar do ditador. O atual presidente, Sebastián Piñera, é um exemplo disso. Como líder da direita, o discurso de sua primeira campanha eleitoral, em 2009, defendeu o legado econômico da ditadura, mas repudiou os crimes de lesa humanidade cometidos pelo Exército. Piñera se tornou no ano seguinte o primeiro presidente de direita desde o retorno à democracia e agora está no segundo mandato. A ditadura de Pinochet (1973-1990) fez cerca de 3.000 mortos e mais de 40.000 vítimas de sequestros e tortura, segundo dados oficiais. O ditador acumulou mais de 300 causas judiciais até o fim de seus dias, mas morreu na impunidade.

É certo que as eleições do ano passado reservaram um lugar para um defensor de Pinochet e seu legado. José Antonio Kast, político da mesma UDI de Urrutia, exaltava as conquistas da ditadura “com orgulho”. Chegou a prometer que indultaria os que estivessem presos injustamente. Seguiu o modelo do candidato que tentava surfar na antipolítica que varreu o mundo. Teve até uma votação importante, de quase 8%. Mas Piñera venceu com 36% aquele primeiro turno, e disputou o segundo com Alejandro Guillier, um centro esquerda que alcançou 22%. Piñera venceu com 54,5% dos votos o segundo turno.

Os políticos que defendem abertamente o ditador são cada vez mais escassos e ficaram reduzidos a portadores de gestos isolados e de pouca repercussão. Em abril do ano passado, um mês após a posse do segundo mandato de Piñera, o deputado Ignacion Urrutia, do partido de direita UDI, falou com desprezo das vítimas da ditadura em meio a um debate no Congresso sobre reparações financeiras aos perseguidos. “Eram terroristas”, disse Urrutia. Como era de se esperar, os deputados de oposição se retiraram da sala. Mas a reação do Governo Piñera e o do seu ministro da Justiça deixou claro que essas manifestações calam fundo nos dois polos políticos.

O ministro da Justiça, Hernán Larraín, afirmou à época que as declarações de Urrutia “revelam seu desprezo aos direitos humanos, a quem foi vítima de crimes e à necessidade de reconciliação”. Do Palácio de la Moneda, coube a Gonzalo Blumel, secretário-geral da Presidência e um dos ministros mais próximos de Piñera, externar a posição do Governo: “É uma frase não só infeliz como cruel, e fere profundamente milhares de vítimas”, disse ele.

A recente visita do presidente brasileiro Jair Bolsonaro ao Chile também serviu para mostrar como o assunto é delicado e tratado com repúdio pelos chilenos. Além de manifestações na rua contra Bolsonaro – que preferiu silenciar sobre Pinochet diante de um clima hostil — o próprio Piñera encarregou-se de marcar distância com o seu par brasileiro ao dizer que ele proferia frases infelizes sobre a ditadura e fosse as vítimas desse período. “Não compartilho muito do que Bolsonaro diz sobre o tema”, concluiu. Uma das frases de Bolsonaro citadas por Piñera é o “quem procura osso é cachorro”, que ilustrava um cartaz no gabinete do então deputado que zombava de quem procurava restos mortais de familiares mortos e enterrados na região do Araguaia.

Mesmo o legado econômico de Pinochet é visto com ressalvas. Embora ele tenha criado as bases para a economia atual – vista como referência no Brasil — foi a ação da social democracia que aperfeiçoou o modelo para garantir a inclusão e a redução da pobreza, explica o cientista político Cristóbal Rovira Kaltwasser, da Universidade Diego Portales. “O verdadeiro milagre econômico só veio dos anos 90 em diante quando os governos de centro esquerda fizeram ajustes nas políticas”, conta Kaltwasser. “Na ditadura, houve crescimento médio de 3%. Já entre 1990 (primeiro ano da democracia pós ditadura) e 2007 o país chegou a crescer entre 7% e 8%”, assinala. Ele lembra, ainda, a rejeição dos chilenos à previdência privada ou à educação paga, enaltecidas nos anos Pinochet. Em 2006, estudantes chilenos pararam o país exigindo uma reforma educacional para garantir a gratuidade.

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