Pode um navio ferrugento da II Guerra Mundial, encalhado de propósito pelas Filipinas em 1999 num atol do Mar do Sul da China, desencadear uma guerra entre Pequim e Manila e arrastar Washington? A resposta é sim. Daí que o incidente de sábado, quando a guarda-costeira chinesa impediu um navio de abastecimento filipino de chegar ao local, tenha feito soar alarmes.
O BRP Sierra Madre, de cem metros de comprimento, começou a sua vida como USS LST-821, um navio norte-americano de desembarque anfíbio de tanques, que esteve ativo no Pacífico durante a II Guerra Mundial. Rebatizado USS Harnett County, e alterado para se tornar numa base para os helicópteros dos EUA, foi chamado depois a participar na guerra do Vietname. Segundo o Instituto Naval dos EUA; acabaria por ser entregue aos aliados do Vietname do Sul, tornando-se no RVNS My Tho, tendo ajudado à retirada de cerca de três mil refugiados quando Saigão caiu.
O seu destino foram as Filipinas, que já tinham reconhecido o governo comunista de Hanói, pelo que o navio só foi autorizado a atracar sob as cores norte-americanas e com a promessa de ser transferido para o controlo filipino. Antes de ser batizado com o nome de uma cadeia de montanhas do país, o Sierra Madre foi ainda o BRP Dumagat, tendo servido para o transporte anfíbio até à sua atual missão.
O navio foi atolado de propósito em 1999 para servir de base a um grupo de soldados filipinos e reclamar a soberania de Manila sobre o baixio Second Thomas (conhecido pelos filipinos como Ayungin e pelos chineses como Ren”ai), travando ao mesmo tempo a chinesa – que tinha ocupado em 1995 um recife ali perto. Este atol, que fica totalmente submerso na maré cheia, está a 200 quilómetros da ilha filipina de Padawan e a mais de mil quilómetros do ponto mais a sul da China, a ilha Hainan.
O baixio pertence às Ilhas Spratly, um arquipélago de mais de 750 ilhas e atóis que é também disputado (na totalidade ou em parte) por Taiwan, Vietname, Malásia e Brunei. Só este último não tem presença física no arquipélago, com a China a militarizar várias ilhas para fazer valer a sua pretensão territorial. Manila já fez mais de 400 queixas diplomáticas a Pequim desde 2020, devido ao que apelida de “atividades ilegais” chinesas na área.
Pequim reclama a soberania de cerca de 90% do Mar do Sul da China (ou Mar Meridional), uma das vias marítimas mais importantes do mundo, por onde passa um terço do comércio mundial e estão metade dos navios pesqueiros do planeta. Em 2016, um tribunal de Haia decidiu que os chineses não tinham qualquer base legal para as suas reivindicações territoriais. Mas eles ignoraram essa decisão, aumentando a presença na região. Os norte-americanos conduzem frequentemente exercícios de liberdade de navegação na área, ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar.
O incidente de sábado surge numa altura em que as Filipinas estão a reforçar os laços com os EUA. Durante a presidência de Rodrigo Duterte, Manila aproximou-se mais de Pequim, mas a chegada ao poder de Ferdinand Marcos Jr. em junho de 2022 alterou a situação, com a reaproximação a Washington – e a disponibilização de quatro novas bases para os militares norte-americanos. Os dois países têm um Tratado de Defesa Mútua desde 1951, que pode ser ativado em caso de ataque contra navios filipinos em qualquer parte do Pacífico.
Manila acusou a Guarda Costeira chinesa de violar a lei internacional ao bloquear a passagem de um dos navios de reabastecimento responsáveis por levar alimentos, água e combustível aos militares que estão no Sierra Madre, usando inclusive canhões de água (já o tinham feito também em 2021).
Pequim, por seu lado, acusou os filipinos de quererem entregar material de construção para reparar o navio ferrugento, e alegou que Manila fez repetidas promessas de o rebocar. “Passaram 24 anos, as Filipinas não só ainda não rebocaram o navio de guerra, como tentaram repará-lo e reforçá-lo em larga escala para permitir uma ocupação permanente do recife de Ren”ai”, disse um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês.
“Nós nunca vamos abandonar Ayugin”, responderam os filipinos, que chamaram o embaixador chinês para consultas, tendo sido impossível contactar Pequim durante o incidente. EUA, União Europeia, Austrália e Japão expressaram o seu apoio às Filipinas e preocupação em relação às ações chinesas. Washington, que considera Pequim a maior ameaça à sua segurança nacional, lembrou ainda que qualquer ataque armado contra as Filipinas pode levar a desencadear o tratado de defesa mútuo.