Depois de oito meses e algumas vitórias conquistadas em um Congresso dominado pela oposição, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda encontra na bancada evangélica a sua principal barreira no Parlamento. Embora tenha conseguido aprovar projetos importantes na área econômica e avançar na articulação política, com a entrada do Centrão no governo, o petista vê o segmento se virar contra uma resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que sugere a legalização do aborto e da maconha no Brasil, dentre outras medidas. O texto do colegiado, vinculado ao Ministério da Saúde, não tem efeito prático, já que se tratam de recomendações. Apesar disso, ele deu origem a pelo menos oito propostas legislativas para barrar eventuais tentativas de mudanças em temas caros ao segmento religioso.
As sugestões contidas na resolução foram publicadas em 20 de julho, após a reunião do conselho, que tem como missão sugerir ao governo a implementação de projetos, sobretudo demandas da sociedade, e fiscalizá-los. As propostas contrárias começaram a surgir na Câmara desde então e preveem a suspensão dos “efeitos” do texto.
O conselho é formado por 48 integrantes, entre representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários. Atualmente, conta com seis funcionários do Ministério da Saúde, entre eles, a ministra Nísia Trindade. O texto elaborado pelo colegiado no mês passado tem como objetivo orientar o Ministério da Saúde na formulação do Plano Plurianual (PPA) e do Plano Nacional de Saúde (PNS).
Repúdio nas redes
Procurado pelo O Globo, o Ministério da Saúde reiterou o caráter sugestivo do CNS e informou que a entidade “cumpre a legislação e a Constituição sobre os temas citados e que a atual gestão não tem projetos de alteração das normas em vigor”.
Por se tratarem de aconselhamento, os itens apresentados pelo conselho não precisam ser adotados pelo governo. Ainda assim, a iniciativa gerou críticas de parlamentares, sobretudo da ala religiosa, nas redes sociais: 44% dos deputados do segmento repudiaram a resolução.
Alguns integrantes de partidos da base de Lula assinaram projetos para derrubar a resolução 715. Entre os deputados que se manifestaram por meio de proposições legislativas, há 17 filiados ao MDB, PSD e União Brasil que, juntos, lideram oito ministérios na Esplanada petista.
A reação ocorre após Lula fazer vários acenos aos evangélicos. O governo, por exemplo, apoiou o movimento para inserir na Reforma Tributária a extensão da isenção de impostos das igrejas para “associações beneficentes e assistenciais”, o que beneficiou organizações de líderes do grupo. O O Globo levantou 40 entidades filantrópicas, casas de repouso e instituições de ensino atreladas aos templos dessas lideranças religiosas abarcadas pela medida, que foi aprovada pela Câmara e está em tramitação no Senado.
A emenda aprovada pela Câmara foi resultado de um acordo com a bancada evangélica da Casa e recebeu o apoio dos ministros Fernando Haddad (Fazenda), Jorge Messias (Advocacia-Geral da União) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais).
Falta de diálogo
Somente um dos projetos motivados pela resolução, de autoria de Cezinha de Madureira (PSD-SP), um dos parlamentares evangélicos que se mostrou mais aberto a Lula, reuniu dez assinaturas. Em um trecho da proposta, congressistas criticam o conselho da Saúde:
“É nosso dever parlamentar proteger os valores e princípios que sustentam nossa sociedade, como o respeito à vida, a família e a moral. Nesse sentido, consideramos que a resolução em tela vai de encontro a esses princípios, ao tratar de questões que estão sujeitas a amplas discussões e debates, inclusive no âmbito deste Poder Legislativo, uma vez que não se trata de mera regulamentação”, argumenta Cezinha.
Em entrevista ao O Globo, o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), classificou a Resolução 715 como um dos motivos de resistência ao presidente petista:
— Há falta de diálogo antes das decisões. A resolução é completamente absurda e na contramão do Congresso. Se o governo tivesse dialogado não teria a necessidade de ter dezenas de projetos para derrubar (o texto) — disse o deputado.
A ofensiva contra o Conselho Nacional de Saúde também ocorreu em pronunciamentos e postagens nas redes sociais. De acordo com levantamento da consultoria Arquimedes, feito a pedido do O Globo, entre os dias 20 de julho e 6 de agosto, 27 mil postagens sobre o tema foram publicadas no Twitter.
Da Assembleia de Deus, Clarissa Tércio (PP-PE) é uma das 43 deputadas ligadas à igreja que criticaram o governo. Em postagem, a pernambucana caracterizou as sugestões feitas pelo CNS como “previsíveis”:
“Infelizmente isso é só o começo do que vem pela frente porque na verdade, essas pautas sempre foram prioritárias para esse desgoverno Lula”, disse.
Já o segundo vice-presidente da Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), distorceu a medida e afirmou que as sugestões se tratavam de prioridades do governo Lula. Em postagem, enumerou os pontos da resolução que falam sobre as legalizações de hormonoterapia em adolescentes transexuais a partir dos 14 anos e aborto no país: “Tenebroso”.
A repercussão negativa não se restringiu apenas ao Congresso Nacional. Deputados estaduais e ex-ministros de Jair Bolsonaro engrossaram o coro das críticas a Lula. Marcelo Queiroga, que foi ministro da Saúde entre 2021 e 2022, afirmou que na gestão dele “esse tipo de medida não proliferava”:
— Nós somos contra o aborto.
De acordo com a Arquimedes, 97% das postagens sobre a resolução foram feitas por apoiadores de Bolsonaro. A de maior repercussão é de autoria do deputado e ex-ministro Osmar Terra, que além de bolsonarista, integra a bancada evangélica.
— O que a ministra da Saúde (Nísia Trindade) está fazendo pela saúde do Brasil, além de querer legislar sobre liberar drogas e permitir o aborto? — questionou em vídeo que obteve mais de 67 mil visualizações nas redes sociais.