No auge da pandemia, enfrentando uma depressão, Paula* decidiu voltar para seu Estado natal para ficar perto da família, continuando a realizar seu trabalho no IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) à distância, como milhões de brasileiros naquele momento.
Passado o pior momento da crise sanitária, ela teve a possibilidade de continuar em trabalho remoto integral, seguindo as regras do Programa de Gestão implementado pelo órgão em 2021.
Entre os fatores que a fizeram querer continuar em teletrabalho, ela cita uma redução do custo de vida, ao trocar o Rio de Janeiro pela cidade de seus pais; um espaço de trabalho mais confortável, ao investir em equipamentos e mobiliário melhor do que dispunha no escritório; e um ganho de produtividade, após o IBGE criar um sistema de comunicação interno eficiente, que, segundo ela, possibilitou uma melhor integração entre funcionários de diferentes áreas do instituto de pesquisa.
“A pandemia impulsionou uma transformação digital dentro do órgão, que não teria acontecido se não fosse o trabalho remoto”, acredita a servidora, que pediu para ter seu nome preservado.
“Acredito que o teletrabalho é um caminho sem volta, inclusive porque [uma reversão dessa política] poderia acelerar aposentadorias”, diz a funcionária.
A questão é sensível no IBGE, pois o instituto perdeu mais de 40% de seus servidores efetivos nos últimos 12 anos devido a fatores como falta de concursos e baixos salários, e cerca de 24% dos efetivos restantes estavam aptos a se aposentar, segundo informações da Assigbe, sindicato dos trabalhadores do instituto.
Dos atuais 3.922 servidores do IBGE, 26% estão em trabalho remoto integral e 21% em trabalho remoto parcial (comparecendo duas ou três vezes por semana ao escritório), enquanto 53% estão no presencial, segundo dados de junho do Programa de Gestão do instituto.
A servidora do IBGE é uma de milhares de funcionários públicos federais brasileiros que aderiram ao teletrabalho durante a pandemia e atualmente vivem sob incerteza.
Isso porque o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) revogou em janeiro uma norma editada em dezembro pela gestão Jair Bolsonaro (PL) sobre teletrabalho na administração federal.
Desde então, o governo vem adiando seguidamente a publicação de uma nova regra, situação que gera insegurança para trabalhadores atuais e para quem pretende prestar concurso público, dizem sindicalistas de entidades representantes do funcionalismo ouvidos pela BBC News Brasil.
Com salários achatados por sete anos sem reajustes – cujas perdas não foram plenamente repostas pela correção de 9% sancionada por Lula em abril –, os sindicatos também temem que eventual endurecimento das regras possa levar à saída de servidores, especialmente em áreas sensíveis, como tecnologia da informação (TI).
Afirmam ainda que a falta de regras claras impede órgãos públicos de tomar decisões que poderiam reduzir custos para o governo federal, como devolver prédios alugados ociosos.
Procurado, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI), liderado pela economista Esther Dweck, informou em nota que a regulamentação do teletrabalho “tem sido prorrogada em decorrência da necessidade de reflexão por parte dos dirigentes do ministério quanto aos aspectos do Programa de Gestão e Desempenho (PGD)”.
“O PGD envolve a mudança de cultura organizacional de uma forma de gestão baseada no controle da presença física do servidor para o controle sobre suas entregas e resultados. Toda mudança de cultura requer reflexão e debates”, acrescentou a pasta, que não informou a parcela atual geral de servidores em teletrabalho (leia mais detalhes da resposta abaixo).
Cronologia do impasse
Como no restante da economia brasileira, o teletrabalho foi implementado às pressas na administração pública federal, em meio à pandemia de covid-19.
Segundo a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do então Ministério da Economia, o trabalho remoto dos servidores federais durante a pandemia gerou economia de R$ 1,4 bilhão aos cofres públicos de março de 2020 a junho de 2021. O valor considera gastos como diárias (valores pagos a servidores para despesas durante viagens a trabalho); passagens e locomoção; energia elétrica; água e esgoto; e cópias e reprodução de documentos.
Em maio do ano seguinte, o governo Bolsonaro publicou um decreto regulamentando o teletrabalho e o controle de produtividade no Executivo Federal (Decreto 11.072/2022).
Esse decreto estabeleceu as bases do chamado Programa de Gestão e Desempenho (PGD) para órgãos da administração direta – como secretarias e ministérios –, autarquias e fundações da administração federal. Empresas públicas e de economia mista não estão incluídas, mas têm autonomia para estabelecer programas semelhantes, segundo o Ministério da Gestão.
Ao fim do ano passado, já com Bolsonaro derrotado nas urnas, o governo publicou uma norma (Instrução Normativa 89/2022) com mudanças no Programa de Gestão, como um limite de 20% de servidores em teletrabalho integral por órgão e permanência máxima de até 3 anos na modalidade.
As limitações geraram crítica generalizada entre os sindicatos do funcionalismo, que argumentavam que a mudança estava sendo imposta sem debate com os órgãos envolvidos e os servidores.
Com Lula empossado, o novo governo revogou logo em janeiro a regra que havia sido apresentada em dezembro pela gestão Bolsonaro, dando um prazo de 90 dias para publicação de nova norma.
Sucessivos adiamentos
“Passaram-se os 90 dias, o governo disse que precisaria de mais 30. Passaram-se os 30, o governo pediu mais 30. Passaram-se os outros 30 e o governo pediu mais 45 dias para normatizar a questão”, lembra Bruno Perez, coordenador na Assibge.
Agora, o novo prazo para publicação da normativa é 27 de julho. Mas o Ministério da Gestão não respondeu se a data será mantida ou se poderá ser necessário novo adiamento.
“Não sabemos até que ponto vão ser mantidas ou ampliadas as modalidades de teletrabalho, isso impõe uma dificuldade de planejamento para a administração pública e para os próprios servidores”, avalia Perez.
“Entendemos que [a regulamentação] é uma questão bastante complexa, então é normal que tenha uma certa demora, mas seria importante que os servidores fossem consultados, o que não aconteceu até o momento”, afirma.
Questionado sobre a crítica, o Ministério da Gestão afirma que “há diversos canais de comunicação com os servidores, como grupos de WhatsApp, FAQ [sessões de perguntas frequentes] e e-mail, disponíveis no site do PGD para atendimento de todos os servidores interessados em contribuir com as reflexões sobre o tema” e que “tem realizado reuniões com alguns servidores para discutir aspectos do programa”.
Divisão entre servidores: viés geracional?
Othon Pereira Neves, secretário-geral do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Distrito Federal (Sindsep-DF), diz compreender a dificuldade do governo para apresentar a nova regulação e observa que a questão do teletrabalho é polêmica mesmo entre os próprios servidores.
“Tem gente radicalmente contra e outros favoráveis”, diz Neves, que observa haver um certo viés geracional nessa divisão.
“Os mais antigos não querem nem saber [de teletrabalho], acham que tem que ser tudo presencial, enquanto os novos preferem ficar em casa, porque as novas gerações já nasceram com as novas tecnologias. Então a regulamentação vai precisar buscar um equilíbrio”, afirma.
Ele observa, porém, que faltam ao governo estatísticas centralizadas sobre a situação atual do teletrabalho na administração federal para auxiliar nesse processo de regulamentação.
Questionado sobre qual é a parcela atual de servidores em teletrabalho, perfil desses servidores e se há estudos sobre a produtividade do trabalho na modalidade, o Ministério da Gestão respondeu: “Sobre as informações consolidadas, investe-se atualmente em ações de monitoramento, porém ainda não é possível apresentar todos os dados solicitados.”
Wagner Dias, diretor do Sinagências, entidade que representa os servidores das agências nacionais de regulação, avalia que o teletrabalho veio para ficar e defende que a nova norma contemple também medidas para garantir o bem-estar dos servidores em trabalho remoto.
“O teletrabalho foi uma experiência exitosa, que levou a administração pública a uma economia de recursos, mas essas despesas passaram a ser arcadas pelo servidor, então é preciso que isso seja observado, para que esse servidor seja ressarcido pelo uso de seus recursos particulares para desempenhar suas funções”, defende Dias.
Segundo o Ministério da Gestão, estima-se que a economia com servidores em teletrabalho “varia de R$ 800 a R$ 1.200 por mês, por servidor, conforme o órgão”.
A BBC News Brasil também questionou a pasta sobre as críticas de trabalhadores de que a falta da nova normativa criaria insegurança para trabalhadores atuais e para quem está prestando concurso.
A reportagem mencionou ainda o temor de que possa haver perda de quadros em áreas críticas como TI, caso haja um endurecimento das regras com relação ao teletrabalho, mas o ministério não respondeu a esses questionamentos.
Questão urbana
O imbróglio com relação ao teletrabalho no funcionalismo não se resume, no entanto, à falta de uma nova regulamentação.
Em fevereiro, o trabalho remoto em estatais como a Petrobras foi motivo de troca de farpas entre o atual presidente da petroleira, Jean Paul Prates, e o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que tem defendido a volta ao presencial, como parte de esforço para revitalização do centro do Rio.
O embate aconteceu após Paes compartilhar reportagem na qual o presidente da Petrobras dizia que iria apoiar o Rio na recuperação de sua região central.
O conflito revela outro aspecto do impasse: o impacto da mudança sobre a dinâmica das cidades.
O debate não é exclusivo do Brasil. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a prefeita de Washington (EUA), Muriel Bowser, em discurso em janeiro, ao tomar posse para seu terceiro mandato, alertou o governo Joe Biden de que o trabalho remoto estaria “matando a capital dos EUA”.
“Com boa parte do funcionalismo público ainda trabalhando de maneira remota, as regiões centrais da capital americana nunca se recuperaram do choque da covid-19 e permanecem esvaziadas. Com isso, bares e restaurantes fecharam, cafés reduziram o horário de funcionamento e a prefeitura se preocupa com a capacidade de arrecadação”, relata a reportagem.
Com preocupações similares, Paes insiste na volta ao trabalho presencial pleno em estatais como Petrobras, BNDES e Furnas desde o governo Bolsonaro.
Questionada, a Petrobras afirma que oferece a possibilidade do trabalho híbrido, com até três dias de trabalho remoto, para empregados que atuam no regime administrativo.
Segundo a empresa, atualmente cerca de 25 mil pessoas estão aptas a aderir ao modelo híbrido, mediante aprovação gerencial, e 21,9 mil empregados já aderiram – a empresa somava 44,8 mil funcionários em 2022, de acordo com um relatório do governo. A estatal também aprovou recentemente a possibilidade de teletrabalho por cinco dias na semana para empregados com deficiência.
Ainda conforme a petroleira, do total de empregados que aderiu ao trabalho híbrido, 15,4 mil estão lotados no Estado do Rio de Janeiro. Segundo a empresa, os empregados da Petrobras estão espalhados por diversos prédios na cidade do Rio, sendo um deles no centro do município.
“Entendemos que o modelo híbrido de trabalho é bastante adequado à realidade de quem atua no regime administrativo na Petrobras, possibilitando capturar o melhor dos dois mundos: atividades que se beneficiam das interações entre as pessoas no trabalho presencial e atividades que requerem tempo de foco no trabalho remoto”, disse a estatal em nota.
“Neste momento, a empresa não avalia o retorno ao trabalho 100% presencial para empregados do regime administrativo”, completou a petroleira
Procurada, a Prefeitura do Rio não respondeu a pedido de comentário.
Apesar do problema do esvaziamento dos centros urbanos, pesquisas mostram que também há impactos considerados bastante positivos do trabalho remoto do funcionalismo para as cidades – principalmente, com relação à melhoria das condições de tráfego urbano.
Um estudo publicado em 2016 pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), por exemplo, estimou que cada 10% do total de servidores brasileiros que passam para o teletrabalho representam redução de até 0,5% nos deslocamentos realizados por ano em todo o país e de 0,6% nas emissões de gás carbônico por automóveis e motos decorrentes dessas viagens.