A brasileira Thaiza Maria Silva Farias foi selecionada, em 2016, por uma empresa de Frankfurt, na Alemanha, para trabalhar como enfermeira em um hospital em Darmstadt, no sudoeste do país.
Recém-formada e ainda sem nenhuma experiência no mercado de trabalho, ela não pensava em viver no exterior naquele momento. Mas, ao ver a vaga no Facebook, a ideia de aprender outro idioma e trabalhar na Europa ganhou força.
O dono da empresa de recrutamento foi ao Rio de Janeiro, onde ela morava, entrevistou alguns candidatos e selecionou um grupo para levar ao país europeu.
“Fomos um dos primeiros grupos de enfermeiros brasileiros escolhidos por essa empresa. As entrevistas foram bem casuais, em um grupo com seis ou sete pessoas. Depois recebi um e-mail com a aprovação”, conta à BBC News Brasil.
O processo foi rápido e os candidatos iniciaram aulas intensivas de alemão, de segunda a sexta-feira, sete horas por dia. Eles precisavam atingir o nível intermediário 2 (B2) no idioma — o mínimo exigido para profissionais de saúde na Alemanha — o mais rápido possível para validarem seus diplomas e começarem a trabalhar.
O curso foi pago pelo recrutador, que ofereceu uma bolsa para que os selecionados focassem no estudo do idioma.
Esse tipo de recrutamento de profissionais de saúde no exterior tem se tornado comum na Alemanha porque faltam enfermeiros no país europeu, em especial em cidades menores ou em lares para idosos. E o governo tem enfrentado dificuldades para suprir essa demanda apenas com indivíduos formados no país.
Além disso, as profissões de enfermagem na Alemanha tendem a envolver uma formação “puramente profissional”, algo como um curso técnico no Brasil. Apenas cerca de 1% a 2% dos enfermeiros formados lá possuem licenciatura.
Os defensores da licenciatura concomitante ao bacharelado no estudo de Enfermagem apontam que as habilidades de ensino auxiliam na função do profissional de promover educação em saúde para a equipe de saúde e para a sociedade em geral.
Em 2022, havia um total de 146 mil enfermeiros generalistas em treinamento na Alemanha, segundo o Escritório Federal para Estatísticas (Destatis). Cerca de 52,3 mil desses aprendizes começaram seus estudos no ano passado, uma queda de 7% (ou 4 mil pessoas) na comparação com 2021.
Ao todo, 4,9 mil enfermeiros treinados no exterior atuavam no país europeu em 2017. Em 2021, esse número tinha subido para 8,3 mil. Ainda não há dados para 2022 e 2023.
Nesse contexto, os ministros do Trabalho e das Relações Exteriores da Alemanha estiveram no Brasil em 5 de junho, em uma missão para estimular o recrutamento de enfermeiros.
Em junho de 2022, o governo alemão, por meio de sua agência federal de empregos, assinou um contrato com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), no Brasil, que permite ao país contratar esses profissionais brasileiros.
O governo alemão planeja selecionar 700 enfermeiros brasileiros por ano, segundo o Cofen.
Cerca de 200 já trabalham na Alemanha por meio deste acordo e outros 374 estão finalizando os cursos de alemão.
O acordo prevê que as condições de trabalho dos brasileiros seguirão as regras da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“O acordo é entre órgãos federais dos dois países e não com empresas privadas. (….) Garante proteção no trabalho, relações trabalhistas justas e éticas, garantia para a possibilidade de crescimento de salário e de conhecimento, além de férias e descansos”, explica Alberto Cabral, assessor legislativo do Cofen.
Os selecionados passarão três anos trabalhando sob supervisão e orientação dos empregadores. Após esse período, uma avaliação de desempenho decidirá se eles poderão continuar atuando no país de forma definitiva.
Como funciona o processo seletivo?
Os requisitos mínimos para os interessados são um diploma de Bacharel em Enfermagem e a carteira verde do Cofen.
Segundo o governo alemão, o recrutamento de enfermeiros pode ser realizado tanto pelo Estado quanto por empresas privadas.
No governo, a seleção é feita via a Agência Central de Colocação Internacional e de Especialistas (ZAV) da Agência Federal de Emprego, “antes mesmo de ter sido estabelecida uma equivalência da qualificação profissional adquirida no estrangeiro com uma ocupação de referência.”
Empresas privadas podem recrutar, mas o Ministério da Saúde alemão destaca que os candidatos devem escolher companhias com o selo de “recrutamento justo”.
Isso significa que o “recrutamento é transparente, compreensível e justo. Isso também dá aos candidatos a garantia de que o recrutamento é gratuito para eles, incluindo cursos de idiomas, uma vez que todos os custos são suportados pelo futuro empregador.”
O governo alemão mantém uma página em português com informações para os interessados, com o passo a passo da inscrição.
E pela seleção via governo, a ZAV organiza todo o processo, inclusive com instruções e traduções da documentação necessária para serem entregues ao órgão de reconhecimento de diplomas na Alemanha.
Os custos desse processo são pagos pelo empregador e uma bolsa de 500 euros mensais (cerca de R$ 2,6 mil) também é oferecida para que os selecionados estudem o idioma com dedicação total.
Ao atingirem o nível B2, os selecionados recebem passagens de avião e acomodação na Alemanha até a validação do diploma.
“Especialistas em enfermagem com diplomas ou qualificações em países terceiros, como o Brasil, têm oportunidades muito boas de encontrar empregos como especialistas médicos ou enfermeiros na Alemanha. Vocês são muito bem vindos”, diz à BBC News Brasil o Ministério da Saúde alemão.
Salários
Os salários na Alemanha podem ser até cinco vezes maiores que no Brasil. O acordo, afirma Cabral, prevê um pagamento inicial de 2.800 euros por mês (R$ 14.600 mil) — após descontos de impostos e seguro de saúde —, com a possibilidade de aumentos e promoções na carreira.
Segundo Farias, outros fatores podem aumentar esse valor como a experiência do profissional, plantões com adicional noturno, e os planos de carreira de cada hospital.
O salário pode ser atrativo, mas Faria destaca que a mudança não é simples.
Quando a enfermeira estudava alemão, a bolsa era de apenas 300 euros por mês (cerca de R$ 1,5 mil em valores atuais).
“Eu só consegui completar o curso porque eu morava com a minha mãe e não tinha tantas despesas. Essa bolsa cobria alguns custos como transporte, mas quem não tinha apoio não conseguia se sustentar só com isso.”
Outro ponto importante é que antes da validação do diploma ser oficializada na Alemanha, Faria e outros colegas trabalharam como auxiliares de enfermagem. O salário para essa posição era de 1.300 euros por mês (R$ 6.800 mil em valores atuais). O valor pode ser elevado em reais, mas é preciso considerar que os custos de vida são em euros.
A adaptação ao idioma também não pode ser ignorada.
“Aquilo que estudamos no Brasil não é o suficiente para se comunicar com a equipe no hospital. Precisamos aprender muitos termos técnicos e isso só se consegue em curso específico ou no hospital”, afirma Farias.
Essa dificuldade com o idioma, explica a enfermeira, pode causar tensões no ambiente de trabalho.
“Tem gente que é bem recebida pela equipe e outras não. Eles [enfermeiros alemães] não entendem que temos licenciatura e ficam muito inseguros. Acham que podemos causar riscos aos pacientes. As equipes ainda não estão preparadas para receber a gente. Eles ficam frutados porque esperam alguém que já entenda e saiba fazer tudo, mas há um processo de aprendizado e adaptação.”
Como fica o Brasil?
Dados do Cofen mostram que o Brasil tem quase 3 milhões de profissionais de enfermagem registrados, o que inclui técnicos, auxiliares e enfermeiros. Apenas enfermeiros são mais de 700 mil.
Já o Destatis registra pouco mais de 1 milhão de trabalhadores de enfermagem na Alemanha.
O número de enfermeiros no mercado do Brasil é um dos argumentos utilizados pelos alemães para recrutar profissionais em terras brasileiras.
A população do Brasil (mais de 210 milhões), no entanto, é mais que o dobro da alemã (mais de 80 milhões).
Segundo o Ministério da Saúde alemão, o governo federal “deixou claro” que só recrutaria esses profissionais em locais onde o “treinamento excede em muito” as necessidades do mercado local.
O órgão ainda afirma ter realizado estudos sobre o mercado de trabalho brasileiro antes de iniciar recrutamentos e que só o faz com a autorização das autoridades locais.
Para Cabral, o recrutamento de enfermeiros pela Alemanha “não é prejudicial” ao Brasil.
“A quantidade de profissionais que o governo alemão quer levar é insignificante para o número de enfermeiros que temos aqui. Além disso, formamos muitos profissionais por ano. E, em muitos casos, os salários aqui são aviltantes.”
Na Alemanha, completa, não existe somente melhores perspectivas salariais, mas a oportunidade de se aprender um novo idioma e ter contato com novas práticas, tecnologia e conhecimento.
O Cofen foi convidado a visitar a Alemanha em novembro deste ano para realizar uma vistoria nas condições de trabalho oferecidas aos enfermeiros brasileiros.
“Vamos fiscalizar hospitais em três cidades onde brasileiros atuam para analisar se o acordo de cooperação está sendo cumprido”, diz Cabral.