A primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, discordou do ministro da Defesa, José Múcio, e foi contra a possibilidade de o Exército atuar via GLO (Garantia da Lei e da Ordem) na contenção dos golpistas que depredaram as sedes dos três Poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro.
Janja estava ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quando o petista falou ao telefone e ouviu do ministro a sugestão. A primeira-dama reagiu: “GLO não, GLO é golpe, é golpe”. Lula decidiu decretar intervenção na segurança do Distrito Federal.
Segundo matéria de Victoria Azevedo, na Folha de S. Paulo, esse episódio é narrado no livro “Janja – A Militante que se Tornou Primeira-Dama”, de Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo, autores de “Todas As Mulheres dos Presidentes”, que conta a história de 34 primeiras-damas brasileiras. A obra será lançada no dia 11.
Dividido em nove capítulos, o livro traça um perfil de Janja, da época da militância na juventude (ela se filiou ao PT aos 17 anos) aos primeiros meses do terceiro mandato de Lula. Além de entrevistas e de pesquisa dos autores, o livro faz referência a reportagens da imprensa e a publicações da primeira-dama nas redes sociais.
No prefácio, os autores afirmam que não se trata de uma biografia completa da socióloga, mas que a proposta é “revelar quem é Janja” para além da imagem “que o PT construiu para ela”. Eles citam pedidos de entrevistas declinados e “rígido controle de acesso” à primeira-dama e às pessoas do seu entorno.
O livro cita o momento em que a socióloga conheceu Lula pessoalmente. Foi entre fevereiro e março de 1994, numa edição das Caravanas da Cidadania no Sul do Brasil. Na ocasião, Janja era ligada ao diretório do PT de Ponta Grossa, no Paraná, e morava na cidade com o historiador Marco Aurélio Monteiro Pereira, com quem se relacionou, sem casar formalmente, por mais de uma década.
Janja e Lula também se encontraram algumas vezes durante o período em que a socióloga trabalhou em Itaipu. Os autores registram palestra do petista que ela organizou para a turma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia, da ESG (Escola Superior de Guerra), da qual fazia parte —ela tinha conseguido uma licença remunerada de um ano da hidrelétrica para participar do curso, no Rio de Janeiro.
A palestra ocorreu em 29 de julho de 2011, sete meses após o petista deixar a Presidência, e teria desagradado militares.
Quando terminou o curso na ESG, Janja conseguiu sua cessão para trabalhar na sede da Eletrobras, no Rio, onde ficou até 2016. No período, foi eleita conselheira fiscal da CGTEE (Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica) e da CTEEP (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista).
Os autores estimam que Janja teria recebido cerca de R$ 130 mil da CGTEE para participar de 54 reuniões em quatro anos e meio. A CTEEP não informa os valores individualizados pagos a conselheiros.
Segundo o livro, a relação romântica de Lula e Janja começou após um jogo de futebol organizado pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), em São Paulo, em dezembro de 2017. Em março de 2018, Janja acompanhou Lula como sua namorada numa caravana pelo Sul do país —a pedido do petista a “equipe estava proibida de fazer menção ao assunto”.
Lula foi preso em abril daquele ano. Segundo os autores, Janja esteve no prédio do Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo, no dia em que ele se entregou à Polícia Federal para se despedir do namorado.
Janja se tornou figura presente na vigília montada em frente à sede da Superintendência da PF em Curitiba e manteve perfil discreto. O namoro se tornou público em maio de 2019, quando Janja já tinha visitado o petista na cadeia cinco vezes —a primeira teria ocorrido em 18 de abril.
Os encontros com parentes aconteciam às quintas-feiras e duravam, em média, uma hora. Parte do horário da família foi cedido à namorada (o casal não tinha direito a visita íntima).
Lula foi solto em novembro de 2019. Pouco dias depois, Janja aderiu ao Programa de Demissão Voluntária da Itaipu. No primeiro ano da pandemia da Covid-19, a socióloga apareceu somente duas vezes em frente às câmeras. Atuava nos bastidores, tinha o controle da agenda de Lula e opinava sobre pedidos de entrevista.
O livro diz que a “atitude discreta” era um pedido do PT. A jornalista Nicole Briones, que era responsável pelas redes sociais do petista, “temia que a presença de Janja fosse usada pelos bolsonaristas”.
A obra aponta atritos da primeira-dama com o partido por conta de sua exposição —e diz que em dezembro de 2020 Janja “começou a dar sinais de que não iria seguir aquele roteiro por muito tempo”.
Naquele mês, acompanhou Lula em viagem a Cuba, onde ele participaria das gravações de um documentário —o Brasil vivia a segunda onda da pandemia. “A divulgação da viagem era tudo o que o PT não queria. Janja, no entanto, publicou cinco posts.”
Em outra passagem, o livro diz que “Janja não gostou” de não ter aparecido em registros do encontro de Lula com o presidente da França, Emmanuel Macron, no fim de 2021, “por decisão da assessoria do petista”.
Nicole Briones, mais tarde, foi demitida “após perder a queda de braço com Janja”. “Daí para frente, a socióloga só fez aumentar sua presença nos eventos da vida real e digital.”
A participação ativa da primeira-dama na campanha causou estranhamento entre lideranças do partido, “ciosas do controle do entorno de Lula”.
O livro narra uma visita de Lula a uma feira de agricultura familiar em Natal. Nela, o petista foi “agarrado por vários militantes”, o que fez com que Janja se irritasse e pedisse que a visita fosse interrompida, “deixando correligionários contrariados”. “A partir do incidente, o acesso a Lula tornou-se mais controlado.”
Os autores, por sua vez, enaltecem a participação da socióloga no processo eleitoral, afirmando que ela “trouxe jovialidade à campanha” e que foi responsável por reaproximar o PT de segmentos da sociedade que estavam afastados do partido.
A obra também mostra a atuação de Janja na transição (na organização da posse e em sua influência na montagem do ministério de Lula) e sua participação ativa no dia a dia da política nos primeiros meses de governo —frequentando reuniões, assumindo tarefas e endossando pautas.
Procurada pela Folha, a assessoria de imprensa da primeira-dama disse que o livro “não contou com apoio ou a participação de Janja, nem de seus familiares ou amigos mais próximos”.
“A julgar pelos trechos publicizados anteriormente, é possível inferir que há diversas passagens que podem ser questionadas por imprecisões nos fatos e exageros nas interpretações, além do uso de fatos públicos e facilmente verificáveis em ilações”, afirma a nota.
A assessoria disse ainda que, ao ser procurada pelos autores, Janja registrou “que não achava apropriado ser motivo de um perfil como primeira-dama sem sequer ter se iniciado o terceiro mandato do presidente Lula”.
“A publicação precipitada do perfil tende a deixar de lado a devida reflexão sobre sua atuação profissional e política ao lado do presidente.”