Ao contrário de 44% dos entrevistados pela pesquisa Ipec, que disseram acreditar que o Brasil pode virar um país comunista, nem mesmo tradicionais militantes marxistas têm essa esperança. Um deles é o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), para quem essa ideia foi resgatada pelo bolsonarismo como uma espécie de assombração.
“Parece um surto coletivo de pessoas que acreditam nos fantasmas que são divulgados sistematicamente por Jair Bolsonaro. Mas isso não está no horizonte”, disse ele, em entrevista à coluna de Chico Alves, do Uol.
Silva acredita que Bolsonaro se beneficiou da campanha anticomunista feita durante boa parte do século passado para utilizá-la agora a seu favor, manipulando informações dos dias atuais.
O deputado acredita que os conceitos do comunismo devem ser adaptados à realidade de cada país. No Brasil, ele sugere que o comunismo se beneficie da diversidade, que é uma marca local.
Outro ingrediente para formular um modelo de comunismo para o futuro é descartar as práticas autoritárias do Estado, um dos principais pontos de crítica de experiências anteriores.
“Isso vai exigir a radicalização da democracia. Para implementar um projeto novo é preciso de mais democracia, não menos”, acredita.
UOL – O resultado da pesquisa o surpreendeu? Acredita que há alguma remota chance de um projeto comunista vingar no Brasil nesse momento?
Orlando Silva — Não há, infelizmente. O resultado da pesquisa coincide com o da eleição, é percentual dos que votaram em Bolsonaro, aproximadamente. Parece um surto coletivo de pessoas que acreditam nos fantasmas que são divulgados sistematicamente pelo Bolsonaro. Mas isso não está no horizonte. O espectro do comunismo não ronda o Brasil. (O deputado faz uma brincadeira com a célebre frase do Manifesto Comunista “O espectro do comunismo ronda a Europa”).
Mas esse fantasma vem assombrando os brasileiros desde bem antes de Bolsonaro chegar ao poder?
Durante todo o século passado, o Brasil viveu uma forte campanha anticomunista. Mesmo no período entre 1946 e 1964, que até à redemocratização dos anos 80 tinha sido o período mais longo de regime democrático no país, o Partido Comunista foi posto na ilegalidade. E uma campanha anticomunista atravessou todo o século 21 no Brasil. Evidente que isso produz raízes profundas no seio do povo.
A ditadura militar do Brasil se ancorou em um discurso anticomunista muito forte. Então, não tenho a menor dúvida que um século inteiro desse tipo de campanha acaba penetrando na alma do povo brasileiro. E agora o que se vê é um outro tipo de abordagem, que, por exemplo, associa qualquer política mais intervencionista na economia a comunismo. Hoje, no Brasil, o bolsonarismo associa a Venezuela a comunismo. Então, eu acredito que há uma manipulação de informações no tempo presente que se beneficia de uma campanha anticomunista feita durante todo o século passado. É isso que produz esse surto coletivo de imaginar que existe o risco de implementação imediata do comunismo no Brasil.
Qual é a sua ideia de um governo com viés comunista na atualidade?
Eu sempre falo, em um tom baiano, que o comunismo para mim foi melhor descrito por José Carlos Capinam, quando escreveu uma canção chamada Viramundo. Lá para o final da música ele fala: “Ainda viro esse mundo em festa, trabalho e pão”.
É o modelo conceitual, elaborado a partir do pensamento de Marx, enunciado no século 19, que projetava a construção da sociedade em que todos trabalham e que o fruto do trabalho deve ser partilhado por todos. Não é a divisão da pobreza, é a divisão da riqueza. No capitalismo, todos trabalham, mas o fruto do trabalho é apropriado por uma pequena parte, aquela que controla os chamados meios de produção. Nós acreditamos que é necessário estruturar uma sociedade em que todos possam ser beneficiados pelo fruto do seu trabalho, na proporção em que trabalham.
No século passado houve a Revolução Russa e outras revoluções em que se tentou implementar mecanismo assim e foram derrotadas porque houve uma série de distorções. O que existe é uma tentativa liderada pela China, que tem características de um capitalismo de Estado, onde o Estado tem um peso grande.
O comunismo é o sistema em que não existe mais Estado, em que a produção de riqueza é partilhada por toda a sociedade. Esse é o modelo teórico. Mas cada país vive a sua experiência.
E como seria no Brasil?
Nossa experiência de mudança de sociedade deve ter as características brasileiras. Mas uma coisa é certa: olhando para o século passado, nós temos que acentuar os aspectos democráticos, os aspectos de participação. Talvez tenha sido uma das grandes falhas do [comunismo no] século passado.
Faltou valorizar os aspectos democráticos, os aspectos de participação, valorizar a diversidade que temos na sociedade, não adianta tentar ou homogeneizar, porque a diversidade é uma riqueza.
Um dos grandes medos quanto ao comunismo é justamente em relação ao autoritarismo, do modelo do Estado se sobrepondo à liberdade do cidadão. Um dos pontos de revisão, para o comunismo atual, seria esse?
Eu não tenho a menor dúvida que pensar um sistema mais avançado de socialismo, de comunismo, vai exigir a construção de mecanismos intensos de participação popular. Isso vai exigir a radicalização da democracia. Para implementar um projeto novo é preciso de mais democracia, não menos.