Seguimos hoje com mais um artigo da série sobre as correntes de pensamento que animaram as lutas políticas nos últimos séculos, tratando de um dos fenômenos históricos mais complexos e intrigantes da civilização moderna: o nazifascismo.
Um terremoto de grandes proporções se abateu sobre a Europa nas décadas de 1920, 1930 e início dos 40. Não é possível atribuir eventos tão trágicos que resultaram na Segunda Grande Guerra, no Holocausto e na crise econômica e social vivida no período, apenas à psicologia individual e aos atributos pessoais de Mussolini e Hitler.
O líder, seja o “Dulce” ou o “Führer”, só pode ser compreendido dentro do contexto histórico que se configurou após a Primeira Grande Guerra e a crise monumental que se abateu sobre a Alemanha e a Itália, agravada pela Grande Depressão de 1929. É intrigante entender como dois líderes desequilibrados, sem empatia pelo ser humano, carismáticos, narcisistas, ególatras, violentos, conseguiram chegar ao poder pela via da democracia parlamentar e consolidar a mais terrível experiência totalitária em toda a história moderna – esqueçamos aqui o stalinismo já objeto de artigo anterior – com impacto em todo os cantos da Terra, na mais chocante guerra vivenciada pela Humanidade.
O líder, ainda mais ditadores facínoras como Mussolini e Hitler, tem, sem dúvida, um papel crucial nos acontecimentos. Mas não chegariam e se manteriam no poder a não ser em determinadas condições históricas e obtendo consensos mínimos e apoio social em seus países.
É preciso cuidado para não generalizar o uso de fascismo para caracterizar toda e qualquer experiência autoritária de poder. No Brasil de nossos dias é comum vermos nas redes sociais, no parlamento e nas ruas, pessoas trocando gentilezas, xingando-se de “fascistas” e “comunistas”, sem nenhum rigor com o uso dos termos.
Houve o “fascismo japonês”, tema de controvérsias, sendo mais um ultranacionalismo militarista com características diferenciadas. O Generalíssimo Franco, que governou a Espanha de 1936 a 1975, tinha indisfarçável admiração por Mussolini, e recebeu apoio de Alemanha e Itália, com bombardeios e tropas, na Guerra Civil Espanhola, o que o consolidou no poder e é considerada o laboratório experimental para a Segunda Grande Guerra.
No entanto, assim como Portugal, Franco manteve posição de neutralidade na guerra, diante das pressões nazistas, francesas e inglesas. Salazar, em Portugal, compartilhava a admiração por Mussolini e suas ideias, mas não por Hitler, de quem divergia por elementos anticatólicos do líder nazista e pela perseguição aos judeus, que resultou no dramático Holocausto.
Os integralistas de Plínio Salgado no Brasil dos anos 1930 e 1940 rezavam pela cartilha fascista. Outras experiências na Europa foram abortadas pelo sucesso da luta democrática. As três experiências citadas tinham traços inegáveis de inspiração fascista, entre outros, o uso da linguagem simbólica de uma ordem nacional e social autoritária traduzida nos uniformes de seus militantes – camisas pretas para os fascistas italianos, caquis para os nazistas alemães e verdes para os integralistas brasileiros – e seus símbolos – a suástica nazista, o fascio italiano (um feixe de varas de bétula com um machado no meio) e a sigma para os fascistas brasileiros.
Outras sementes foram plantadas pela ideologia nazifascista mundo afora e sobrevivem até hoje a ameaçar a democracia. Mas a concepção nazifascista tem peculiaridades e características próprias, e não deve ser confundida com o simples autoritarismo ditatorial. Neste sentido, é um equívoco usar o termo fascismo para caracterizar, por exemplo, as ditaduras militares na América Latina ou na África, o totalitarismo fundamentalista no Oriente Médio e a onda recente de populismo autoritário de direita e de esquerda que envolve lideranças como Trump, Erdogan, Orbán, Putin, Chavez, Maduro, Ortega, Berlusconi, Salvini, Le Pen, Bolsonaro, e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni.
Há elementos semelhantes ao fascismo e ao nazismo, mas nada comparável precisamente à experiência de Hitler e Mussolini no poder, embora muitos destes líderes admirem no íntimo o Dulce e o Führer e haja uma tentativa de revisionismo histórico, levado a frente por historiadores conservadores identificados com a extrema-direita.
O nazifascismo só pode ser entendido como consequência da crise econômica e social derivada do Tratado de Versalhes, que fixou as indenizações e sanções para os perdedores da Primeira Grande Guerra, e que resultou em recessão, desemprego, hiperinflação, particularmente, na Alemanha e na Itália, e desencadeou uma grave insatisfação popular e a desmoralização da democracia parlamentar.
O maior economista do século 20 e assessor do governo inglês na negociação, J. M. Keynes, alertou premonitoriamente em seu clássico “As Consequências Econômicas da Paz”, que a Europa não se recuperaria com as condições humilhantes impostas aos derrotados e que uma grave crise se instalaria. A Itália, embora fizesse parte da coalizão vitoriosa, foi escanteada e não contemplada na divisão do espólio da guerra e isso teve uma repercussão fundamental no posicionamento de Mussolini. Keynes divergiu das posições dos países europeus vitoriosos e dos EUA, o que levou ao seu afastamento de cargos públicos por muitos anos.
Se não bastasse, o crack da Bolsa de Nova York, desencadeou, como tempero adicional, a Grande Depressão de 1929. E não esqueçamos da Revolução Soviética de 1917, erguendo o grande inimigo comum: a ameaça do internacionalismo comunista. Este ambiente foi decisivo para que Mussolini e Hitler conseguissem apoio social e político em seus países e a base para suas aventuras totalitárias e para o desencadeamento de um novo conflito em escala global.
É importante ressaltar que Mussolini e Hitler chegaram ao posto de primeiro-ministro em seus países não através de golpes , mas dentro das regras da democracia parlamentar, com a complacência de elites conservadoras que acreditavam que iriam conseguir manipular os dois futuros ditadores. É verdade que Hitler tentou um golpe em 1923, que resultou em sua prisão, onde escreveu seu livro “Minha Luta”.
Diante da crise instalada na Itália e da Marcha sobre Roma, em 1922, o Rei Vittorio Emanuele convidou o então deputado Benito Mussolini, a assumir o poder e formar um novo gabinete, após várias tentativas frustradas de estabilizar a política italiana com primeiros-ministros conservadores e liberais. De sua parte, após o fracasso da República de Weimar – coalizão de católicos, liberais e social-democratas alemães – em debelar a crise econômica e social, o presidente da Alemanha, Paul von Hindenburg, nomeou, em 1933, o líder nazista Adolf Hitler para o cargo de chanceler Alemão. Ou seja, a democracia gerou o “Ovo da Serpente”, abrindo as portas do poder que depois se converteria na trágica experiência do nazifascismo.
Mussolini e Hitler tinham identidades e diferenças. Hitler admirava o êxito de Mussolini e suas ideias, que chegou ao poder dez anos antes. Depois, assumiu o protagonismo, dada a superioridade econômica e militar da Alemanha. Ambos tinham mentes doentias, narcísicas, violentas, autoritárias e desconfiadas. Eram líderes carismáticos e excelentes oradores fazendo uso da demagogia e da insatisfação popular para encantar as massas. Mussolini era mais culto, lia vorazmente, falava três línguas além do italiano e chegou a ser editor do jornal “Avanti!” do Partido Socialista Italiano, antes de se converter ao fascismo.
Hitler era mais limitado intelectualmente, segundo seus contemporâneos. Ambos eram homens de ação, pragmáticos, focados no poder, e não teóricos. Mussolini desconfiava de Hitler e recebia o mesmo sentimento em troca. Mussolini tinha vida pessoal ativa, esposa, amantes e cinco filhos legítimos. Hitler não tinha vida pessoal ativa, seu mundo era poder.
Mussolini trabalhava mais e gostava de se envolver na gestão das questões de governo. Hitler era mais isolado e delegava o dia a dia da administração para seu círculo próximo. A relação era de aliança política e militar, mas também de competição pessoal. Mussolini custou a declarar guerra ao lado da Alemanha. Hitler se irritou com a demora do italiano e com sua desastrada tentativa unilateral e sem aviso prévio de invasão da Grécia. A vertente do nacionalismo racista era mais pronunciada na obsessão de Hitler pela superioridade ariana e o projeto de depuração racial da Alemanha e de seu entorno. A competição entre os dois está registrada de forma genial por Charles Chaplin, em sua obra-prima “O Grande Ditador”, na cena da barbearia onde cada um dos dois ditadores tenta colocar a sua cadeira mais alta que a do aliado.
Aqui já podemos retomar a pergunta essencial: afinal, o que é o fascismo? Quais são seus traços essenciais, mesmo considerando as diferenças entre a experiência alemã e a italiana?
O fascismo e o nazismo foram regimes totalitários, belicistas, ditaduras terroristas, movidos por radical nacionalismo chauvinista. Diante da profunda crise econômica e social na Europa e da insatisfação social derivada apresentavam-se em nome da ordem, para acabar com a luta de classes e unir todos em torno da Nação, materializada no Estado, no partido e no líder maior. Exterminaram a democracia liberal e parlamentar e cultivaram o fantasma da ameaça comunista, a partir da URSS.
O antissemitismo gerou a página mais trágica da Segunda Guerra, o Holocausto. O nazifascismo tinha base social de massas. Ideologicamente, o projeto nazista era mais acabado e fechado em torno do expansionismo militar para impor a superioridade da raça ariana, construindo um império de vasta dimensão territorial. Mussolini era mais volátil na construção das ideias do fascismo italiano, e como caracterizou Togliatti, parecia um camaleão, que tinha fontes ecléticas e confusas, que se adaptava às circunstâncias concretas em busca de legitimação, consentimento e consenso social.
O fascismo era sexista, atribuindo papel inferior às mulheres. Construíram um regime corporativo e subordinaram os sindicatos ao Estado e ao Partido, símbolo disto é a “Carta del Lavoro”, que serviu de inspiração para a nossa CLT. Propunha a planificação centralizada para enfrentar a anarquia da produção capitalista. Consolidaram, como ferramentas imprescindíveis para o sucesso de seu projeto, governos e partidos fortes, disciplinados, centralizados, com baixa democracia interna. Ergueram, para a chegada ao poder, forças armadas próprias, milícias que ameaçavam e intimidavam com violência lideranças políticas, sindicais e intelectuais. Visando a consolidação da hegemonia política, após a chega ao poder e a virada para o totalitarismo ditatorial, empreenderam enormes esforços, através de diversas organizações sociais e instituições, para enraizar a política e a ideologia nazifascistas, cooptando e dominando parcelas das Forças Armadas, organizações policiais, intelectualidade, sindicatos, meio artístico e cultural, juventude, segmento de lazer e esportes, meio rural e assistência social.
Para quem quiser adentrar no estudo do fascismo, particularmente as experiências alemã e italiana, recomendo a leitura dos livros: “Lições sobre o fascismo”, de Palmiro Togliatti; “As consequências econômicas da paz”; de J. M. Keynes; “Escuta, Zé Ninguém”, de Wilhelm Reich; “Fascismo, um alerta”, de Madeleine Albright; a biografia “Hitler”, de Ian Kershaw; “Mussolini, a biografia definitiva”, de R. J. B. Bosworth; e, “Fascismo à brasileira”, de Pedro Doria.