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quinta-feira 16 de março de 2023 às 11:03h

Reforma tributária prevê sistema contra sonegação e fraude, diz Bernard Appy

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“Na hora que você paga, o montante do imposto é recolhido automaticamente, vinculado ao próprio instrumento de pagamento. E a parte que é do fornecedor vai direto para o fornecedor”, antecipa o secretário extraordinário para a reforma tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy. Em entrevista a Adriana Fernandes e Anna Carolina Papp, do Estadão, Appy afirma que o mecanismo em estudo reduz o risco de sonegação e de uso de “créditos frios” – feitos por empresas laranjas para fraudar o Fisco.

Adotado por vários países, o modelo IVA permite que cada etapa da cadeia produtiva pague o imposto referente ao valor que adicionou ao produto ou serviço, evitando uma tributação em cascata. Se, por exemplo, o IVA for de 25%, um produto de R$ 100 terá imposto de R$ 25, que deverá ser dividido por toda a cadeia de produção (produtor, atacadista, distribuidor, varejista).

Atualmente, cada uma dessas etapas da cadeia é tributada separadamente e os impostos vão se acumulando até o consumidor final. Com o IVA, as empresas poderiam abater, no recolhimento do imposto, o valor pago anteriormente na cadeia produtiva. A ideia é que o IVA reúna tributos federais (como PIS e Cofins), estaduais (ICMS) e municipais (ISS).

Appy afirmou que a proposta em discussão na Câmara dos Deputados poderá ter uma trava para impedir que Estados e municípios tenham perda de arrecadação com medidas aprovadas pelo Congresso, como ocorreu com a desoneração dos combustíveis no governo Bolsonaro. Atacado diretamente pelo prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, que o chamou de “técnico autoritário”, Appy disse que está “em paz com o Paes” e que acredita no diálogo para enfrentar as resistências das capitais.

Ele detalhou ainda como pode funcionar o “cashback” do imposto pago em serviços de educação e saúde – uma alternativa à redução de alíquota para oferecer tratamento diferenciado a alguns setores – e o cronograma da transição, com a extinção dos tributos atuais até 2031.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

 O governo vai enviar uma proposta nova de reforma tributária ou vai usar as que já estão no Congresso? O ministro Haddad havia dito inicialmente que enviaria uma proposta até abril.

O que vamos fazer é apoiar o Congresso na elaboração da emenda constitucional da reforma tributária a partir dos textos que já estão lá. O governo vai apoiar o trabalho do relator (deputado Aguinaldo Ribeiro) – discutir alternativas, apresentar sugestões que o relator pode ou não incorporar. É um trabalho de avaliar custos e benefícios das diferentes alternativas colocadas para discussão.

A proposta será, então, do Congresso?

É uma proposta do Congresso que conta com apoio do governo.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que o governo não tem base para aprovar a reforma. Há um excesso de otimismo?

Ele próprio falou que deve ser aprovada na Câmara no primeiro semestre deste ano. Uma pesquisa mostrou que 68% dos deputados acreditavam que a reforma seria votada neste ano. Existe um ambiente positivo. Ela tem o apoio dos presidentes da Câmara e do Senado, e do Executivo.

O governo prometeu que a reforma será neutra, sem aumento da carga tributária. Haverá um gatilho para garantir a promessa?

Vai ter. A cada ano, será fixada uma alíquota com base em cálculos que mostram que se estará mantendo a carga tributária. A alíquota de referência (do novo imposto) terá de ser aprovada pelo Senado todo ano, durante a transição. Não é fazer de uma vez e depois não se ajusta mais. Vai se fazendo o ajuste ao longo da transição.

Um ponto de atenção das empresas é se o crédito do IVA ficará condicionado ao pagamento do tributo pelo fornecedor. Será criado o chamado ‘split payment’, que recolhe o imposto automaticamente?

O “split payment” está como uma possibilidade nas duas propostas. Eu acho que provavelmente deve passar, sim. Não vai passar como uma coisa determinativa; vai passar como uma possibilidade.

Como funcionaria?

As duas PECs têm dois dispositivos. Um deles diz que o crédito do imposto poderá ser condicionado ao recolhimento: eu tenho crédito se o meu fornecedor recolher o imposto. O segundo dispositivo diz que o imposto poderá ser cobrado no momento da liquidação ou pagamento. Os dois juntos caminham para esse modelo de “split payment” – em que, na hora que você paga, o montante do imposto é recolhido automaticamente, vinculado ao próprio instrumento de pagamento. E a parte que é do fornecedor vai direto para o fornecedor. Se o adquirente tiver direito a crédito, ele inclusive recebe automaticamente, em tempo real, o crédito dele.

Esse modelo já pronto para ser implementado?

Não está. Ele exige uma construção técnica que é perfeitamente possível com a tecnologia que nós temos hoje. Mas exige uma série de ajustes de sistemas, como sistema de pagamento. É uma inovação que está sendo discutida.

Quais as vantagens desse modelo de cobrança?

A vantagem é que reduz muito o risco de sonegação, porque o próprio recolhimento do imposto se dá no pagamento. A segunda vantagem é que reduz o risco de créditos frios, um problema que existe hoje.

O que é um crédito frio?

Quando tem uma empresa montada com laranjas. Uma empresa que fica operando um tempo com faturamento baixinho; aí, de repente, ela emite um caminhão de nota fiscal, dá crédito para quem adquiriu aquele produto e a empresa desaparece, ou os sócios são laranjas. Cria-se o crédito que é uma fraude.

O setor produtivo quer o ‘split payment’?

Sim, eles querem. A PEC tem de abrir a possibilidade (para esse instrumento), mas a regulamentação tem de ficar para a lei complementar.

Como o governo pretende enfrentar as resistências dos setores, como serviços e agronegócio?

Vai ter de ser resolvido exatamente na apresentação do relatório. Embora a discussão tenha começado com o modelo ideal sem nenhuma exceção, sabemos que vão acabar entrando algumas excepcionalidades. O tratamento favorecido poderia ser via diferenciais de alíquota, mudanças nas regras de creditamento ou isenção. E, na PEC 110, se abriu mais uma possibilidade: a devolução do imposto, e não é só para as famílias de baixa renda. Poderia ser inclusive para setores específicos, como educação.

O sr. apoia essa medida?

Eu gosto da ideia. Quem vai decidir quais setores vão ter tratamento diferenciado é o Congresso. O papel do governo é participar da discussão e falar dos prós e contras de diferentes alternativas.

Como seria a sistemática de devolução?

É um “cashback” para as pessoas, o consumidor. Por exemplo: educação básica para uma família de classe média custa R$ 600, R$ 700 por mês. Então, você fala o seguinte: olha, eu vou devolver o imposto integral. Se o imposto é 20%, dos R$ 700, é R$ 140 por mês. Devolve-se o imposto incidente na despesa com educação até R$ 140 por mês. Nesse sentido, é desonerada completamente uma família de classe média baixa, que faz um esforço enorme para ter o filho numa escola privada. Mas uma família rica, que tem um filho numa escola que custa mais, receberia uma parte de volta do imposto que ela pagou. Essa é uma possibilidade.

A reforma poderá incluir um trava de segurança para que Estados e municípios não tenham perda de arrecadação com medidas aprovadas pelo Congresso?

Está em discussão. A ideia básica é fazer com que qualquer mudança que reduza a arrecadação dos Estados e municípios tenha de ser compensada com um aumento da alíquota de referência do novo imposto. Se for aprovada uma mudança na lei, como a desoneração da gasolina, teria de aumentar a alíquota geral do imposto. É bom do ponto de vista federativo, porque dá segurança de que não haverá medidas tomadas no âmbito federal que afetem a arrecadação.

Os prefeitos das capitais dizem que não foram chamados para a negociação do acordo fechado pelo governo com os Estados, que compensou em R$ 26,9 bilhões as perdas com a desoneração do ICMS – tributo compartilhado com os municípios. Eles acham que foi uma sinalização ruim para a governança de um novo tributo.

Mas o que pegou pior foi a desoneração dos combustíveis feita no ano passado com recurso dos Estados e municípios. No modelo em discussão, se tiver alguma mudança que afete a arrecadação dos municípios, vai ter de ter um aumento compensatório.

A resistência das capitais é forte. Elas não querem perder o ISS, tributo cobrado pelos municípios sobre serviços. O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, até mesmo o chamou de ‘técnico autoritário’.

Ele fez e depois eu mandei uma mensagem para ele. Aí, ele me respondeu. Foi (declaração) pesada até por uma distorção do que saiu no jornal. Está tudo em paz com o Paes. Entre nós está tudo bem.

O presidente Lula não tem falado muito de reforma tributária, como ocorreu na campanha. Ele vai realmente entrar em campo e defendê-la?

Eu acredito que sim. É o tempo dele na política. Mas, na hora que for preciso entrar em campo, acredito que entrará, sim.

A transição da reforma dos impostos sobre consumo durará quanto tempo?

A transição dos tributos federais é rápida, imediata. Um ano depois de aprovada a lei complementar, é possível fazer a transição do PIS/Cofins. No caso dos ICMS e ISS, o início demora um pouco, e a partir daí ela é feita em quatro ou cinco anos. Suponha que se aprove a emenda constitucional este ano, e a lei complementar no primeiro semestre do ano que vem: poderia começar a cobrar a CBS (Contribuição Social sobre Bens e Serviços, que deve unir PIS e Cofins) em meados de julho de 2025, o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços, união de ICMS e ISS) em janeiro de 2027. A transição estaria completa em 2030 ou 2031, dependendo se serão quatro ou cinco anos. Significa que em 2030 ou 2031 deixaram de existir os tributos atuais.

Como fica a segunda etapa da reforma tributária, que é a reforma do Imposto de Renda? O governo também vai aproveitar o texto que já está tramitando no Senado?

O mais provável é que a gente envie uma proposta nova. A ideia é fazer isso depois de aprovada a reforma do consumo.

Dificilmente, então, haverá tempo para aprovar a reforma do IR em 2023?

É. Pode ser que alguma parte seja antecipada, mas não tenho certeza. Pode-se fazer uma parte e a outra depois.

Existe a expectativa de que a segunda parte da reforma contribua para aumentar a arrecadação.

Tem de esperar para ver como vai sair o novo regime fiscal (a nova regra que vai substituir o teto de gastos, que desde 2017 atrela o crescimento das despesas à inflação).

Quem é Bernard Appy

Economista, é o atual secretário extraordinário de reforma tributária do Ministério da Fazenda. O cargo foi criado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para conduzir as negociações técnicas da proposta em tramitação do Congresso.

De 2015 a 2022, foi diretor do Centro de Cidadania Fiscal, um “think tank” voltado ao desenvolvimento de propostas de aprimoramento do sistema tributário brasileiro.

A proposta de reforma desenhada por ele no CCiF foi encampada pelo deputado Baleia Rossi (MDB-SP) na PEC 45, que servirá de base para a proposta de reforma que o governo Lula quer aprovar em 2023.

É formado pela USP. Entre 2003 e 2009 foi secretário-executivo, secretário de Política Econômica e secretário de Reformas Econômico-Fiscais do Ministério da Fazenda. Neste período, também foi presidente do Conselho de Administração do Banco do Brasil. Também foi sócio e diretor da LCA Consultores e diretor da BM&FBOVESPA.

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