A troca no comando do Exército ordenada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com apenas 20 dias de governo pode ser um caminho para estabilizar as tensas relações com os militares, mas o petista terá que “tomar cuidado extraordinário, sem baixar a cabeça”, diz o cientista social João Roberto Martins Filho, que estuda as Forças Armadas desde a década de 1980.
Ele se refere ao fato de que o bolsonarismo “calou fundo” e permanece com bastante adesão não só no Exército como na Marinha e na Aeronáutica, nos mais variados escalões.
Para o professor sênior da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é preciso cautela nas avaliações de que o novo comandante, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, tem espírito democrático e sintonia total com Lula.
“Não podemos cair na armadilha de achar que o general Paiva é um dissidente [do alto comando do Exército], que é simpático ao governo petista, que é um democrata. Eu sugeriria que a gente esperasse um tempo para ver, mas acho difícil que ele seja qualquer uma dessas três coisas.”
Na semana passada, dias antes de sua nomeação, Paiva fez um discurso em que classificou de “terremoto político” as invasões de Brasília que vandalizaram a sede dos Três Poderes e pregou respeito ao resultado da última eleição presidencial.
“Quando a gente vota, tem que respeitar o resultado da urna. Não interessa. Tem que respeitar. É essa a convicção que a gente tem que ter, mesmo que a gente não goste”, disse, em fala no Quartel-General Integrado (QGI), em São Paulo.
Também afirmou na ocasião que as Forças Armadas são “uma instituição de Estado. Apolítica, apartidária. Não interessa quem está no comando: a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito. Isso é ser militar. É não ter corrente.”
Martins Filho disse que o general falou “exatamente aquilo que é música para o ouvido do governo atual”.
“Mas está muito em cima do fato para tirar essas conclusões, é preciso tomar um pouco de cuidado.”
O cientista social destaca que Paiva chefiava a Academia Militar das Agulhas Negras, instituição que gradua oficiais de carreira do Exército, quando o ex-presidente Jair Bolsonaro lançou sua candidatura a presidente durante um evento de formatura de aspirantes em 2014.
Paiva também já foi chefe de gabinete do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército que costuma usar as redes sociais para insuflar movimentos antidemocráticos, inclusive com posts em que colocou dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral após a derrota de Bolsonaro no segundo turno.
Jogo de xadrez
No entanto, o professor sênior da UFSCar enxerga que há espaço para retomar a normalização institucional após confrontos com o general Júlio César de Arruda, o comandante do Exército demitido por Lula.
Durante a transição, no que foi interpretado como um gesto de distensão em relação às Forças Armadas para o começo de governo, Lula indicou para chefiar a Defesa José Múcio, um nome bem visto pelos militares.
O ministro Múcio então escolheu Arruda para comandar o Exército usando o critério de antiguidade.
Mas quando forças de segurança foram até o acampamento bolsonarista em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, na noite dos distúrbios do dia 8 de janeiro, o general disse ao ministro Flávio Dino (Justiça): “Você não vai prender as pessoas aqui”. O relato foi dado por dois oficiais militares, de acordo com reportagem do jornal The Washington Post.
A gota d’água que culminou na saída de Arruda foi sua recusa, segundo o site Metrópoles, em exonerar de um posto sensível do Exército em Goiânia o tenente-coronel Mauro Cid — que foi ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Múcio declarou em entrevista coletiva após o anúncio da demissão de Arruda que “as relações, principalmente no comando do Exército, sofreram uma fratura no nível de confiança” e que “precisávamos estancar isso logo de início”.
“Usando uma analogia com o xadrez, eu acho que o Lula avançou uma peça [com a troca no comando do Exército]”, afirma Martins Filho.
“Todo mundo ficou em suspenso e com a demissão agora parece que o Lula vai normalizando as coisas. É como se ele falasse ‘Eu sou o comandante [o Presidente da República é oficialmente o Comandante Supremo das Forças Armadas]: eu demito, eu nomeio’. E com certeza o alto comando [do Exército] já tinha dado sinais de que ele poderia fazer isso. Acho que o general Paiva consultou os colegas do alto comando e aceitou o cargo.”
Ele diz que existe uma razoável coesão nos comandos militares desde a redemocratização e que não vê evidência de divisões internas atualmente.
Na visão de Martins Filho, também não interessa ao Exército provocar uma nova crise com Lula e a tendência, nesse primeiro momento, é de estabilizar a relação entre as duas partes.
“O 8 de janeiro unificou o governo e fortaleceu Lula. Ele teve que cuidar da questão militar precocemente e até agora tem acertado.”