O Presidente Lula sancionou a Lei 14.532/2023, que transferiu o crime de ofender a honra de alguém por motivação racial (a chamada “injúria racial”, aqui entendida como injúria racista) para a Lei Antirracismo – Lei 7.716/89, aumentou sua pena e foi expressa sobre a punição das injúrias racistas praticadas com intuito de gerar riso a partir do sofrimento alheio.
A nova lei certamente traz um passo importante para ajudar na prevenção e na punição dos discursos racistas, tendo em vista que, de forma absurda, os Tribunais entendiam desde 1989, com o advento da Lei Antirracismo, que “ofender o indivíduo em sua honra subjetiva por elemento racial” não constituiria forma de racismo, algo que é absolutamente arbitrário. Isso sempre teve o efeito perverso de gerar a impunidade das ofensas racistas a indivíduos, porque os Tribunais entendiam que só seria “racismo”, enquanto “ofensa a uma coletividade racial”, então só ela era considerada “imprescritível e inafiançável” (como diz a Constituição no art. 5º, XLII). Ao passo que a notória demora do Judiciário para julgar processos fazia com que a ofensa a indivíduo por elemento racial prescrevesse (deixasse de ser julgada em seu mérito propriamente dito por decurso de prazo máximo de julgamento, por não ser considerada imprescritível).
Descabe a explicação tradicional de que os “bens jurídicos” da ofensa a coletividade racial e à honra de indivíduos por elemento racial seriam “distintos”. Ora, o indivíduo é ofendido em sua honra por elemento racial apenas por seu pertencimento ao grupo racial minoritário – é o aspecto coletivo da identidade individual, como ensina o Professor Adilson José Moreira (leiam seu livro Racismo Recreativo). Ou seja, o indivíduo tem sua honra atacada não por sua individualidade, mas por seu pertencimento a grupo racial cuja dignidade a pessoa ofensora despreza por intuito segregacionista. Então, é flagrantemente equivocada (e, na verdade, inepta) essa pretensa diferenciação.
Entenda-se, não foi “a lei” que criou essa suposta diferença entre “racismo” enquanto ofensa a coletividade racial e “injúria racial” como ofensa a indivíduo em sua honra subjetiva por elemento racial. Foi a jurisprudência, em absurdo racismo institucional (ainda que não intencional). Como tentativa de redução de danos, o então Deputado (hoje Senador) Paulo Paim (PT/RS) apresentou o PL 1.240/95, que gerou a “lei da injúria racial” (Lei 9.459/97), que criou a “injúria qualificada por preconceito racial” no agora antigo art. 140, §3º, do Código Penal (o artigo mantém a injúria qualificada por preconceitos não-racistas, atualmente por condição de pessoa idosa ou com deficiência). Na Justificativa do PL, afirmou-se que se estava atualizando a Lei 7.716/89, para melhor atender o repúdio constitucional ao racismo (do art. 5º, XLII) mediante a criminalização da ofensa à dignidade, à honra e o decoro de indivíduos. Fica nítido que se considerou a injúria qualificada por preconceito racial como forma de racismo.
Mas jurisprudência e doutrina continuaram tratando a ofensa racista a indivíduo como uma “injúria racial não-racista” (!), que continuou tendo sua prescrição decretada na generalidade dos casos, ignorando o citado diálogo institucional do Legislativo que bem explicitamente considerou, nos debates parlamentares, a chamada “injúria racial” como forma de racismo. Ou pior, sua “decadência”, quando o Ministério Público denunciava o caso como de racismo, o Judiciário entendia que seria uma “injúria racial (não-racista)” e decretava de ofício a “decadência” por ausência de representação da vítima (aqui entra um forte juridiquês-penal: racismo é crime de “ação penal pública incondicionada”, que o MP faz independente da vontade da vítima, enquanto a “injúria racial não-racista”/sic era considerada crime de “ação penal pública condicionada a representação”, pela qual a vítima tinha que dar um aval ao MP mediante a chamada “representação”, após fazer o Boletim de Ocorrência, para que o MP pudesse fazer a denúncia – a mencionada “decadência” judicialmente decretada se referia à ausência de representação no prazo legal de seis meses).
Só a partir de 2015 o Superior Tribunal de Justiça passou a reconhecer o óbvio, que ofender o indivíduo em sua honra subjetiva por elemento racial constitui forma de racismo (STJ, AgRg no AREsp n. 686.965/DF, DJe 31.08.2015), o que se repetiu em outros julgamentos do STJ (como o do AgRg no REsp 1.849.696/SP, DJe 23.06.2020). Afinal, não se pode seriamente dizer que uma ofensa racista não seria forma de racismo, um racismo pela injúria como disse o Senador Paim no PL 4.373/2020, que também visava colocar a injúria qualificada por preconceito racial na Lei 7.716/89 e positivar (ainda mais) sua natureza jurídica racista.
Essa posição do STJ foi referendada pelo Plenário do STF no julgamento do HC 154.248/DF, em 2021, que muito bem decidiu que “O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo, seja diante da definição constante do voto condutar do julgamento do HC 82.424/RS, seja diante do conceito de discriminação racial previsto na Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial”.
Logo, não poderão as defesas penais alegarem o princípio da anterioridade da lei penal contra a consideração da injúria racial como forma de racismo, pois a jurisprudência dos Tribunais Superiores já a reconhecia como tal.
A lei é muito importante porque permitirá que as ofensas racistas a indivíduos sejam efetivamente julgadas pelo Judiciário, sem que a prescrição ou a decadência, decretadas de ofício, impeçam isso. Obviamente, em um Judiciário ainda marcado pelo inconsciente coletivo do pacto narcísico da branquitude e da cisheteronormatividade, as ofensas racistas contra pessoas negras, não-brancas em geral e LGBTI+ continuarão enfrentando dificuldades para serem reconhecidas como tais, como provam julgamentos diversos que deixaram de considerar como crimes manifestações que deviam ser consideradas como tais. Mas a lei pelo menos possibilitará o julgamento do mérito propriamente dito, com ampla possibilidade recursal e pressão dos Movimentos Sociais para que os discursos racistas sejam efetivamente punidos, como devem ser, nos termos da lei, obviamente respeitado o devido processo legal, que supõe ampla defesa, contraditório e presunção de inocência.
Ademais, considerando que o STF reconheceu a homotransfobia (LGBTI+fobia) como forma de racismo, a Lei 14.532/2023 também ajudará na repressão das ofensas a indivíduos LGBTI+ por motivação racial-homotransfóbica, no sentido político-social de raça (social) e de racismo (social) acolhidos pelo STF desde 2003, quando considerou o antissemitismo como forma de racismo (HC 82.424/RS), e ratificados em 2019, quando considerou a homotransfobia como tal (ADO 26 e MI 4733). Em síntese, raça (social) como dispositivo de poder destinado a justificar a desigualdade de integrantes de grupos socialmente marginalizados relativamente aos de grupos dominantes (cf. voto do Min. Celso de Mello, p. 97)[1] e racismo (social) como a inferiorização desumanizante de um grupo social relativamente a outro, em um sistema de relações de poder em que integrantes de grupo dominante inferiorizam e estigmatizam integrantes de grupo dominado para excluí-lo do sistema geral de garantia de direitos (STF, ADO 26/MI 4733, item 3 da Tese).[2] Daí o STF ter afirmado que os crimes “por raça”, que a lei diferencia dos crimes “por cor” e “por etnia”, abarcam a homotransfobia por interpretação literal (e não por “analogia in malam partem“).
Como se vê pelo conceito do STF, não existe “racismo reverso”, que é um equívoco interpretativo, consoante decidiu o Judiciário em caso posterior à decisão da ADO 26 e do MI 4733.[3] Sendo o racismo um sistema de opressão criado para desumanizar integrantes de grupos sociais minorizados pelo preconceito do grupo hegemônico, contraria a interpretação histórica e teleológica (finalística) do conceito falar que integrantes de grupo racial hegemônico sofreriam “racismo” praticado por integrantes de grupo racial minoritário. Sempre digo que se integrante de grupo racial minoritário ofender integrante de grupo racial hegemônico, haverá no máximo dano moral cível e injúria simples, nunca injúria “racial” e nem “racismo”, na dicotomia antiga – agora, a chamada injúria racial é a forma de racismo praticado discursivamente contra indivíduos.
Após a decisão do STF, uma tese profundamente inepta, quando não de má-fé, passou a defender que por ele ter determinado a aplicação da Lei 7.716/89 para punir atos de homotransfobia, a decisão não abarcaria a chamada injúria racial, por ela estar prevista no Código Penal. Essa posição é indefensável, porque o STF mandou aplicar a Lei 7.716/89 para punir atos de homotransfobia por esta se enquadrar nos crimes “por raça” nela previstos, donde sendo a injúria racial prevista no Código Penal antes da Lei 14.532/2023 a injúria qualificada (ou seja, que tem a pena aumentada) em razão da “raça” da vítima, evidentemente que a decisão demandava aplicar referido crime do antigo art. 140, §3º, do Código Penal para atos homotransfóbicos.
Não aplicar a injúria racial para crimes homotransfóbicos implica retirar quase toda a eficácia da decisão da ADO 26 e do MI 4733 sobre o discurso homotransfóbico, porque como prova inclusive estudo das Professoras Marta Machado, Marcia Lima e Natália Neris[4] sobre aproximadamente duas mil decisões de Tribunais do país sobre o tema do racismo, o discurso racista se dá primordialmente na forma da injúria racial.[5]Ou seja, embora haja discursos de ódio contra coletividades, eles se dão principalmente contra indivíduos em razão do seu pertencimento a coletividades que se enquadram como minorias sociais. Isso vale para o racismo negrofóbico, para o racismo etnofóbico (por exemplo, contra povos indígenas) e também para o racismo homotransfóbico.
Com a Lei 14.532/2023, a discussão perdeu qualquer razão de ser porque a injúria qualificada “por raça” foi transferida para o art. 2º-A da Lei 7.716/89, donde o (inepto) argumento de que ela não se aplicaria para a homotransfobia por estar no Código Penal deixa de existir. Ela continuará, todavia, para fatos anteriores à aprovação da referida lei, por força do princípio da anterioridade da lei penal. Então, continuam relevantes os embargos de declaração que movi por Cidadania e ABGLT perante o STF, para que ele afirme que a injúria racial prevista no antigo art. 140 do Código Penal também abarca a homotransfobia.
No mais, descabe dizer que a nova lei criminaliza o humor. A questão é que injúrias e discursos de ódio não podem deixar de receber punição legal apenas porque feitas de forma que faça as pessoas rirem. Como ensina o Professor Adilson Moreira no livro Racismo Recreativo, “o humor decorre da comparação entre grupos sociais, um meio que as pessoas utilizam para afirmar um sentimento de superioridade em relação a membros de outros grupos”, de sorte a não se poder tolerar o “humor derrogatório”, que “permite aos membros de um determinado grupo manter distinção social por meio da ênfase em elementos identitários relevantes”, bem como o “humor hostil”, por visar “preservar a distinção social positiva de um grupo em relação a outro por meio da ênfase nos aspectos negativos dos que são representados por dimensões humorísticas”. Isso porque eles “encobre[m] nossa agressividade em relação ao outro, o que é uma forma de superar inibições sociais que condenam expressamente expressões públicas de desprezo ou ódio”, mediante “mensagens que reproduzem a concepção de que membros de certos grupos possuem defeitos morais”. E isso mediante um “caráter estratégico: ele existe para perpetuar os estereótipos responsáveis pela marginalização moral e material das minorias raciais”, enquanto “meio de legitimação social” dessa inferiorização.
Por isso, ensina o autor, “uma piada é racista quando pretende causar dano a uma minoria, quando pode ser esperado que ela terá esse efeito e quando o dano infligido não pode ser moralmente justificado […] porque afeta diretamente a expectativa deles de serem tratados de forma respeitosa em uma sociedade baseada no reconhecimento do mesmo status moral dos indivíduos”. Afinal, “o sentido do humor racista deve ser interpretado dentro do contexto social no qual ele está inserido e não apenas como expressão cultural que objetiva produzir um efeito cômico. Piadas racistas só adquirem sentido dentro de uma situação marcada pela opressão e pela discriminação”, algo que ofende não só a honra das vítimas, mas sua integridade psíquica, em razão dos estigmas que difunde. Até porque “a degradação moral de grupos subordinados acarreta perda de oportunidades materiais”, o que não pode ser tolerado porque “o humor racista cumpre um papel central na manutenção da estratificação social, uma vez que opera como meio de sua legitimação” e “contribui para que arranjos sociais sejam vistos como expressão do funcionamento normal da realidade” por tomar as características do grupo racial hegemônico “como referências universais [para] a construção desses traços como parâmetros para o julgamento do valor moral de membros de todas as outras raças” (Racismo Recreativo, 2019, p. 70-89).
Ou seja, tudo que a lei expressamente afirma ser crime de racismo pela injúria que vise causar o riso se refere à difusão de estereótipos pejorativos contra integrantes de determinada minoria social, imputando a indivíduo característica pejorativa apenas por seu pertencimento a determinado grupo racial minoritário ou imputando a todo o grupo erros praticados por só uma ou algumas pessoas que o integram. Difundir estereótipos pejorativos deve ser visto como a intenção de ofender (“animus injuriadi“) que a jurisprudência considera necessário para que um discurso seja ilícito – no mínimo, enquanto dolo eventual, que a lei considera equivalente ao dolo direto (a “vontade propriamente dita”) de praticar o crime, pela pessoa assumir o risco de produzir o resultado criminoso (art. 18, I, parte final, do CP). Pois, como dizem as Professoras Marta Machado, Márcia Lima e Natália Neris no estudo citado, embora muitas decisões não falam isso, há decisões que corretamente reconhecem que “utilização de expressões altamente pejorativas associadas ao negro, como as que acabamos de descrever, poderia ser considerada suficiente para demonstrar a intenção preconceituosa – como de fato o foi em diversos casos em que houve condenações por injúria racial”, o que obviamente vale para expressões pejorativas a quaisquer grupos raciais (como pessoas indígenas e LGBTI+).
Em suma, a Lei 14.532/2023 constitui um avanço que, longe de ser “punitivista” (sic), como crítica equivocada quer fazer crer, atribui ao racismo pela injúria a devida punição, coerente com o forte repúdio constitucional a todas as formas de racismo (art. 5º, XLII), bem como pelo importante parâmetro hermenêutico de considerar discriminatória a conduta que não teria sido praticada contra integrantes de grupo racial hegemônico (art. 20-C). Algo que constitui o conceito de toda e qualquer discriminação (tratamento arbitrário diferenciado apenas pelo pertencimento da vítima a determinado grupo social), donde o art. 20 da Lei 7716/89 já abarca tal situação relativamente às minorias raciais, embora seja sempre importante a lei trazer normas que ajudem a sanar divergências interpretativas de sorte a garantir maior segurança jurídica ao tema.
[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/leia-voto-ministro-celso-mello2.pdf>. Acesso: 20.01.2023.
[2] Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/tesesADO26.pdf>. Acesso: 20.01.2023.
[3] REDAÇÃO. “Racismo reverso é equívoco interpretativo”, diz juiz ao absolver negro por posts no Facebook. Migalhas, 29.01.2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/319441/racismo-reverso-e-equivoco-interpretativo–diz-juiz-ao-absolver-negro-por-posts-no-facebook>. Acesso: 20.01.2023.
[4] MACHADO, Marta Rodriguez Assis. LIMA, Márcia. NERIS, Natália. Racismo e Insulto Racial na sociedade brasileira: Dinâmicas de reconhecimento e invisibilização a partir do direito. In: Scielo, Novos Estudos CEBRAP, vol. 35, n.º 3, São Paulo, Nov. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002016000300011>. Acesso: 13.07.2020.
[5] Segundo as Professoras: “O primeiro dado que chama a atenção do conjunto de casos que chegam ao Judiciário é que estes envolvem, em sua grande maioria, situações ligadas a ofensas verbais com a utilização de xingamentos racistas”, relativos a “insultos raciais, ainda que houvesse disputa sobre como qualificá-los juridicamente – injúria simples, injúria racial ou prática ou incitação ao preconceito. Embora em primeira instância tenha sido observada maior controvérsia, no âmbito das decisões do tribunal encontramos apenas um caso em que se reconheceu que o xingamento de cunho racial também seria uma forma de ‘praticar ou incitar o preconceito'”.
Por Paulo Iotti, doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Bacharel em Direito pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie. Advogado e professor universitário. Diretor-presidente do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Autor das ações que fizeram o STF reconhecer a homotransfobia como crime de racismo (ADO 26 e MI 4733)