A Lei 14.478/2022, que cria o Marco Civil dos Criptoativos, foi publicada em 22 de dezembro de 2022. A nova lei passa a integrar oficialmente o sistema legal brasileiro, e entrará em vigor em 180 dias, contados a partir da data de sua publicação.
A Lei representa um passo importante para a construção da infraestrutura jurídica necessária para a consolidação e o desenvolvimento do mercado de criptoativos no país, e abre, inclusive, as portas para uma grande transformação do sistema financeiro nacional.
Na sua redação atual, o legislador optou por adotar uma abordagem principiológica e mais conceitual, que delega a uma autoridade infralegal os poderes necessários para regular o dia a dia das operações objeto de seu escopo. Neste contexto, a Lei adota abordagem similar àquela adotada pelo marco regulatório dos meios de pagamentos em 2013 (Lei 12.865/13), a qual é considerada um grande sucesso.
A primeira grande novidade trazida pela Lei diz respeito às definições de “ativos virtuais” e de “prestadoras de serviço de ativos virtuais”. Tais definições criam novas categorias jurídicas no direito brasileiro complementares ao sistema financeiro tradicional.
De acordo com a Lei 14.478/2022, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou de investimentos, excluídos, entre outras coisas, a moeda nacional e estrangeira, a moeda eletrônica, os ativos virtuais que tenham características de valores mobiliários.
Por outro lado, o texto define como prestadoras de serviço de ativos virtuais as pessoas jurídicas que executam, em nome de terceiros, serviços relacionados à troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou estrangeira, troca entre ativos virtuais, transferência, custódia ou administração de ativos virtuais, entre outros. O conceito de prestadoras de serviço de ativos virtuais abrangerá as conhecidas exchanges e outras empresas que atuam no setor de intermediação, negociação e custódia de ativos virtuais.
Pela própria abertura semântica que guardam, e dada a novidade dos conceitos e da própria inventividade do mercado, as hipóteses de ativos virtuais e de prestadoras de serviço de ativos virtuais trazidas pela nova Lei serão meramente exemplificativas. Isso por si só abrirá margem para discussões a respeito da caracterização de muitas criações da web3 e de muitos modelos de negócios.
Projeto de Lei cuja tramitação se iniciou no Senado Federal já tinha antevisto esse problema, e sugeriu como método de mitigação a criação de um fórum interministerial com a finalidade de estudar e propor ao(s) regulador(es) competente(s) diretrizes mais claras a respeito da conceituação de muitos ativos virtuais, levando-se em conta, entre outras coisas, a sua função, o propósito para o qual foram criados, o potencial de risco para a economia etc.
Mesmo com as diretrizes do fórum interministerial, já seria possível se cogitar em um conflito entre órgãos reguladores, cada qual reivindicando autoridade sobre a matéria. Com o abandono do fórum e/ou qualquer diretriz mais clara a respeito do assunto, não é de se surpreender que esse conflito se instale também no Brasil, muito embora a Lei 14.478/2022 tenha deixado margem à cooperação entre os órgãos reguladores.
Enquanto nada disso acontece, a nova Lei deixa a cargo do Executivo a designação do regulador competente. Dentre as agências que podem atuar como órgão regulador para este mercado, destaca-se o Banco Central do Brasil (“BCB”). Eventual indicação do BCB como regulador sinaliza uma regulação para o setor de ativos virtuais conforme os mesmos critérios que organizam o Sistema Financeiro Nacional. Cabe destacar a vasta experiência e sucesso do BCB na atuação em temas que envolvem novas tecnologias, incluindo a regulação de pagamentos na esteira da Lei 12.865/13 e, mais recentemente, das fintechs de crédito.
Sendo este o caso, a imposição de requisitos de patrimônio líquido mínimo, a necessidade de autorização para funcionamento e realização de operações societárias, classificação das instituições e aplicação de regras conforme o porte e o potencial de risco da empresa estão dentre os temas que podem ser objeto de regulação pelo BCB no desenho de futura regulação.
A atribuição de competência ao BCB não retirará eventual competência da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) no que tange à emissão, distribuição e custódia de ativos virtuais com características de valores mobiliários. Muito pelo contrário, a CVM poderá igualmente fomentar, por meio de regulação infralegal, a criação de uma infraestrutura jurídica adequada para acomodar as novas tecnologias no mercado de capitais. O Parecer de Orientação nº 40 da CVM já sinaliza a posição do regulador do mercado de capitais neste sentido.
Também em linha com as práticas adotadas em relação ao sistema financeiro tradicional, a Lei 14.478/2022 sujeita as prestadoras de serviço de ativos virtuais à Lei 13.506/2017, que dispõe sobre o processo administrativo sancionador na esfera de atuação do BCB e da CVM. Além disso, a nova Lei equipara as prestadoras de serviço de ativos virtuais às instituições financeiras para fins penais e sujeita essas empresas, consequentemente às penalidades da Lei 7.492/1986, que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
Além dessas questões mais conceituais e procedimentais, a Lei 14.478/2022 também avança na criação de normas de conduta propriamente ditas, criando, inclusive, um crime específico relacionado à atuação com ativos virtuais. A Lei insere no Código Penal Brasileiro o artigo 171-A, que cria o tipo de penal de fraude com a utilização de ativos virtuais. Cite-se também a inserção expressa na lei de lavagem de dinheiro das prestadoras de serviço de ativos virtuais como entidades obrigadas, e o aumento de pena de 1/3 a 2/3 em caso de cometimento do crime por meio da utilização de ativo virtual. A resposta “penal” da Lei demonstra a intenção do legislador em prevenir e repudiar práticas ilícitas, deixando claro que estas não se confundem com as operações regulares com ativos virtuais.
A Lei 14.478/2022 representa um avanço para o setor de ativos virtuais no Brasil, pois dará ensejo à criação de uma infraestrutura jurídica que tem grande potencial para fomentar o crescimento do setor no país. A positivação de regras claras que organizam e disciplinam a interação dos seus participantes é pressuposto da constituição e consolidação de qualquer mercado, e nova Lei vem para desempenhar este papel no mercado de ativos virtuais.
*Alessandra Carolina Rossi Martins, sócia na área de Bancário, Seguros e Financeiro do Machado Meyer Advogados
*Juliana Abrusio, sócia na área de Tecnologia do Machado Meyer Advogados
*Marcelo de Castro Cunha Filho, advogado na área de Tecnologia do Machado Meyer Advogados