Cheia de detalhes técnicos e controversa até para iniciados. Assim é a Teoria Monetária Moderna, normalmente identificada pela sigla na versão em inglês MMT. Dada a sua complexidade, o debate sobre seus conceitos costuma ficar restrito ao mundo acadêmico, registra Alexa Salomão, da Folha de São Paulo.
De forma bem simplista, ela sustenta que o Estado pode ter déficit, dívida e emitir moeda nacional o quanto quiser –enfim, gastar sem quebrar. Uma afirmação que se contrapõe ao pensamento econômico convencional, chamado ortodoxo, que sustenta exatamente o contrário, a necessidade de controlar dívida e gasto públicos, para manter a saúde financeira do Estado e do país
Na semana passada, a MMT virou notícia depois de ter sido citada justamente num dos textos mais aguardados e observados: o parecer do senador Alexandre Silveira (PSDB-MG) para embasar a aprovação da PEC da Transição (proposta de emenda à Constituição) –medida que libera o governo eleito para elevar o gasto de 2023.
O estresse intelectual se instalou entre economistas quando se depararam com a sigla no texto do Congresso.
No grupo de transição da economia do governo eleito, o economista Persio Arida avisou que a menção poderia criar ruído na avaliação da PEC.
Fernando Haddad, que ainda não havia sido nomeado como futuro ministro da Fazenda do governo Lula 3, fez contato com o senador Alexandre Silveira ponderando sobre se seria realmente necessário manter a citação, numa sinalização de que seria melhor suprimi-la. O trecho foi extraído. Mas a polêmica já estava instalada.
Pipocaram comentários, publicações nas redes sociais e reportagens preconizando que o PT havia encontrado um dogma econômico certeiro para explodir de vez o teto de gastos, apesar de o texto estar sendo apresentado por um parlamentar do PSDB.
Segundo a assessoria do senador, o trecho foi redigido pela Consultoria do Orçamento, um dos organismos que dá apoio técnico aos parlamentares no processo legislativo.
A coordenação da área informou à Folha não ter autorização para divulgar nomes de técnicos que atuam nesse tipo de serviço, pois a autoria é atribuída ao parlamentar que encomenda o texto.
Existe uma nova geração de estudiosos da MMT, e alguns circulam no Congresso. Uma referência é o economista David Deccache, assessor econômico na Câmara e autor do livro “Teoria Monetária Moderna: A chave para uma economia a serviço das pessoas.” O economista petista Guilherme Mello, outro que está no grupo da transição e é cotado para o governo, leciona MMT na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
O maior expoente da teoria no Brasil é o economista André Lara Resende. Integrante do grupo de transição da economia e também cotado para ocupar cargo no governo eleito, ele disse à Folha que não viu sentido na citação.
“Considerei a menção primária e desnecessária. Uma ingenuidade política surpreendente”, afirmou. “MMT é fonte de muita confusão. Seus detratores e também grande parte de seus defensores não a entendem.”
André Lara é um estudioso dos fenômenos associados à moeda. Foi formulador, junto com Arida, dos princípios que levaram a criação da URV, a moeda escritural e paralela do Plano Real. Por décadas, foi festejado como economista liberal. Após se debruçar sobre os autores reunidos na MMT, publicou artigos argumentando que a economia do “mainstream” se tornou disfuncional.
O livro “Consenso e Contrassenso: Por uma Economia Não Dogmática” reúne vários desses textos.
“A MMT é apenas uma descrição correta do sistema monetário fiduciário. Seus críticos sustentam que é uma licença para gastar, sem qualquer critério, financiada pela expansão monetária”, afirma ele. “Não é absolutamente o caso, mas vai explicar que ‘não me chamo Manuel’! Por isso, nunca mais mencionei. Só provoca confusão.”
O fato é que a nova sigla entrou de vez no antigo debate que coloca em campos opostos contracionistas (que, em linha geral, defendem controlar a inflação geralmente freando o consumo) e expansionistas (que, de forma ampla, defendem estimular o consumo para trazer crescimento) no debate da política fiscal, mas não é uma teoria nem moderna, nem monetária.
Para a entender seus princípios é preciso percorrer a história da moeda.
No passado, moeda era algo físico, geralmente de metal precioso. À medida que o dinheiro evoluiu para moedas de metais menos nobres e notas, passou a ter lastro (cada unidade física correspondia a uma quantidade de riqueza concreta). No século 19, adotou-se o padrão-ouro, ou seja, a quantidade de moeda em circulação representava um volume de ouro estocado.
Os países compravam, estocavam, gerenciavam e vendiam barras o tempo todo. O câmbio era fixo. Dinheiro, investimentos, exportações e importações dependiam, e mexiam, com os estoques de ouro.
Isso começou a mudar em 1914, quando a Inglaterra trocou o padrão-ouro pelo dólar-ouro. A libra foi ancorada na moeda americana, que por sua vez, detinha a reserva em ouro. Outros países fizeram essa migração. Nos anos de 1970, quando os Estados Unidos começaram a gastar como se não houvesse amanhã, ficou claro que não havia ouro suficiente. Em 1973, os Estados Unidos desvincularam o dinheiro do metal.
A moeda começou a ser identificada como um registro contábil. Mas o que interessa na MMT é que o Estado ficou livre para emitir. O Estado cria moeda soberana quando liga a máquina de imprimir dinheiro e também quando emite títulos de dívida pública, não apenas para o mercado financeiro mas também para o Banco Central.
Ou seja, a MMT afirma que o Estado pode emitir e se endividar para gastar na moeda nacional de forma ilimitada. Nunca vai quebrar –diferentemente de uma empresa, cujo limite de endividamento é a sua capacidade de crescimento para pagar suas dívida, ou de uma família, cuja restrição do endividamento é a sua renda.
Daí surgiram questões. O Estado pode criar moeda para gerar crescimento e emprego? Até quanto? Pode deter recessões? Mas se criar muita moeda não vai gerar inflação?
Perguntas como essas foram feitas por gerações de economistas dedicados a estudar a moeda, a sua gênese, o seu uso, tanto pelos Estados quanto pelas empresas privadas, e os efeitos sobre crescimento, arrecadação, renda e emprego.
O economista alemão Georg Friedrich Knapp (1842-1926) afirmou que a credibilidade da moeda também está associada à estabilidade político-institucional do Estado. Um país instável sofre com a inflação mesmo que seja rigoroso com o controle da dívida e da emissão de moeda.
O neomarxista polonês Michal Kalecki (1899-1970) defendeu que déficits públicos não importam, pois são inerentes a uma política econômica que atua para mantar o pleno emprego. Muitas de seus princípios são semelhantes aos apresentados na Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, do inglês John Maynard Keynes, antes de o próprio divulgá-los, o que lhe rendeu o apelido de Keynes da esquerda.
Abba P. Lerner (1903-1982) fez longos estudos sobre o gasto público, cunhando o termo de finanças funcionais. Entre suas conclusões estão que o investimento do Estado é o único que pode ser planejado em benefício do crescimento das nações, pois o investimento privado ocorre apenas quando há garantia de lucro para alguns.
Hyman Minsk (1919-1996) afirmou que o volume de crédito oferecido pelo sistema bancário segue a percepção de risco e retorno, refletindo os humores dos empresários, e é a oscilação desse estado de espírito que causa crises recorrentes no capitalismo.
Em 1990, economista americano Larry Randall Wray empacotou as teorias desses e outros estudiosos no livro “Understanding Modern Money”. Foi um título irônico, claro. Ele sabia que reorganizava conceitos antigos, mas o nome pegou. Nascia a MMT.
Um contexto tipicamente americano criou o ambiente para que o combo atraísse atenção.
Os trabalhos de Wray tiveram apoio financeiro do conterrâneo Warren Mosler, empresário, gestor de fundos e político independente, o que ampliou a publicidade do tema. Uma de suas alunas, Stephanie Kelton, reverberou o debate com mais clareza ainda, em outro livro, “O Mito do Déficit”.
Kelton se tornou assessora do senador democrata Bernie Sanders, abrindo uma ponte entre a MMT e a política pública dos Estados Unidos –com exageros, reconhecidos até por defensores da MMT, o que ajudou a sustentar a crítica de que a teoria embasa gasto desordenado.
Ainda que identificada com a esquerda, até heterodoxos têm ressalvas à MMT. O economista Nelson Marconi, que se autodenomina desenvolvimentista, afirma que alguns de seus instrumentos inspiram cuidados.
“É preciso, por exemplo, saber quando usar a emissão de títulos públicos, porque, a depender do nível de atividade, você perde o controle da taxa de juros, por consequência, da taxa de câmbio, e gera inflação.”
Seus defensores afirmam que as constatações da MMT, bem aplicadas, geram benefícios.
“A ideia dominante é que o Estado precisa controlar suas contas “, afirma Simone Deos, pesquisadora sênior do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). “Mas as contribuições de pesquisas empíricas, aglutinadas na MMT, mostram que o investimento do Estado gera crescimento, renda e arrecadação, e que contrair gastos reduz PIB e arrecadação.”
Um argumento é que na pandemia, mesmo sem o rótulo, a MMT foi aplicada.
“A MMT descreve um fato: que não há restrição orçamentária para o Estado gastar, mas isso não significa que há mandato para gastar”, afirma Leonardo Burlamaqui, professor do Departamento de Evolução Econômica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, outro estudioso do tema. “Exatamente porque tenho esse poder é preciso ter uma enorme responsabilidade para gastar. Responsabilidade Fiscal.”
COMPARE A TEORIA MAINSTREAM X MMP EM 5 PONTOS
Mainstream
– O governo têm limitações para emitir moeda e fazer dívidas
– A tributação financia gastos do governo
– O Orçamento é limitado e o seu equilíbrio evita o aumento da taxa de juros e a retração do investimento do setor privado
– A poupança nacional garante financiamento ao investimento e o déficit público reduz a poupança nacional
– Governos quebram
MMT
– Governos têm liberdade de emitir moeda e fazer dívida
– A tributação é um incentivo para o uso da moeda soberana
– O Orçamento não tem limite, e o Estado deve investir para incentivar o setor privado e manter o pleno emprego
– O déficit público provocado por gasto se transforma em investimento privado e amplia a poupança nacional
– Governos não quebram
O QUE DIZIA O PARECER DO SENADOR TUCANO
(…)
Além de não comprometer a sustentabilidade da dívida, os gastos adicionais propiciados por esta PEC poderão, em verdade, ampliar a capacidade de pagamento do governo. Projeta-se em R$ 69,3 bilhões a expansão do Programa Auxílio Brasil (ou do que vier a substituí-lo).
A teoria keynesiana tradicional, bem como a chamada Teoria Monetária Moderna (ou MMT) enfatizam o papel central da política fiscal (em contraposição à política monetária) para recuperar a economia de um país. Mais especificamente, recomendam a expansão de gastos públicos sem a devida compensação na forma de elevação de tributos.
Potencializa-se, dessa forma, o efeito multiplicador de tais gastos. Como é frequentemente ensinado nos cursos de economia, a transferência de renda para as camadas mais pobres da população estimula o consumo, o que, em um contexto de elevado desemprego, permite a expansão da produção sem pressões significativas sobre o custo do trabalho.
Vale lembrar que, a despeito da recente melhora no mercado de trabalho, com a taxa de desemprego apresentando uma trajetória consistente de queda, atingindo 8,3% em novembro deste ano, seu nível encontra-se muito acima do que pode ser considerado uma situação de pleno emprego. Apesar de não haver consenso sobre qual seria a taxa de desemprego quando a economia se encontra em pleno emprego, mesmo estimativas mais conservadoras apontam para valores inferiores a 5%.
Há, portanto, muito o que se recuperar no mercado de trabalho para que possamos considerar que nossa economia se encontra em pleno emprego.
Cabe também enfatizar, como apontam alguns adeptos da MMT, que o aumento de gastos públicos não pode provocar crise de desconfiança em países que emitem dívida na própria moeda. Ou seja, se o financiamento das despesas fosse feito em moeda estrangeira, seria justificável uma preocupação com a solvência do País. Mas como os títulos emitidos pelo Tesouro Nacional são em reais, não existe a possibilidade de o governo não pagar.