Quando se pensava que a transição de Lula já estava suficientemente complicada pelas negociações para aprovar a emenda constitucional que permitirá ao novo governo furar o teto de gastos, surgiu um nó segundo a colunista Malu Gaspar, do O Globo, ainda mais delicado — a resistência das Forças Armadas ao presidente eleito. O discurso oficial dos petistas é que não há nada demais acontecendo, mas os sinais estão dados.
Depois de protelar por três semanas a data para formar o grupo de trabalho sobre políticas de Defesa, os porta-vozes de Lula finalmente disseram que o grupo não existiria mais, porque, nas palavras do coordenador Aloizio Mercadante, “a transição está resolvida”.
Enquanto isso, aliados do presidente eleito vazavam que o futuro ministro seria José Múcio Monteiro, ex-presidente do Tribunal de Contas da União e ex-ministro de Relações Institucionais de Lula. Foi o próprio Múcio quem disse que “o presidente optou por só fazer a transição na área da Defesa após a escolha do ministro e dos comandantes (das Forças Armadas)”.
Traduzindo: ao contrário de todas as outras áreas, na Defesa não haverá transição. A razão, embora ninguém admita publicamente, é que não há possibilidade de diálogo entre os atuais comandantes e o novo governo. Nas últimas semanas, os emissários de Lula enviados para sondar os ânimos na ativa voltaram sempre com esse mesmo retorno.
Para que não houvesse dúvida, os atuais comandantes da Marinha (Almir Garnier), do Exército (Marco Antônio Freire Gomes) e da Aeronáutica (Carlos de Almeida Baptista Junior) já confirmaram extraoficialmente que deverão deixar os cargos na segunda quinzena de dezembro, para não ter de bater continência a Lula na passagem de bastão aos substitutos.
A hostilidade de comandantes sabidamente bolsonaristas ao presidente eleito não chega a ser surpresa. Vista de forma isolada, também não deveria causar alarme. Como os novos comandantes serão escolhidos pelo próprio Lula, a tendência é que as coisas se acalmem, certo? É o cenário ideal, mas há uma série de dúvidas rondando o novo governo.
Enquanto o atual capítulo da transição acontece, o Alto-Comando do Exército se reúne em Brasília, sob pressão de oficiais da ativa e da reserva, para apoiar de alguma forma os protestos nas portas dos quartéis. Oficialmente a posição é de neutralidade, mas nas internas do generalato os atos golpistas ecoam de forma mais contundente do que parece.
Manifestações como a carta apócrifa que circulou nas redes, em que coronéis supostamente pedem o “imediato restabelecimento da lei e da ordem”, são vistas com irritação, por representarem uma inaceitável demonstração de golpismo e de indisciplina, e com preocupação, pelo clima de revolta nas patentes mais baixas. Mesmo na cúpula do Exército há desconfiança e divisão, por causa da campanha de difamação contra alguns generais que se disseminou nas redes bolsonaristas.
Nas mensagens que se multiplicam em grupos e plataformas digitais, três dos integrantes mais moderados do Alto-Comando são identificados por foto e chamados de traidores e de “melancias” (verdes por fora e vermelhos por dentro).
Como há vários bolsonaristas na cúpula, criou-se um mal-estar que obrigou o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas a defendê-los no Twitter, pedindo que a tropa assegure “a tranquilidade necessária para a tomada de decisões por parte de nossos chefes”.
É o mesmo Villas Bôas que, em 2018, na véspera do julgamento pelo Supremo de um pedido de habeas corpus para Lula, publicou um tuíte entendido como ameaça velada de golpe, dizendo que o Exército se mantinha “atento às suas missões constitucionais”.
E que, no último dia 15, divulgou outra carta, esta apoiando os manifestantes que “protestam contra os atentados à democracia, à independência dos Poderes, ameaças à liberdade e as dúvidas sobre o processo eleitoral”.
Durante a campanha, os generais diziam que não criariam problemas se Lula ganhasse, desde que ele não mexesse na Previdência dos militares, mais vantajosa que as dos civis. Agora, com manifestantes nas portas dos quartéis, já sugerem que também não aceitarão mudanças nos currículos das academias militares.
Nesse cenário, está claro que Lula abriu mão de debater sua política de Defesa antes do início do governo para não causar ainda mais estresse. Não que ele tenha alternativa melhor. Só que, ao contrário da PEC da Transição, a tensão com as Forças Armadas não deverá estar resolvida no dia 1º de janeiro. É aí que a costura começa, e ainda não dá para prever como termina.