De acordo com o BBC News , o diálogo é interrompido por uma ovação, e José “Pepe” Mujica avisa: “Há uma algazarra porque o Lula está chegando”.
É domingo (30/10) à noite, e o ex-presidente uruguaio está em São Paulo, no “bunker” do amigo Luiz Inácio Lula da Silva, que acaba de ser eleito para um terceiro mandato de presidente com 50,90% dos votos válidos, em uma vitória apertada.
Ele viajou para acompanhá-lo no encerramento da campanha e em sua eleição mais importante.
Foi de lá que, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmou a vitória de Lula contra o presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, Mujica concedeu uma entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Os dois líderes de esquerda se conhecem bem desde a época em que foram presidentes, o petista entre 2003 e 2010, e o uruguaio de 2010 a 2015.
Mas Mujica alerta que os tempos mudaram. E os desafios também.
A seguir, você confere um resumo da conversa por telefone com o ex-guerrilheiro que ganhou reconhecimento internacional como presidente por suas mensagens contra o consumismo e por um governo democrático, sob o qual o Uruguai legalizou a maconha, o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
BBC News Mundo – Como você avalia essa vitória do Lula?
José Mujica – É um erro grosseiro considerar que havia aqui uma disputa entre a esquerda e a direita. Aqui a disputa de base é da democracia com o autoritarismo.
O aparato de Estado nas mãos de alguém com o temperamento que o presidente (Bolsonaro) tinha e com o qual ele agia, pode ter as formalidades de uma democracia representativa. Mas o uso abusivo do poder desvirtua permanentemente os fundamentos das relações democráticas.
Talvez o Brasil seja a mais formidável experiência de miscigenação do mundo contemporâneo. É uma população de origem diversa, que tem a alegria de viver típica dos africanos. E havia uma polarização que estava rompendo esse caráter cultural.
Espero fervorosamente que o Brasil se recupere, porque Lula é, em termos políticos, um verdadeiro social-democrata, no sentido de lutar pelo Estado de bem-estar.
Ele realizou uma façanha porque enfrentou um Estado: todo o aparato do Estado estava em jogo nisso.
É um homem de 77 anos com vitalidade e uma origem humilde. E seu verdadeiro apoio foi dado pelo Brasil mais pobre. Ele ganhou por isso. E chegou perto de perder com o país de classe média, relativamente desenvolvido do sul. Uma coisa paradoxal.
Espero que o rancor possa ser superado, e que ajude a marcar a presença da América Latina no mundo, porque essa é outra característica de Lula.
BBC – Você espera que Lula tenha uma presidência mais centrista, diferente de seus primeiros dois governos?
Mujica – Eu o defini como lutador por um Estado de bem-estar. Ou seja, buscar que a economia brasileira funcione e distribua melhor.
Mas vão criticá-lo por ser pouco radical, por parte da esquerda. E da direita vão criticá-lo por ser populista. É inevitável, porque os social-democratas não estão na moda nesta fase da nossa história.
Lula nunca foi radical no sentido estrito do termo. Ele foi e é um desfazedor de erros. Ou seja, um dirigente sindical que passou a vida inteira tentando consertar problemas para encontrar as melhores saídas possíveis.
É o que esperamos. Qual é o ponto fraco? A sucessão: o que vem depois de Lula?
BBC – Bolsonaro perdeu, mas muitos acreditam que o bolsonarismo mostrou sua força nesta eleição. Você está preocupado com a oposição que Lula pode ter em seu próximo governo?
Mujica – É preciso entender o que é o Brasil, que tem uma doença constitucional.
O Congresso brasileiro é muito parecido com uma bolsa de valores, porque há vários partidos de Estados que na hora de se alinhar, tomam a decisão, negociam e dizem ao Poder Executivo: eu voto nessa lei se você construir essa ponte ou essas estradas para mim.
Há um mundo de negociação nos bastidores. É incrível ver qual é a realidade política do Brasil quando a analisamos de perto.
Então, é verdade que o bolsonarismo se saiu muito bem na votação. Ele usou todos os recursos. Mas é formado por uma estirpe negociadora de uma névoa de correntes políticas com interesses locais. E haverá um mundo de negociações, inevitavelmente.
Isso não é simples, nem para o Lula, nem para quem está lá. Só Deus pode lidar com essa realidade. E como um senhor tão importante não lida com política, Lula terá que lidar.
BBC – Que erros Lula e o PT devem evitar voltar a cometer no governo?
Mujica – Lula tem 77 anos. O problema vem depois, porque o Brasil não é a Argentina. O Brasil não tem aquela coisa estranha que ninguém sabe o que é, mas é um bicho que existe, que se chama peronismo, que aguenta ditaduras, isso acontece, e tem toda uma camada de gente que não faz ideia de quem era Perón nem Evita, mas os têm como Deus.
O Brasil não tem essa mística. Pode ser, não sei, que a passagem de Lula gere isso ao longo do tempo. Mas tudo isso ainda está para ser revelado.
Sou apenas um amigo, um companheiro de Lula, que estava lá quando ele decidiu acatar (a ordem) e ir para a prisão com uma multidão de pessoas que o apoiavam e bancaram isso. Depois fui vê-lo na prisão. E agora vou vê-lo de volta, presidente. Tive a glória de viver para vê-lo.
BBC – Você diz que criar um sucessor para a liderança de Lula é um dos desafios do PT…
Mujica – Sem dúvida, porque os homens passam, e as causas permanecem. Esse é um problema que todos nós temos.
E realmente nos últimos anos tenho visto os partidos históricos desaparecerem na França, na Itália e em outros lugares.
O que está acontecendo não é simples, porque há mudanças culturais que vão além de nossas avaliações políticas.
Tenha piedade de mim: você está falando com um lutador que tem 87 anos e não pode deixar de ver a realidade através das lentes de sua vida. Isso é o que me limita.
BBC – Você mencionou a vez em que foi visitar Lula quando ele estava na prisão. Sua condenação por corrupção foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), devido a erros no processo e falta de imparcialidade do juiz que o julgou. Mas muitos acreditam que a corrupção é um dos calcanhares de Aquiles dos governos do PT no Brasil e outros governos de esquerda na América Latina…
Mujica – E por que você deixa de fora os governos de direita? Acha que os governos de direita têm um pacto com o diabo?
A corrupção é inerente à civilização humana. É mais velha que o amor. Sempre esteve e é óbvio que está nas sociedades modernas.
Teria que dedicar horas ao funcionamento do Congresso brasileiro. Existe algo chamado “orçamento secreto”, que é distribuído e pouco tem a ver com decisões políticas.
Há uma série de instituições que são incríveis. Não creio que sejam responsáveis pela corrupção. Sabe quem é o responsável pela corrupção? Que tacitamente nas sociedades contemporâneas de fato tendem a nos ensinar que ter sucesso na vida é ficar rico, seja lá como for.
Aqueles que realmente gostam de dinheiro deveriam ser afastados da política. Porque política é outra história. Não é que não haja interesses, mas não são interesses materiais. Há outras coisas que estão em jogo.
Como você pode ver, são questões que vão além dessa passagem eleitoral, quase filosóficas.
“Poderoso cavaleiro é dom Dinheiro, capaz de transformar ouro em bosta, e bosta em ouro”, dizia Quevedo há 500 anos.
BBC – A questão era se você acredita que o PT vai ter que tomar alguma precaução especial com questões de corrupção agora que volta ao governo.
Mujica – Não é um problema do PT. É um problema para todo o Brasil, porque agora outras artimanhas vão ser descobertas.
Tenho confiança em Lula porque sei quem Lula é, e como ele vive. Mas daí a dizer que em uma organização coletiva não haja gente que se desvie, não me atrevo a dizer isso de ninguém.
A condição humana é frágil. E sempre estaremos expostos a isso.
BBC – A onda de governos de esquerda que surgiu nos últimos anos na América Latina é comparada com aquela onda anterior, da qual você fez parte em 2010. Você vê semelhanças ou uma onda não tem nada a ver com a outra?
Mujica – Acredito que não. Porque (Gustavo) Petro é um pensamento na Colômbia; há um pensamento novo. E também no Chile.
Às vezes, não se encaixa. E eu me felicito. Porque as novas gerações têm que ter a coragem de cometer seus erros, mas não repetir os nossos. Porque se não, não vivemos nada.
BBC – Então para você não há uma comparação possível?
Mujica – Não, é outra circunstância. E estamos sobretudo em outro mundo. Estamos no alvorecer de uma brutal mudança de época.
E temos um desafio primeiro na América que, às vezes, não entendemos: ou nos desenvolvemos e temos dinheiro para investir na cabeça de nossos filhos, ou vamos ficar no pelotão de irrelevantes.
Porque se o capital foi relevante para o desenvolvimento, a partir de agora o conhecimento será cada dia mais (relevante). E isso depende da qualidade intelectual das novas sociedades.
Não acredito que a formação técnica e científica seja barata. É preciso investir muitos recursos econômicos nisso. Se não, estagnamos.
Aqui arriscamos nossas vidas, porque o que está por vir não é uma época de muitas mudanças; É uma mudança de época. Em breve, haverá robôs andando pelos campos praticamente sem trabalhadores, bancos que serão uma máquina e operações sem cirurgiões. Esse é o mundo que está por vir.
Não vou estar lá por causa da minha idade, mas temos que trabalhar para que aqueles que estejam, estejam à altura do desafio. Porque do contrário, eles não vão ter trabalho nem para lavar chão.
BBC – Quando Lula tomar posse, a grande maioria da América Latina vai estar sob governos de esquerda. É possível que esses governos articulem uma agenda comum?
Mujica – Esse é um dos pontos fracos. Temos que parar com isso de esquerda e direita na América Latina e ter a capacidade de nos unir com o que existe. Para que? Para nos defender. Se não, seremos liquidados pelo mundo rico.
Se estamos esperando para concordar 100%, não vamos nos unir nunca. Portanto, temos que ter muita paciência estratégica e nos unir aos negligenciados.
BBC – No início, você mencionou o “uso abusivo do poder” por Bolsonaro, que você disse que desvirtua a democracia. Agora, uma crítica que é feita à esquerda na América Latina é que ela não soube criticar com firmeza os governos de esquerda que fazem o mesmo uso abusivo. Você acha que isso é uma deficiência ou algo que a esquerda tem que mudar?
Mujica – Não, o problema é outro: aqui na América estamos acostumados a ter chefes que se metem em tudo. Tem coisas que eu não gosto que aconteçam, mas não devo me meter.
Não podemos confundir definições que são distintas.
Os países desenvolvidos têm um estilo abusivo. Criam chefes que têm o direito de impor seus pontos de vista em qualquer lugar da Terra. E os mais velhos lembram que as sanções impostas à Espanha não afetaram Franco, afetaram o povo espanhol que passou fome. O mesmo aconteceu com as impostas na Itália.
As sanções econômicas que impõem sacrificam os pobres.