Com mais de 130 cientistas brasileiros na Antártica, distribuídos em 23 projetos científicos, o vice-presidente do Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica (SCAR, na sigla em inglês), Jefferson Cardia Simões, explicou como o Programa Antártico Brasileiro (Proantar) auxiliará no desenvolvimento da ciência mundial, através do trabalho desenvolvido na Estação da Marinha do Brasil (MB) Comandante Ferraz (EACF).
No início do mês, o Navio de Apoio Oceanográfico (NApOc) Ary Rongel e o Navio Polar (NPo) Almirante Maximiano desatracaram da Base Naval da Ilha das Cobras (RJ) rumo ao continente antártico, com previsão de permanência até abril de 2023. Neste ano, 130 pesquisadores de diferentes instituições farão parte do grupo que realizará pesquisas para coleta de amostras e dados na Antártica.
A retomada das atividades no continente gelado, como relatou o pesquisador Jefferson Cardia Simões, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ocorre após três anos de pandemia. O objetivo, além de recuperar o tempo perdido, é promover a pesquisa científica diversificada e de alta qualidade na região antártica, mantendo assim ao Brasil a condição de Membro Consultivo do Tratado da Antártica.
“O Proantar é estruturado em quatro vertentes básicas: a científica, sob a coordenação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq]; a ambiental, sob a responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente; a logística, a cargo do Ministério da Defesa, com a coordenação e realização da Marinha do Brasil; e a de política externa, a cargo do Ministério das Relações Exteriores”, disse Jefferson Cardia Simões no Sputnik.
Ele enfatizou que, no próximo ano, o Brasil enviará “pesquisadores de todos os níveis” e o Programa Antártico Brasileiro “terá uma ampla área de atuação. Desde áreas de interesse científico para a América do Sul, como em biologia, geologia e paleontologia, às questões de comportamento e de registro ambiental”, que são pautas nas mais prestigiadas instituições de ciência do mundo.
“Temos um programa interdisciplinar, em que diferentes instituições atuam dentro desse programa de investimentos”, afirmou o especialista.
O Brasil na Antártica
Continente mais inóspito do planeta, a Antártica tem mais de 90% de seu território coberto por gelo e cerca de 70% da água potável de todo o globo. Sua proximidade da América do Sul torna a região especialmente relevante para o Brasil, a ponto de ter sido considerada parte do entorno estratégico do país.
Os navios da Marinha do Brasil têm previsão de chegar à Antártica no dia 7 de novembro, quando os pesquisadores brasileiros ingressarão no regime internacional da região, baseado em um sistema de convenções e documentos que definiu as atividades de pesquisa como sendo o propósito fundamental da ocupação da Antártica.
As pesquisas envolvendo os 23 projetos científicos do Brasil compreendem as áreas de oceanografia, física, química, biologia, climatologia, meteorologia, ornitologia, arquitetura, psicologia, arqueologia e geologia.
Jefferson Cardia Simões avalia que “60% a 70% da contribuição do Brasil” estão ligados ao estudo de problemas nacionais de grande envergadura, “como o comportamento da massa de gelo do planeta Terra, que responde pelas mudanças climáticas provocadas pelo homem”. Segundo ele, “estamos coletando dados para colocar em um banco de dados amplo, para produzir ciência ao lado de colegas de outros países, chegando a conclusões através de modelos compartilhados”.
Como metas do programa, podem-se destacar: o desenvolvimento de pesquisa diversificada; o apoio à formação, ao aperfeiçoamento e à especialização de pesquisadores brasileiros; o desenvolvimento de soluções tecnológicas; o desenvolvimento de programas de monitoramento ambiental nas áreas de atividade do Brasil na Antártica; e o apoio a atividades educacionais em todos os níveis.
Descobertas que mudam o rumo da história
“Nós temos que ver que as descobertas não são realizadas por um projeto em si, mas, sim, […] por diversos estudos, que são compilados e analisados ao longo das décadas”, disse o vice-presidente do SCAR. Segundo ele, o Brasil se destaca especificamente nas pesquisas sobre a “gênese das frentes frias que são formadas no oceano Austral”.
“A Antártica tem papel fundamental dentro da rede interligada que é o sistema ambiental. A massa de gelo do continente é o principal ‘sorvedouro’ de energia do planeta. A maior parte da água do fundo dos oceanos é formada debaixo das plataformas de gelo antárticas (partes flutuantes do manto de gelo) ou sob o cinturão de mar congelado que circunda o continente”, disse.
O especialista aponta que a inclusão desses processos nos modelos de circulação geral para o Atlântico Sul é essencial para se entender o controle antártico sobre o ambiente brasileiro e melhorar as previsões climáticas. “Em suma, para entendermos o clima brasileiro temos que estudar tanto o gelo antártico como a Amazônia”, comentou.
Ele avalia que, nos últimos quatro anos, com a implantação de duas redes de pesquisa envolvendo mais de 20 instituições nacionais e com novos recursos financeiros do Ministério do Meio Ambiente e do CNPq, foi possível reestruturar e melhorar a qualidade dos projetos brasileiros na região.
“Estamos avançando em questões de biodiversidade, mas eu chamo a atenção para as pesquisas oceanográficas no oceano Austral e como isso controla toda a circulação profunda do oceano. Hoje sabemos que 70% das águas profundas são formadas debaixo do gelo da Antártica”, explicou.
Participação da Marinha
Com os navios Almirante Maximiano e Ary Rongel, o trabalho da Marinha do Brasil tem grande influência no sucesso do Proantar ao propiciar o acesso às regiões da península Antártica para que se coletem amostras e dados fundamentais para a execução dos trabalhos científicos.
No mês passado, a Marinha assinou um contrato para receber, dentro de 36 meses, um novo navio para exploração no continente gelado, o Navio de Apoio Antártico (NApAnt). Construído pelo Estaleiro Jurong Aracruz, em Aracruz (ES), a embarcação terá 93,9 metros de comprimento, 18,5 metros de largura (boca moldada), calado de 6 metros e autonomia para 70 dias. Com propulsão diesel-elétrica, poderá abrigar uma tripulação de 92 pessoas, incluindo 25 pesquisadores.
O contrato prevê a construção, em território nacional, de um navio capaz de operar no verão e outono no continente antártico e de navegar em locais de formação de gelo mais recente. Para isso, o navio necessita de um casco em formato específico e de um cinturão reforçado de aço especial logo abaixo da região da linha d’água.
Conforme relembrou Jefferson Cardia Simões, o papel da Marinha é fundamental porque a “maioria das pesquisas” na região “é feita por [meio de] navios, além de módulos e acampamentos, muitas vezes localizados a quase 2 mil quilômetros da base”.
Maiores dificuldades
Como cerca de 90% do gelo da Terra estão na Antártica e os 10% restantes estão distribuídos pelo Ártico e pelas geleiras de montanhas, países como o Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, os mais próximos do continente gelado, serão os primeiros a sentir eventuais mudanças na Antártica.
Jefferson Cardia Simões explicou que o gelo da periferia do Ártico, em ilhas do norte do Canadá e da Sibéria e no sul da Groenlândia, e, principalmente, da maior parte das montanhas de regiões temperadas e tropicais está derretendo rapidamente. Entretanto, “na Antártica, somente o gelo da periferia, na península Antártica (na parte mais setentrional do continente), está derretendo”.
Ele explica que ainda “não sabemos se o gelo do interior da Antártica está aumentando ou diminuindo. No entanto todos os modelos matemáticos indicam que o aquecimento global vai elevar a umidade na Antártica e fazer com que o gelo no seu interior se torne mais espesso, em vez de reduzir de volume”.
“As pesquisas paleontológicas e geológicas estão ligadas ao estudo da interferência do Sol em nossa atmosfera”, disse, acrescentando que os principais problemas dos estudos no continente são “a irregularidade do financiamento e o treinamento para convívio em situações extremas”.
Conforme analisou o professor, a área da Antártica é de 13,6 milhões de quilômetros quadrados, e “um continente desse tamanho não responde de forma homogênea a variações climáticas, sejam elas naturais ou artificiais”. Segundo ele, é um exagero falar que o continente está derretendo. “Não vai ser um aquecimento de 2, 3 ou 5 °C na temperatura do planeta que vai fazer grandes modificações no gelo da Antártica”, concluiu.