Em senso estrito, os processos eleitorais costumam ser vistos como uma oportunidade para discussão do futuro do país, de suas carências e seus objetivos por meio de propostas que permitam aos eleitores balizar sua escolha. No Brasil de 2022, polarizado como nunca e assolado pela disputa mais visceral de sua história, a campanha à Presidência se aproxima do fim segundo a revista Veja, cercada de incertezas. A maior delas se dá em torno das diretrizes e do responsável pela condução da política econômica em um futuro governo do vencedor no primeiro turno, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em um encontro em São Paulo, no último dia 10, com cientistas políticos, economistas e líderes do antigo rival PSDB agora aninhados sob sua candidatura, Lula tergiversou das cobranças a respeito do assunto. “Tenham paciência”, declarou.
Com seu arguto senso político e sustentado por um amplo leque de alianças, Lula tem escorado seu discurso de campanha em um pilar: a experiência acumulada em seus dois mandatos anteriores, entre 2003 e 2010. Sob esse raciocínio, os feitos do passado seriam credenciais mais que necessárias para a solução dos problemas do presente. O fato é que o cenário global e a realidade brasileira são muito diversos daqueles de duas décadas atrás. A Guerra na Ucrânia, a possibilidade de desaceleração econômica na China, a alta de juros e inflação nos países mais ricos do mundo, aliados à expectativa de recessão global, lançam uma sombra sobre 2023. Em meio a esse ambiente hostil, o Brasil precisa concluir reformas estruturantes deixadas a meio caminho pelo governo atual — entre elas a administrativa e a tributária—, manter o equilíbrio fiscal e estimular investimentos que gerem empregos e renda para a população. E Lula tem falado quase nada a esse respeito. “Não acredito que o Lula vá fazer loucuras, mas ele está cercado de velhas ideias e velhos companheiros, que não são aquilo que o mercado gostaria de ver”, analisa Ricardo Lacerda, sócio fundador do banco de investimentos BR Partners.
Em seus discursos Brasil afora, Lula já declarou que não manterá o teto de gastos e criticou medidas importantes adotadas recentemente, como a reforma trabalhista e a autonomia do Banco Central. Da mesma forma chegou a ameaçar reverter a privatização da Eletrobras e tem anunciado medidas de grande impacto fiscal, como a promessa feita na semana passada de estender a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais. No início do ano, a campanha petista havia prometido apresentar, até agosto, um programa “aos moldes das candidaturas modernas”, com cerca de cinquenta páginas para ser registrada no Tribunal Superior Eleitoral. Vencido o prazo, revelou apenas um documento com diretrizes vagas, de 21 páginas, que sequer contempla algumas promessas que o candidato tem feito recentemente. Em entrevista a uma rádio, em maio, Lula já havia declarado ter aprendido com o ex-deputado Ulysses Guimarães (1916-1992) que “não se fala muito de economia antes de chegar ao governo”, porque, se o fizer, “nem ganha, nem faz”.
Diretrizes claras e transparência nas propostas são fundamentais não apenas para tranquilizar o mercado e evitar surtos especulativos, mas também para permitir que investidores e empresários planejem suas iniciativas futuras. Lula e o PT sabem disso. Em junho de 2002, o então candidato pavimentou o caminho para a sua primeira eleição à Presidência ao divulgar quatro meses antes do pleito o documento batizado de Carta ao Povo Brasileiro, prometendo responsabilidade fiscal e uma condução mais ortodoxa na gestão econômica, o que serviu para aplacar as preocupações que causavam instabilidades na época. Em 2018, o então candidato Jair Bolsonaro se preocupou em deixar claro desde o início da corrida eleitoral que Paulo Guedes, um economista alinhado à vertente liberal da Escola de Chicago, seria o responsável pela condução da economia em seu governo.
A poucos dias de um pleito que pode lhe dar o terceiro mandado, Lula não apenas deixa em aberto a linha que pretende seguir, como o perfil ideal de seu futuro ministro. Com quinze partidos em sua base de apoio e a contínua incorporação de propostas a cada adesão ou apoio conquistado, a gama de escolha abarca desde veteranos como o ex-ministro da Fazenda no governo Michel Temer e ex-presidente do Banco Central em seu primeiro mandato, Henrique Meirelles, até financistas como Luiz Carlos Trabuco (veja o quadro). A recente adesão das estrelas do Plano Real, como Persio Arida, inflaram ainda mais a lista. Nesse caso específico, muitos dos apoios vieram justamente acompanhados de ressalvas com a indefinição na economia. “A opção não foi embasada pela questão econômica, posto que o PT não deixou claro que caminho seguiria”, afirma Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central que recentemente anunciou seu voto no candidato.
Tamanha indefinição não tem provocado desconforto apenas no mercado, mas também dentro da própria equipe de campanha de Lula. Há quem defenda o pronto anúncio do nome do titular da economia, e talvez de outro ministro de uma área estratégica como a agricultura, para evitar a propagação de boatos prejudiciais à reta final da corrida eleitoral. Na sexta-feira 7, o rival Jair Bolsonaro disse que Lula não apresenta o seu ministério porque tem a intenção de chamar José Dirceu, Gleisi Hoffmann e a ex-presidente Dilma Rousseff para a equipe de governo. A indicação, acreditam colaboradores do candidato, poderia afastar esse tipo de especulação. Ao mesmo tempo, Lula poderia se livrar de uma vez por todas de um dos fantasmas que rondam sua atual candidatura, no caso a desastrosa gestão econômica no governo de sua sucessora.
Em seu primeiros anos no Planalto, Lula surpreendeu com uma condução responsável da economia. Ao mesmo tempo, contou com uma conjuntura internacional única, com a espetacular ascensão da China, demandando volumosas importações de produtos de origem brasileira, como minério de ferro, carnes e soja. Foram os anos do chamado superciclo de commodities que ajudaram o país a colher índices de crescimento significativos (veja o quadro abaixo). A boa maré começou a refluir em 2009 e secou de vez no governo de Dilma. A condução errática da economia sustentada em subsídios, estímulos ao consumo, acesso ao crédito, que levou ao endividamento das famílias, e forte intervencionismo levada a cabo pelo então ministro Guido Mantega (nomeado por Lula para o cargo em 2006 e mantido no posto até 2015) provocou um desastre que lançou o país na maior crise em 25 anos. É justamente esse desastre fragoroso que causa calafrios em investidores, empresários e gestores de grandes empresas. “Há um desafio grande pela frente que é reafirmar o compromisso com a responsabilidade fiscal e ao mesmo tempo abrir espaço para gastos sociais e em investimentos em infraestrutura”, afirma Henrique Meirelles, que antes de aderir à campanha de Lula participava da elaboração do programa de governo do ex-governador tucano João Doria, que desistiu de sua candidatura à Presidência em abril. “Para isso é preciso fazer a reforma administrativa, que pode gerar um volume grande de recursos e cortar despesas pouco úteis ao país. Em paralelo, é preciso dar andamento a reformas que abordem a questão da produtividade, como as alterações tributárias.”
Caso seja eleito, Lula precisará enfrentar restrições fiscais para cumprir as suas promessas. O caixa ficou ainda mais apertado pela conta eleitoral de Jair Bolsonaro, cujo governo baixou a cobrança de impostos e estourou o teto de gastos para bancar auxílios que pudessem ajudar a melhorar a percepção sobre sua gestão, como o aumento do Auxílio Brasil para 600 reais e benefícios para taxistas e caminhoneiros. “Essas medidas têm um altíssimo custo fiscal, pois pioram os resultados das contas fiscais em torno de 3% do PIB”, afirma economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal e autor de proposta de reforma tributária que tramita no Congresso.
Por outro lado, a economia tem demonstrado sinais de melhora. O fim da pandemia recolocou a atividade econômica acima do que era esperado pelo mercado, com um crescimento que surpreendeu no primeiro semestre. Se de um lado a indústria e o comércio patinaram nos últimos meses, a forte dinâmica do setor de serviços vem compensando essas baixas. O Fundo Monetário Internacional (FMI) revisou na última semana a projeção de crescimento do PIB brasileiro de 2022 para 2,8%, em comparação com a média de 3,2% para o mundo e de 3,5% para a América Latina. É um índice levemente acima da expectativa de 2,7% do Banco Central para este ano, o mesmo número que o consenso de mercado.
O desemprego, por sua vez, teve a maior queda do último ano entre as quarenta principais economias do mundo, para o patamar de 8,9%, em setembro, mesmo que ainda seja o quinto maior índice desse grupo. A inflação, que chegou, no acumulado de doze meses, a ficar entre as maiores do mundo ao fim do primeiro semestre, reverteu o curso e o IPCA registrou deflação por três meses seguidos, de julho a setembro. Está agora em 7,17%, abaixo dos últimos dados da União Europeia e dos Estados Unidos. Esse resultado foi conseguido, em parte, pela atuação mais rápida do Banco Central do Brasil. Em resumo: os números da economia passam longe da tragédia prevista por muitos e a adoção de reformas estruturantes no próximo governo contribuiria em muito para que essa boa fase fosse além de um voo de galinha. “Com um governo Lula, teríamos um equilíbrio institucional maior mas, infelizmente, pelo que se demonstra até agora, com um impulso reformista inferior ao de um governo Bolsonaro. E o fato é que o Brasil precisa desse impulso”, comenta um investidor que prefere não se identificar.
Se Lula tem sido hermético com relação a seu futuro governo, Jair Bolsonaro também não tem avançado em detalhes sobre como conduzirá a economia em um segundo mandato. A diferença entre ambos é que, no caso de Bolsonaro, existe uma sensação de previsibilidade maior. Naturalmente, se imagina uma continuidade dos últimos quatro anos, ainda que existam dúvidas e incógnitas no horizonte. Depois de estouros e sucessivas manobras na regra do tetos de gastos, o presidente já deixou claro que não pretende mantê-la. No dia 5 de outubro, Bolsonaro encerrou abruptamente uma entrevista depois de uma pergunta sobre a permanência de Paulo Guedes em um segundo mandato. Uma semana depois, em um podcast, foi um pouco menos evasivo. “No que depender de mim, todos os ministros ficam”, disse. Bolsonaro aprecia a lealdade de Guedes, mas existem muitas resistências a ele na ala do governo ligada ao Centrão, exatamente a que tomou as rédeas da campanha.
Em 1992, em uma ferrenha disputa entre o então presidente candidato à reeleição George H.W. Bush, do Partido Republicano, e Bill Clinton, do Partido Democrata, nasceu um mantra que desde então se incorporou ao universo das campanhas eleitorais. James Carville, o estrategista do democrata, pendurou no comitê de campanha, à vista de todos, um cartaz com os dizeres: “É a economia, estúpido!”. A expressão era um lembrete de quanto o assunto era relevante e como, se bem utilizado, poderia levar à vitória. Seguindo a regra à risca, Clinton ofereceu a seus eleitores uma nova visão de futuro e detalhou como iria alcançá-la. Com isso, pulverizou o rival, um dos raros ocupantes da Casa Branca a não se reeleger. Trinta anos depois, Lula e sua equipe deveriam estar atentos a isso.
Colaboraram Felipe Mendes e Larissa Quintino
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811