Na mira do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Rio (TCE-RJ), uma associação sem fins lucrativos funciona segundo Luiz Vassallo e Gustavo Queiroz, do jornal Estado de São Paulo como uma espécie de banca de advocacia para dominar um mercado bilionário a partir de uma guerra judicial travada por municípios pelo enquadramento na partilha de royalties da exploração de petróleo e gás. Um levantamento do Estadão com base em dados da Agência Nacional de Petróleo (ANP) aponta que dez decisões judiciais obtidas pela entidade e seus associados vão render até R$ 300 milhões em honorários advocatícios. Investigações levaram à suspensão de parte destes pagamentos.
Em 2021, a arrecadação de royalties chegou a R$ 74,4 bilhões. Somente as decisões judiciais verificadas pelo Estadão movimentaram R$ 1,5 bilhão para 15 prefeituras – é sobre esses valores que são calculados os honorários. Os processos analisados pela reportagem datam de 2016 a 2022.
Os advogados ligados à entidade atuam na ANP, responsável pela distribuição dos royalties. Quando a estratégia não dá certo, ingressam com ações judiciais contra o órgão em busca de liminares favoráveis aos municípios.
Alvo de ao menos três inquéritos, a Associação Núcleo Universitário de Pesquisas, Estudos e Consultoria (Nupec) é presidida pelo coronel de artilharia do Exército Arcy Magno da Silva, de 83 anos. A entidade é representada nas licitações e em ações judiciais por seu vice-presidente, o advogado Vinicius Gonçalves Peixoto. A Nupec negou irregularidades em sua atuação e disse que os contratos são vantajosos para os municípios.
Sobre Peixoto recai uma condenação judicial que o proíbe de participar de contratos públicos. O caso envolveu o uso de uma empresa, a Petrobonus, para assinar o mesmo tipo de contrato com municípios. O advogado também foi alvo da Operação Lava Jato do Rio por suspeita de lavagem de dinheiro de propinas de contratos da Usina Angra 3 para o ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão (MDB).
No ano passado, Peixoto abriu uma empresa de energia em sociedade com o ex-deputado estadual Márcio Pacheco (PSC) e outros advogados ligados à Nupec. Pacheco, que foi relator da CPI dos Royalties na Assembleia Legislativa do Rio, foi indicado em junho para o cargo de conselheiro de contas do Estado. O TCE é a instância responsável por julgar a sanidade dos contratos fechados pelos municípios.
Método
Cabe a Peixoto obter os contratos com os municípios, que ele assina como procurador da Nupec. Em seguida, o advogado repassa essas procurações aos escritórios dos advogados Djaci Falcão Neto, filho do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Francisco Falcão, e Hercílio Binato de Castro, genro do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, e sobrinho de um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ). Esses escritórios, então, passam a atuar em nome dos municípios.
Em abril deste ano, a Nupec incorporou advogados das bancas de Djaci e Hercílio ao seu quadro de associados. Mesmo quando celebram contratos com municípios com uso de suas próprias bancas, esses advogados também repassam procurações uns aos outros e usam o logotipo da Nupec em suas petições à Justiça.
Isso ocorre mesmo quando os contratos são firmados com inexigibilidade de licitação, em razão da especialização do contratado. De um total de 20 contratos, 15 foram feitos sem licitação, dois foram licitados e três municípios não informaram o procedimento de contratação.
Suspeita
Um dos contratos investigados foi firmado em 2017 pelo município de Armação de Búzios, que pagou R$ 33 milhões em honorários à Nupec. Com adendos ao contrato original, a cifra pode chegar a R$ 50 milhões. Em 2018, o Ministério Público do Rio abriu investigação para apurar suspeita de irregularidade na contratação. A iniciativa partiu de um advogado a quem a prefeitura de Búzios negou acesso ao edital de licitação. O MP descobriu que a Nupec foi a única participante da licitação.
Em março deste ano, o TCE determinou a suspensão dos pagamentos de Búzios à Nupec. Em parecer pela paralisação dos repasses, a relatora, Marianna Willeman, observou que o processo de escolha da Nupec substituiu indevidamente o “aparato estatal” da advocacia do município e criticou o escopo “amplo e genérico” do contrato.
Somente Búzios recebeu um acréscimo de R$ 263 milhões em royalties graças à atuação de Peixoto, Djaci e Hercílio por meio dos contratos obtidos pela Nupec. Em 2017, o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1) decidiu, por unanimidade, em favor do município. Os juízes reconheceram a existência de “instalações de embarque e desembarque de petróleo e gás de lavra marítima”, o que é suficiente para requerer participação nos royalties.
Ministro
Um dos votos favoráveis no tribunal em 2017 foi do então desembargador Kassio Nunes Marques, hoje ministro do Supremo. Nunes Marques foi relator de processo anterior que abriu precedente para municípios como Búzios receberem royalties. O tema foi citado por ele, anos depois, quando sabatinado no Senado para a vaga no STF.
O então desembargador disse aos senadores que o “Nordeste ganhou muito com esta interpretação”, mas a decisão beneficiaria cidades de outros Estados, entre eles o Rio. Após ser indicado para o STF, Nunes Marques cruzou, desta vez fora dos autos, com Peixoto, quando viajou com o advogado de jatinho à Europa, como revelou o portal Metrópoles e confirmou o Estadão.
Outra investigação do MP mira a ausência de licitação em contratos de São Gonçalo, Magé e Guapimirim com a Nupec e a banca de Djaci Falcão que garantiram na Justiça repasses de R$ 639 milhões, em contratos sem licitação, cujos honorários são de 20%. Outras investigações em curso recaem em contratos de Cabo Frio e Arraial do Cabo, que obtiveram R$ 238 milhões em royalties por meio de decisões judiciais.
Das 20 prefeituras que contrataram a Nupec e seus associados, apenas duas realizaram licitação. Duas prefeituras informaram, em seus portais da transparência, pagamentos de R$ 50 milhões à Nupec. Outras 18 não deram publicidade a estes gastos, contrariando a Lei de Acesso à Informação. As cifras vão alcançar R$ 300 milhões, com base na cláusula de 20% de êxito dos contratos.
Associação diz que contratos são vantajosos para os municípios
A Associação Núcleo Universitário de Pesquisas, Estudos e Consultoria (Nupec) defendeu a legalidade de sua atuação e afirmou que os contratos são vantajosos para os municípios. Em nota, a entidade disse ser “uma das poucas especializadas em direito regulatório de petróleo e gás natural” e destacou que os “entes públicos, em virtude da excepcionalidade da demanda, optam por delegar sua representação judicial, tendo em vista que a matéria discutida é interdisciplinar e foge da atuação corriqueira da Procuradoria”.
De acordo com a Nupec, a associação repassa procurações a advogados porque “não detém capacidade postulatória” na Justiça. A entidade disse seguir todas as regras previstas no estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Apenas o advogado individualmente considerado detém capacidade postulatória para representação judicial. Neste sentido, é óbvia a necessidade de que a contratada confira procuração aos advogados individualmente considerados e não à pessoa jurídica da qual são associados, uma vez que a Nupec (ou qualquer pessoa jurídica), por si só, não detém capacidade postulatória.
Associação Núcleo Universitário de Pesquisas, Estudos e Consultoria (Nupec), em nota
A maior parte dos municípios não divulgou nem respondeu ao Estadão sobre os valores pagos em honorários. A Nupec também não informou quanto arrecadou nesses contratos. Declarou apenas que as quantias “observam o valor praticado pelo mercado, conforme tabela de honorários da OAB e resoluções dos Tribunais de Contas”. A entidade ressaltou que é remunerada “única e exclusivamente em caso de êxito no processo judicial” e que as prefeituras “não assumem qualquer risco”.
A Agência Nacional do Petróleo (ANP) afirmou “que utiliza de todos os recursos processuais que a lei lhe permite para defesa de seus entendimentos técnicos sobre todas as matérias de sua competência”, e que interpôs recursos contra todas as demandas judiciais mencionadas na reportagem. “Nesses recursos a ANP enfatiza a necessidade de dever ser prestigiada sua expertise, não devendo o Poder Judiciário se imiscuir em matérias extremamente técnicas da área de engenharia de petróleo e características de equipamentos.”
“A ANP calcula os porcentuais médios de confrontação dos municípios com os campos produtores para fins de distribuição dos royalties e da participação especial. Cabe à agência efetuar a distribuição dos royalties nos termos da legislação vigente e, quando há decisões judiciais relativas à distribuição aos beneficiários, cumprir essas decisões”, disse a agência.
Procurados, Vinícius Peixoto, Djaci Falcão, Hercílio Binato e Márcio Pacheco não quiseram comentar. Os ministros Kassio Nunes Marques, Francisco Falcão e Luiz Fux também não se manifestaram, assim como as prefeituras de Cabo Frio, Arraial do Cabo, São Gonçalo, Magé, Búzios e Guapimirim.
Para entender
Contratos
Associação sem fins lucrativos, a Nupec celebra contratos sem licitação com prefeituras. A entidade atua no mercado de partilha de royalties da exploração de petróleo, que arrecadou R$ 74,4 bilhões no ano passado.
Procurações
O município distribui procurações a advogados associados à Nupec para atuação no processo – na Justiça, eles conseguem decisões contra a Agência Nacional do Petróleo (ANP) que levam à redistribuição dos royalties.
Honorários
Valores repassados em honorários advocatícios podem chegar a R$ 300 milhões. Com a atuação do grupo, decisões na Justiça redistribuíram R$ 1,5 bilhão a 15 municípios do Rio desde 2017.
Representante
A Nupec é representada nas licitações e em ações judiciais por seu vice-presidente, o advogado Vinicius Gonçalves Peixoto. Sobre Peixoto recai uma condenação que o proíbe de participar de contratos públicos, o que não impede a atuação dele nesse mercado.
Licitação
Das 20 prefeituras que contrataram a Nupec e seus associados, apenas duas realizaram licitação. Outras 18 não deram publicidade aos gastos, contrariando a Lei de Acesso à Informação (LAI).
Defesa
A entidade negou irregularidades e afirmou que é remunerada “única e exclusivamente em caso de êxito no processo judicial”. Disse, ainda, que as prefeituras “não assumem qualquer risco”.