Conforme Gabriel Moura, do jornal Correio*, a capital do Brasil não era Salvador há mais de 100 anos, mas a Bahia ainda era referência em várias áreas. Os grandes cérebros da nação se abrigavam sob o teto da já sexagenária Faculdade de Medicina. Liderados pelo Barão de Cotegipe, os baianos formavam a segunda maior bancada do Senado Federal. Quatro das dez maiores cidades do império se encontravam dentro das nossas divisas.
A década de 1870 foi um dos últimos períodos de glória da província, que outrora fora a joia da colônia. A prosperidade do Recôncavo, a intelectualidade de uma das regiões mais letradas do Brasil e o retrato dos 1.379.616 homens e mulheres que aqui habitavam foram capturados pelo censo de 1872, o primeiro feito no país e que completa 150 anos em 2022, quando está sendo feito o 13º levantamento nacional para traçar um panorama de quem somos e conduzir novas políticas públicas.
Esqueça os tablets e questionários digitais, era tudo papel e caneta. Tudo calculado na mão, com auxílio de instrumentos rudimentares, pela Diretoria Geral de Estatística do Império (DGE) – o IBGE só seria fundado mais de 50 anos depois. Em comum com a atualidade, apenas os recenseadores batendo nas portas das 181.511 casas, chamadas à época de “fogos”, catalogadas na segunda maior província do Brasil, atrás apenas de Minas Gerais. Algumas aldeias indígenas e quilombos mais distantes não foram contabilizados, por isso o número de habitantes era maior, mas nada que comprometesse os dados do estudo.
Aos baianos, assim como a todos os brasileiros, foram feitas perguntas sobre seu sexo, condição (livre ou escravizado), se sabiam ler e escrever, religião, idade, profissão, raça, onde nasceram, se portavam alguma deficiência física e o estado civil. Também foram levantados o número de “fogos”, e se estavam habitados ou não.
A ideia de fazer um censo no Brasil existia desde 1850, mas revoltas populares ocorridas em estados como Bahia e Pernambuco contra o ‘retrato’ nacional adiaram o plano em 20 anos. Os pretos e pardos que já eram livres achavam que o objetivo do estudo seria catalogá-los para os reescravizarem.
Em 1869, por decisão do Gabinete de Itaboraí, foi aprovada a lei prevendo o estudo, que ficou sob responsabilidade do Gabinete Rio Branco (o Visconde, não o Barão), comandado por Francisco Manuel Correia, o maior animador cultural da Corte. Segundo Nelson Senra, especialista em história do IBGE, essa segunda tentativa de censo ocorreu sem problemas.
“Para o censo de 1872 a aceitação foi a melhor possível, pois teve o envolvimento das altas autoridades do Império, inclusive do próprio Imperador d. Pedro II, em sua fala do trono, na abertura do parlamento. Não se tem registros nos relatórios da DGE ao parlamento de resistência, afora que, em havendo, a polícia ou Guarda Imperial poderia ser chamada a atuar. O censo, pode-se dizer, transcorreu de modo tranquilo”, explica Nelson.
Agrária e escravista
O censo ocorreu 18 anos antes da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão oficial no Brasil. Portanto, todo o censo foi feito sob este viés, separando as pessoas entre livres (87,8% dos baianos) e escravizadas (12,2%).
No questionário racial, havia quatro opções: brancos, caboclos, pardos e pretos, das quais os escravizados podiam responder apenas as duas últimas alternativas. Ao total, a sociedade baiana era composta por 24,1% de brancos, 45,7% de pardos, 26,6% de pretos e 3,6% de caboclos. Comparando com o último censo, o de 2010, nota-se que a população se miscigenou ainda mais, visto que brancos e pretos diminuíram (22,19% e 17,1%, respectivamente), enquanto os pardos dispararam, atingindo 59,16% do total.
Outra discrepância escravista é observada na educação. Enquanto o estado se gabava por ter uma taxa de analfabetismo de “apenas” 80,5%, uma das menores do Império (cujo número era 84,3%), apenas 64 escravizados, em um universo de 167.824, sabiam ler e escrever. Apenas a população livre poderia frequentar as escolas da época.
“Era uma sociedade basicamente agrária, com o empreendedorismo e industrialização ainda dando os primeiros passos. Apenas as elites iam para as escolas e faculdades, enquanto a maioria da população aprendia apenas alguns cálculos básicos. No entanto, havia uma camada média e alta da sociedade que era bastante erudita, trocando livros e jornais. As primeiras tipografias do Brasil, por exemplo, foram em Salvador”, diz o historiador.
Homens religiosos
O Brasil era um estado com religião oficial, a Católica. Isso fica evidente em dois aspectos do censo: após serem perguntados sobre sua religiosidade, os brasileiros só poderiam responder católicos ou “acatólicos”; e a pesquisa foi feita não baseada em cidades, mas em paróquias. A capital, por exemplo, tinha 18 que foram responsáveis por estudar a vizinhança. Atualmente, são 101 na Região Metropolitana de Salvador.
Um dado que chama atenção é a quantidade de baianos natos que se declararam “acatólicos”: zero. A Bahia tinha, oficialmente, apenas 212 pessoas de outras religiões ou ateus, que eram ingleses, alemães, russos e suíços.
“A Bahia era dominada por uma visão de mundo baseada pela igreja, uma cristianização do imaginário. Havia outras expressões de fé, como as religiões de matrizes africanas, mas elas eram professadas em lugares afastados e envoltas em segredo. Expressar algo contrário ao catolicismo era muito mal visto naquele período. Por isso, mesmo quem não era católico dizia ser”, revela Rafael Dantas.
Já sobre os estrangeiros, o estado contabilizou oficialmente 22.397, majoritariamente africanos (o censo não especificava país, colocava o continente inteiro como uma coisa só), que somavam 16.905, seguidos por portugueses (4.206), franceses (324) e italianos (270).
A maioria dos que vinham de fora eram homens (61,7%), isso ajudava a criar um desequilíbrio de gênero, transformando a Bahia em um estado majoritariamente masculino. Eram 52,1% machos contra 47,9% de mulheres. A solteirice também dominava, atingindo 69,2% da população, enquanto 25,8% era casado e 5% viúvo. O divórcio só foi legalizado 100 anos depois, por isso não aparecia esta opção no censo.
Metrópoles do sertão
São Francisco não era apenas rio, era a vigésima segunda cidade mais populosa do Brasil, maior que Porto Alegre, Fortaleza, Cuiabá e até São Paulo. O farol mais famoso de Salvador tinha um xará, o município de Santo Antônio da Barra, que, em 1872, aglutinava mais de 40 mil pessoas, o colocando em 32º no ranking nacional de população.
No total, a Bahia tinha nove entre as 50 cidades mais populosas do país, incluindo
algumas que não existem mais, como as citadas acima. São Francisco estava localizada entre Salvador e Santo Amaro, na região onde atualmente fica Pojuca, Catu e São Sebastião do Passé. Já Santo Antônio da Barra era entre Caetité e Victoria (a atual Vitória da Conquista).
Em 2010, apenas duas cidades baianas estiveram no top-50: Salvador e Feira de Santana, terceira e trigésima quarta, respectivamente. As metrópoles do sertão eram Minas do Rio de Contas (atual Rio de Contas, oitava maior do Brasil), Santo Amaro (9ª), Feira de Santana (16ª), Maragogipe (21ª), São Francisco (22ª), Purificação (onde atualmente é a região de Serrinha era a 30ª), Santo Antônio da Barra (32ª), Nazaré (39ª), Geremoabo (41ª), Macaúbas (44ª) e Rio das Éguas (no extremo Oeste da Bahia era a 46ª).
Mapa da Bahia em 1872 (Foto: Reprodução / IBGE) |
No entanto, o protagonismo era dividido entre duas cidades: Salvador e Cachoeira, segunda e quinta maiores cidades do Brasil no período. Os saveiros conectavam as metrópoles, transportando pessoas e carga.
“Salvador era a segunda cidade mais importante do império, dona de um grande comércio portuário e de rua. Havia muitos problemas de infraestrutura urbana e pobreza, mas também tentativas de modernização, como o Elevador Lacerda. As poucas fábricas ficavam no Subúrbio, mas o setor de serviços era o mais importante”, conta Rafael.
Mas Salvador pouco produzia, a riqueza baiana era gerada na Chapada Diamantina, com as pedras preciosas, e, principalmente, no Recôncavo, lar das plantações de cana, que estavam em decadência, e do tabaco.
“Os primeiros engenhos da Bahia foram instalados no Recôncavo, próximos ao Rio Paraguaçu, que passa, justamente, por Cachoeira. O tabaco e a mandioca também foram muito plantados naquela região. Então tudo que era produzido pelo interior da Bahia iam até Cachoeira antes de chegar em Salvador”, conta o historiador Fábio Batista.
A cidade, porém, era dependente da mão de obra escrava que trabalhava nas lavouras, engenhos e minas de pedras preciosas. Com a abolição, Cachoeira entrou em decadência. A soma da crise econômica com a emancipação de territórios como São Félix e Muritiba fez a população do município despencar dos 88 mil em 1872 para os atuais 33 mil.
“Curiosamente, foi justamente esse declínio que fez Cachoeira preservar o patrimônio histórico e se tornar um museu ao ar livre. Enquanto a vizinha Santo Amaro da Purificação passou por um processo de desenvolvimento, que resultou na destruição de construções históricas para dar lugar a novas, Cachoeira ficou parada no tempo, sem nenhuma modernização”, pontua Rafael Dantas.
Reportagem de Gabriel Moura, do jornal Correio*