Durante sabatina no Jornal Nacional, o ex-presidente e atual candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comentou que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.
A informação foi mencionada pelo petista no telejornal para defender o movimento como um importante meio de produção rural no país.
Nos últimos dias, a afirmação passou a ser posta em dúvida por muitas pessoas, principalmente defensores do presidente Jair Bolsonaro (PL). Durante um programa da Jovem Pan, por exemplo, uma das comentaristas duvidou que o MST seja o maior produtor do grão orgânico no país.
Mas é um fato: o MST é responsável pela maior produção de arroz orgânico no Brasil, segundo o Instituto Riograndense do Arroz (Irga), como mostrou reportagem da BBC News Brasil em 2017.
O Irga, vinculado ao governo do Rio Grande do Sul, é considerado referência para esse levantamento porque o estado detém a maior produção geral de arroz do Brasil — correspondendo a, segundo o instituto, cerca de 70% de todo o grão produzido nacionalmente.
Mas o Irga ressalta que a produção de arroz orgânico no Brasil é extremamente baixa quando comparada ao tipo mais comum nos pratos dos brasileiros — que é produzido com insumos como aditivos químicos.
Para a próxima safra no Rio Grande do Sul, de janeiro a abril de 2023, a estimativa é de colheita de 865 mil hectares de arroz de todos os tipos. Desse total, somente 5 mil hectares correspondem ao grão orgânico.
Desse tamanho destinado ao orgânico, 4 mil hectares pertencem ao MST, em áreas de assentamentos da reforma agrária. O restante, pouco mais de mil hectares, pertence a outros produtores da região, que não são ligados ao movimento.
Além disso, o MST tem passado por dificuldades em questões como o escoamento da produção do grão.
O arroz orgânico do MST
O discurso da agroecologia — antagônico ao agronegócio por não envolver insumos como adubo químico e agrotóxicos — passou a ser adotado pelo MST por volta do início dos anos 2000, segundo estudos acadêmicos.
Foi justamente nesse período que famílias assentadas do MST começaram a plantar arroz orgânico. O Irga estima que o movimento passou a liderar a produção desse tipo de grão no país por volta de 2010 — mas não há dados concretos que apontem exatamente quando isso ocorreu.
“Eram áreas da reforma agrária que não tinham nenhuma função social anteriormente e hoje estão nas mãos dos assentados, fruto da luta do MST”, diz o dirigente nacional do MST do Rio Grande do Sul, Ildo Pereira.
“Havia a necessidade de produzir um produto de qualidade para o consumidor, sem o uso de produtos químicos. Não é só um projeto do MST, mas também um projeto de sociedade”, afirma Pereira.
Segundo o Irga, as áreas de assentamentos do MST destinadas ao plantio de arroz orgânico foram se expandindo até por volta de 2017.
“Não temos segmentação por instituição como do MST. Mas podemos dizer, com certeza, que as maiores áreas que a gente conhece (de plantio de arroz orgânico) estão dentro de assentamentos do MST. São aproximadamente 4 mil hectares. Não há sequer registros superiores a isso na América Latina”, destaca o técnico do Irga Edivane Portela, coordenador do programa estadual de produção de arroz de base ecológica.
“Fora do MST, essas áreas de produção (de arroz orgânico) são bem menores, cerca de 600 a 700 hectares por produtores”, acrescenta Portela.
Sobre a pouca quantidade produzida no Brasil, em comparação ao arroz com cultivo considerado tradicional, Portela argumenta que isso ocorre porque há pouco investimento em desenvolvimento de iniciativas para a produção desses grãos, assim como outros produtos orgânicos.
“Outro ponto que me parece importante se refere ao aspecto cultural, a geração atual de agricultores ainda olha com uma certa insegurança para este sistema já que também o apoio técnico é deficiente”, afirma o especialista.
Mas ele diz que há uma demanda crescente pelo consumidor por produtos orgânicos e isso tem feito com que cada vez mais sejam desenvolvidas pesquisas sobre o tema. Ele avalia que essa produção deve crescer cada vez mais no país. “Acredito que o caminho se dará por esse lado”, diz.
Entidades brasileiras relacionadas à produção rural afirmam não ter dados específicos sobre a produção de arroz orgânico relacionada ao MST.
A reportagem procurou instituições como a Confederação da Agricultura e da Pecuária do Brasil (CNA) e a Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz), que afirmaram não ter informações sobre o tema.
Instituições relacionadas ao governo federal, como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) dizem que não possuem levantamentos sobre o tema.
Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirmou à BBC News Brasil que há 1,1 mil produtores de arroz registrados no Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos (CNPO). No entanto, nesse sistema somente é possível acessar o nome do produtor e a sua localização, não há como detalhar quais estão em áreas de assentamento do MST.
Menos famílias produzindo e gargalo na comercialização
A produção do arroz orgânico no MST é feita em 12 assentamentos em diferentes municípios do Rio Grande do Sul e envolve cerca de 340 famílias beneficiárias da reforma agrária. Esses números caíram nos últimos anos. Em 2017, por exemplo, eram 616 famílias em 22 assentamentos.
Em grande escala, os assentamentos do MST produzem arroz agulhinha longo fino, nas versões polido, integral e parboilizado. Em menor escala, também produzem arroz cateto, vermelho, arbóreo e negro.
Nos últimos anos, muitos produtores ficaram desestimulados diante das dificuldades para comercializar os grãos. Grande parte desse arroz costumava ser vendida por meio de iniciativas do poder público, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), da Conab.
O MST estima que nos últimos anos houve redução de até 40% nas compras de arroz orgânico por parte de entes públicos para alimentação escolar, área que prevê que no mínimo 30% das compras sejam feitas por meio da agricultura familiar – na qual a produção do movimento se enquadra.
Um fator que dificultou a venda nos últimos anos foi o auge da pandemia de covid-19, que manteve as escolas fechadas. Mas outro ponto, segundo o movimento, seria uma falta de incentivo do governo Bolsonaro à agricultura familiar.
“O governo federal é um grande comprador e, por meio da Conab, sempre auxiliou levando alimento a quem mais necessita. Hoje a Conab não tem efetuado compras da agricultura familiar (como antes)”, afirma Guilherme Vivian, integrante do setor de produção do MST e um dos responsáveis pela comercialização da Cootap (Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região Porto Alegre).
“As prefeituras e governos estaduais também não têm efetuado compras no período recente”, acrescenta.
Em nota à BBC News Brasil, a Conab argumenta que nos últimos quatro anos adquiriu cerca de 36,105 mil toneladas de arroz para a formação de cestas de alimentos que foram distribuídas a povos e comunidades tradicionais em todo o país.
“Essas aquisições foram realizadas por meio de leilões públicos e aberta a todos os interessados. Tanto os editais com as regras para participação nos leilões como os preços de compra e os resultados com os arrematantes estão disponíveis no site da Companhia”, diz a nota.
A Conab ainda afirma que por meio do Programa Alimenta Brasil, um dos seus principais projetos, busca promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar.
“Para o alcance desses objetivos, o programa compra alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação, e os destina às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional atendidas pela rede socioassistencial, pelos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional e pela rede pública e filantrópica de ensino”, diz comunicado da Conab.
“O programa é executado pela Conab e por estados e municípios sob a gestão do Ministério da Cidadania”, acrescenta a nota, que destaca que o programa “prevê a aquisição de produtos da agricultura familiar, e não apenas o arroz”.
Ainda na nota, a Conab afirma que não possui nenhuma ação de compra anual de arroz em nenhum lugar do país.
Nas prateleiras dos mercados e no exterior
Além dos programas do poder público, o MST também comercializa o arroz orgânico para mercados ou vende diretamente aos consumidores de diferentes regiões do país.
O movimento também exporta o produto, com o apoio de empresas que levam o grão a outros países. “Mas isso diminuiu bastante no último período, principalmente pelo custo, que mais que quadruplicou, por causa do transporte. Não há contêiner e quando tem é um custo absurdo, eleva muito o valor e não compensa. Neste ano só exportamos para a Itália e a Alemanha, mas nos anos anteriores era para muito mais países”, diz Vivian.
Em meio às dificuldades para a comercialização, surgiu outro problema no período recente: a intensa seca que atinge o Rio Grande do Sul desde o fim do ano passado. Esse fator atrapalha a produtividade do grão, segundo o MST.
O atual cenário de dificuldades e incertezas tem afetado, principalmente, as famílias assentadas que são responsáveis pela produção do grão e que têm a comercialização dele como parte da renda.
“É uma atividade lucrativa, mas essas famílias não trabalham só com o arroz”, minimiza Vivian. Essas famílias também possuem outros cultivos para complementar a renda, como o de hortaliças, frutas ou gado de corte.
“São pessoas que lá atrás se organizaram em grupos, formaram acampamentos e lutaram por um pedaço de chão para produzir e viver dignamente”, afirma Vivian.
Apesar dos problemas no atual cenário, o MST estima que na safra de 2021/2022 devem ser colhidas mais de 15 mil toneladas de arroz orgânico. É um volume maior do que o da safra anterior, período considerado extremamente difícil, quando foram colhidas 12 mil toneladas.
E para essas famílias, a comercialização de todo esse arroz orgânico da safra é um grande desafio pela frente.